terça-feira, dezembro 30, 2008

LIVROS DE 2008


Musil, Pessoa e Herberto Helder marcaram, no campo editorial, o ano que agora finda. De Musil a Dom Quixote deu à estampa, em tradução de João Barrento, esse grande romance (pelo menos no número de páginas) que é O Homem sem Qualidades. Sobre Pessoa, que em finais de 2005 passou a domínio público, e do qual se comemoraram este ano os 120 anos do nascimento, foram lançadas uma série de edições importantes e monumentais, tal como a obra do poeta. José Blanco publicou na Assírio & Alvim a ciclópica bibliografia Pessoana em dois volumes de mais de mil páginas; em finais de Novembro a editorial Caminho publicou o Dicionário de Fernando Pessoa e do Modernismo Português, coordenado por Fernando Cabral Martins e com a colaboração de cerca de 80 especialistas em Pessoa e no Modernismo (quer literário quer nas artes plásticas). Teresa Sobral Cunha publicou, na Relógio d’ Água, a sua versão desse livro maior da literatura portuguesa que é o Livro do Desassossego (recorde-se que esta pessoana participou na edição princeps do Livro, editada em 1982, sob a organização de Jacinto do Prado Coelho). E como a arca de Pessoa parece não ter fundo, Ana Maria Freitas organizou para a Assírio & Alvim as “novelas policiárias” do poeta sob o título Quaresma Decifrador. O ano Pessoano contou ainda com um congresso e um polémico leilão de uma parte do espólio do poeta dos heterónimos.
Se Pessoa é a figura mais importante da literatura portuguesa do século XX, há quem não tenha dúvidas em considerar Herberto Helder como a segunda figura. Ora este ano, e depois de um silêncio de 14 anos, Herberto voltou a publicar um livro com originais. A Faca não Corta o Fogo – súmula & inédita (Assírio & Alvim) terá sido o livro mais procurado do ano, esgotando a tiragem de três mil exemplares numa semana.
Em ano de crise na economia o mercado livreiro e editorial esteve agitado. Paes do Amaral, antigo patrão da TVI, mudou-se para os livros (embora do que goste realmente é de corridas de automóveis) e formou o grupo Leya que adquiriu editoras de peso no mercado livreiro como a Dom Quixote, a Caminho e a Asa. A estratégia agressiva do grupo causou polémica na Feira do Livro. Já no mercado livreiro um mega-projecto de livraria, a Byblos, acabou por falir enquanto a FNAC acabava com os descontos de 10 por cento.
Mas voltemos aos livros publicados em 2008. No que respeita ao romance Maria Velho da Costa publicou Myra (Assírio & Alvim), Mafalda Ivo Cruz apareceu com O Cozinheiro Alemão (Relógio d’ Água), Teresa Veiga, uma autora bastante discreta, publicou o livro de contos Uma Aventura Secreta do Marquês de Bradomín (Cotovia), e continuando com mulheres, Ana Teresa Pereira publicou dois livros: O Fim de Lizzie (BI) e O Verão Selvagem dos Teus Olhos (Relógio d’ Água). Dois mil e oito foi também ano de Saramago e Lobo Antunes. Do Nobel, tivemos A Viagem do Elefante (Caminho), e do pretendente ao Nobel, Arquipélago da Insónia (Dom Quixote).
Na poesia portuguesa, para além do já destacado livro de Herberto Hélder, a colheita não terá sido das piores mas também não foi das melhores. Mesmo assim tivemos Armando Silva Carvalho com O Amante Japonês (Assírio & Alvim), Nuno Júdice com A Matéria do Poema (Dom Quixote), Luís Quintais com Mais Espesso que a Água (Cotovia), Manuel Gusmão com A Terceira Mão, o regresso que se saúda de Fátima Maldonado com Vida Extenuada (& etc) ou ainda a consolidação de um novo nome para a poesia portuguesa do século XXI: Bénédicte Houart com Vida: Variações (Cotovia). E, já agora a referência a três revistas: a Telhados de Vidro, que fez cinco anos de uma cuidada e criteriosa publicação, a Relâmpago que preserva a memória de Luís Miguel Nava dedicando números bi-anuais a alguns dos maiores poetas portugueses e também a temáticas relacionadas com a poesia, e a Criatura, revista que revelou novos poetas. Na poesia traduzida assinale-se o trabalho que a Cotovia vem fazendo (a editora de André Jorge comemorou este ano 20 anos de actividade) na tradução de clássicos – desta vez Pedro Braga Falcão traduziu as Odes de Horácio.
Na ficção traduzida, e para além do já referido Homem Sem Qualidades, há uma série de autores a referir, muitos dos quais foram alvo de destaque da cada vez mais parca imprensa literária portuguesa. Julio Cortázar com Rayuela (Cavalo de Ferro), Roberto Bolaño com Os Detectives Selvagens (Teorema), ou ainda, para continuarmos no mesmo idioma, Bomarzo do argentino Manuel Mujica Lainez foram alguns dos autores mais festejados pelo jornalismo cultural que se vai fazendo por cá. Mas também houve, entre muitos outros, dois livros de Thomas BernhardCorrecção (Fim de Século) e Árvores Abatidas (Assírio) – e mais de Robert Walser, Histórias de Amor (Relógio d’ Água), livro de micro-narrativas ou micro-ficção num ano em que se publicou a Primeira Antologia de Micro-Ficção Portuguesa (Exudus) resultado, em parte, da blogosfera.
E para terminar, ou quase, o ensaio. Do que me lembro e do que constato por outros balanços, o ensaio (reunindo neste grupo livros de filosofia, ciências sociais, etc) tem vindo a perder terreno no mercado editorial. Refiro apenas dois títulos: Mil Planaltos de Gilles Deleuze e Félix Guatarri (Assírio & Alvim) e Camaradas – uma história mundial do comunismo de Robert Service (Europa-América). E lembro-me agora dois livros de George Steiner e um de Harold Bloom, Onde Está a Sabedoria (Relógio d’ Água).
Esta tentativa de fazer o balanço dos livros que se publicaram em 2008 é, como todos os balanços, imcompleta. Haveria muito mais para dizer, outros livros para acrescentar a esta já longa lista.










