sábado, maio 27, 2006
Carlos de Oliveira
SONETO FIEL
Vocábulos de sílica, aspereza,
Chuva nas dunas, tojos, animais
Caçados entre névoas matinais,
A beleza que se têm se é beleza.
O trabalho da plaina portuguesa,
As ondas de madeira artesanais
Deixando o seu fulgor nos areais,
A solidão coalhada sobre a mesa.
As sílabas de cedro, de papel,
A espuma vegetal, o selo de água,
Caindo-me nas mãos desde o início.
O abat-jour, o seu luar fiel,
Insinuando sem amor nem mágoa
A noite que cercou o meu ofício.
quarta-feira, maio 17, 2006
IAN CURTIS
Há 26 anos, Ian Curtis, o vocalista e autor das letras dos Joy Division, suicidava-se. Iniciava-se o mito.
Uma voz que nos chega das profundezas mais sombrias, alguém que como Orfeu desceu aos infernos para nos trazer uma beleza aterradora, espasmódica, nocturna como o sol cegante do meio-dia. Voz da lucidez: excesso de luz dirigida.
terça-feira, maio 16, 2006
O BONO DO JORNAL
Este é o número de ontem do The Independent, um dos jornais de referência da Inglaterra. A surpresa aparece no título da primeira página: No news today. Reparando melhor podemos ver, no canto superior esquerdo a foto de Bono. O Independent de ontem foi dirigido por Bono, o músico dos U2 e activistas de várias causas, que trouxe para a edição do jornal Inglês, como a luta contra a sida ou a fome em África. Pode-se ver no fim da primeira página o número de pessoas que morreram de sida e de doenças que em países ocidentais seriam facilmente tratáveis.
Para além destas questões políticas e humanitárias uma outra questão se coloca com esta edição especial do Independent. Ela vem mostrar que o jornalismo de hoje é feito sem imaginação, sem critérios estéticos nem éticos. Foi necessário convidar um músico, ainda que também activista político, mas alguém que não é jornalista, para fazer um jornal completamente diferente, com preocupações comunicativas essenciais. Em Portugal, esta capa faz lembrar o período em que Miguel Esteves Cardoso foi director do ("nosso") Independente. Ou outros tempos do Libération.
segunda-feira, maio 15, 2006
Egito Gonçalves
NOTíCIAS DO BLOQUEIO
Aproveito a tua neutralidade,
o teu rosto oval, a tua beleza clara,
para enviar notícias do bloqueio
aos que no continente esperam ansiosos.
Tu lhes dirás do coração o que sofremos
nos dias que embranquecem os cabelos...
Tu lhes dirás a comoção e as palavras
que prendemos - contrabando - aos teus cabelos.
Tu lhes dirás o nosso ódio construido,
sustentando a defesa à nossa volta
- único acolchoado para a noite
florescida de fome e de tristezas.
Tua neutralidade passará
por sobre a barreira alfandegária
e a tua mala levará fotografias,
um mapa, duas cartas, uma lágrima...
Dirás como trabalhamos em silêncio,
como comemos em silêncio, bebemos
silêncio, nadamos e morremos
feridos de silêncio duro e violento.
Vai pois e noticia com um archote
aos que encontrares de fora das muralhas
o mundo em que nos vemos, poesia
massacrada e medos à ilharga.
Vai pois e conta nos jornais diários
ou escreve com ácido nas paredes
o que viste, o que sabes, o que eu disse
entre dois bombardeamentos já esperados.
Mas diz-lhes que se mantém indevassável
o segredo das torres que nos erguem,
e suspensa delas uma flor em lume
grita o seu nome incandescente e puro.
Diz-lhes que se resiste na cidade
desfigurada por feridas de granadas
e, enquanto a água e os viveres escasseiam,
aumenta a raiva
e a esperança reproduz-se.
(in Árvore, nº4, [1953])
quarta-feira, maio 03, 2006
Eugénio de Andrade
AS PALAVRAS INTERDITAS
Os navios existem, e existe o teu rosto
encostado ao rosto dos navios.
sem nenhum destino flutuam nas cidades,
partem no vento, regressam nos rios.
Na areia branca, onde o tempo começa,
uma criança passa de costas para o mar.
Anoitece. Não há dúvida, anoitece.
É preciso partir, é preciso ficar.
Os hospitais cobrem-se de cinza.
Ondas de sombra quebram nas esquinas.
Amo-te...E entram pela janela
as primeiras luzes das colinas.
As palavras que te envio são interditas
até, meu amor, pelo halo das searas;
se alguma regressasse, nem já reconhecia
o teu nome nas suas curvas claras.
Dói-me esta água, este ar que se respira.
dói-me esta solidão de pedra escura,
estas mãos nocturnas onde aperto
os meus dias quebrados na cintura.
E a noite cresce apaixonadamente.
Nas suas margens nuas, desoladas,
cada homem tem apenas para dar
um horizonte de cidades bombardeadas.
(de As Palavras Interditas)
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