terça-feira, novembro 27, 2007

Manuel de Freitas


O SOM DAS VÍRGULAS


para o Jorge Gomes Miranda

Deixa estar, Jorge, é demasiado

tarde: já não nos livramos da

imerecida glória de sermos

grupo, constelação, movimento

-"nós" que, a bem dizer,

nunca acreditamos em nada disso.


Sempre de vozes tontas e ruído

alarve precisou o mundo. Mas agora

imitam os políticos, delegam poder

naquilo que nenhum poder aufere -

a poesia - esses que em jornais

e outras cátedras matariam pai e mãe

para chegar a palcos grosseiros

em que nem actores conseguem ser.


E até dizem que prestamos vassalagem

a quem simplesmente nos ensinou

por onde não devíamos seguir

-à distância dos livros, na pulsão

do irrespirável e, anos depois, do afecto.

Há várias maneiras de preferir um descampado.


Porque a poesia, Jorge, só interessa

- se é que interessa - quando nos visita

"com a urgencia de quem verte

cubos de gelo num copo de whisky".

Tão parecida com "o vírus do amor"

que faz do corpo o único lugar.


Mas para quê falar-te disto?

Disseste-o melhor, assim:

"nada é a poesia

prelúdio de outras ruínas

nunca afirmadas".


Não te inquietes, pois, com arrumadores

de versos. A morte corrigirá todas

as vírgulas, mesmo as que lá não estavam.
Manuel de Freitas, Telhados de Vidro, nº3, ed. Averno.

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