terça-feira, julho 31, 2007

O DASAPARECIMENTO DO CINEMA


Poderia afirmar que com o desaparecimento de Ingmar Bergman e Antonioni, num curto espaço de 12 horas, é também o cinema que desaparece. Não me parece que seja por estas duas mortes que o cinema desaparece. A obra de um estava já terminada e o outro estaria já impossibilitado de filmar (ou as duas coisas para os dois). O que se passa é que com o desaparecimento destes dois grandes cineastas nos apercebemos que o cinema -- o cinema deles e não só -- já tinha desaparecido. Vejamos: primeiro foram os cinemas que desapareceram do centro das grandes cidades (veja-se o caso do Porto, onde já não há um único cinema a funcionar fora de um centro comercial) -- e já antes tinham sido os cineclubes (mais uma vez invoco o caso do Porto, Lisboa mantém a Cinemateca). Ou seja, a visibilidade de cinema, hoje, está remetida para os grandes centros comerciais. Mas, por uma lógica inevitável, os filmes que ai passam são comerciais, blockbusters vindos de Hollywood. Não há lugar para o cinema como Arte de que Bergman e Antonioni foram máximos expoentes. Esta situação não é de agora: seria difícil ver um filme como Monica e o Desejo numa sala comercial há 20 anos. A quem cabia preservar essa memória do cinema? Aos cineclubes, mas funfamentalmente à televisão de serviço público. E era assim que se passava: a RTP-2, durante as décadas de 80 e 90 passou muitas das grandes obras que constituem a memória do cinema, obras de cinema como arte. Esse era (e deve ser) um imperativo do serviço público de televisão. No entanto, com a tentativa de venda da RTP-2, há cerca de 4 anos pelo ministro Morais Sarmento, e consequente desmantelamento do espírito desse canal, o cinema desapareceu da RTP-2. Hoje os "pacotes" de televisão por cabo oferecem dezenas -- ou mesmo centenas -- de canais. Canais temáticos onde se podem encontrar canais especializados em cinema, mas apesar da dita especialização será dificil encontrar um filme de Bergman num desses canais. Obras como as de Bergman, Antonioni, Tarkovski, Dryer (será assim que se escreve? Não encontrei nenhuma referência ao realizador de A Palavra no Google) passaram a estar disponiveis apenas em dvd nas lojas da fnac ou numa loja virtual. Dirão que é melhor que noutros tempos em que se tinha que esperar que um filme passasse num cineclube ou na televisão. Mas a questão não é essa. A questão passa por uma lógica das imagens que proliferam por todo o lado. O cinema de Bergman, por exemplo, embora perto de certa linguagem televisiva pelo uso de grandes planos, está banido dessa lógica de imagens cada vez mais frenéticas que por todo o lado nos assaltam. As anedotas sobre o cinema de Manoel de Oliveira mostram como essa linguagem cinematográfica não tem lugar na lógica das imagens do mundo contemporâneo. É que a lógica das imagens em que vivemos, que também é a mesma lógica em que vivemos, a lógica do zaping, baniu a lentidão, a magia da "lanterna mágica", a contemplação, o pensamento. Neste sentido há todo um cinema que tende a desaparecer, a tornar-se marginal. E esse é o grande cinema, o cinema como arte, o que pensou e sentiu o mundo.

segunda-feira, julho 30, 2007

INGMAR BERGMAN (1918-2007)
















PHILIP K. DICK


Os patos e o vagabundo no parque desapareceram nesse instante. Nada restou deles. O intervalo com os seus furos tinha passado depressa.

-Não são reais - disse Sarah. - Pois não? Por isso, como é que...

-Tu não és real - disse-lhe ele. - És um coeficiente de estímulos da minha fita de realidade. Um furo que pode ser ignorado. Será que também existes noutra fita de realidade, ou numa realidade objectiva?

Não sabia; não tinha maneira de saber. Era possível que Sarah também não soubesse. Talvez existisse em mil fitas de realidade; talvez existisse em todas as fitas de realidade alguma vez produzidas.

-Se eu cortar a fita - disse - passarás a estar em todo o lado em lado nenhum. como o resto do universo. Pelo menos no que a mim diz respeito.

Sarah gaguejou:

-Eu sou real.

-Quero conhecer-te completamente - disse Poole. (...)


"A formiga elétrica", in Ficções, nº15, 2007, p. 122

sábado, julho 28, 2007

EVA RUIVO

UM RECADO POR BAIXO DA PORTA

«We are the stuff
As dreams are made of, and our little life
Is rounded with a sleep»
Shakespeare. The Tempest

Parece que estou metida num vídeo
pornográfico, as ramagens batidas pelo suor e o rumor
de vozes agrícolas, regos abertos a cruzar as únicas
sílabas que a colheita, mãos de cortiça, deixou
varejadas. Dói: o sol nos muros, corpo inculto
versado na dor. Depois, certos dias obrigados
a festa, colchas no parapeito, jarras cheias
de calendário para encobrir o remorso;
a vida na província
são obscenas imagens de fuga

Acordei, tinham passado por cima de mim
aldeias inteiras, vivalma, sequer um alguidar
com água para a mula, pele e osso, ou música
o acordeão a insuflar a tenda.

in Hifen- Cadernos de Poesia, nº 10, 1997, p.19
Eva Ruivo nasceu em 1963 (Lisboa). Publicou Rosa de Jericó, Frenesi, 1994

quarta-feira, julho 18, 2007

HELDER MOURA PEREIRA

Dorme calma depois de ler
as mil e uma noites.
O dia cansou-a em curtas
viagens e hábitos
de companhia, no seu segredo
há uma espera de meses,
ainda não decidiu
a sua vida, só parece
parar um pouco a olhar
o rio. Raras vezes crê
no que lhe digo, uma turva
linguagem do feminino
força o seu corpo.
Os seus gestos ficarão
nesta casa?

in De novo as sombras e as calmas, Contexto, 1990