quinta-feira, dezembro 25, 2008

Daniel Jonas


O meu poema teve um esgotamento nervoso.
Já não suporta mais as palavras.
Diz às palavras: palavras
ide embora,
ide procurar outro poema
onde habitar.

O meu poema tem destas coisas
de vez em quando.
Posso vê-lo: ali destendido
em cama de linho muito branco
sem perspectivas ou desejo

quedando-se num silêncio
pálido
como um poema clorótico.

Pergunto-lhe: posso fazer alguma coisa por ti?
mas apenas me fixa o olhar;
fica ali a fitar-me de olhos vazios
e boca seca.

Daniel Jonas nasceu no Porto em 1973. Publicou quatro livros de poesia: O Corpo está com o Rei (AEFLUP, 1997), Moça Formosa, Lençois de Veludo (Cadernos do Campo Alegre, 2002), Os Fantasmas Inquilinos (Cotovia, 2005, do qual se retirou o poema aqui publicado) e Sonótono (Cotovia, 2007, com o qual recebeu o Prémio Pen Clube de Poesia em ex-aequeo com Helder Moura Pereira). Como dramaturgo é autor da peça Nenhures (Cotovia, 2008). Na função de tradutor verteu para português, entre outros, O Paraíso Perdido de Milton e recentemente Ao Arrepio de Joris-Karl Huysmans, ambas as traduções para a Livros Cotovia.

sábado, dezembro 20, 2008

António Carlos Cortez


PINTURA

Monet tens a impressão da realidade
e ela não pode ser de outro modo
Misturas na tela as cores primárias
como hoje a pintora no seu atelier
traçando a negro a figura humana

A poesia é talvez o momento
em que a pintura é exercida
de outra forma Um défice de realidade
nos olhos Nesse tempo o poema
surge para um dizer novo

António Carlos Cortez nasceu em Lisboa em 1976. Escreve sobre poesia no Jornal de Letras e tem artigos publicados nas revistas Relâmpago e O Escritor. Como poeta estreou-se em 1999 com Ritos de Passagem a que se seguiram Um Barco no Rio (2002), A Sombra no Limite (2004) e À Flor da Pele (2007) do qual se retirou o poema que aqui apresentamos. É ainda autor de um livro de crítica de poesia: Nos Passos da Poesia (2005).

quarta-feira, dezembro 10, 2008

MANOEL DE OLIVEIRA: 100 ANOS


O que espanta em Manoel de Oliveira, para além da obra cinemetográfica, são os 100 anos. Em plena actividade, Oliveira permanece como se o tempo não tivesse passado por ele; como se a sua vida fosse um filme realizado por ele: planos longos, fixos, personangens entre Camilo e Agustina que não são do nosso tempo. Em Manoel de Oliveira encontramos vida e obra cristalizadas num fotograma, como se o tempo não existisse, como se a água do rio deixasse de correr. Talvez seja isso a juventude.

segunda-feira, dezembro 08, 2008

EMILY DICKINSON (3 POEMAS)


Como se o mar apartando-se
Mostrasse um outro mar -
E esse - um outro - e dos Três
Apenas se pudesse suspeitar -

De Sucessões de Mares -
Adversos à Costa -
Eles próprios a Margem de Mares por ser -
A eternidade - é Isso -

*

Esta é a minha carta ao Mundo
Que nunca Me escreveu -
As Notícias simples que a Natureza contou -
Com branda Majestade

A sua Mensagem está destinada
A mãos que não consigo ver -
Pelo Seu amor - Afáveis - camponesas -
Julguem-me brandamente - a Mim

*

O Cérebro - é mais amplo do que o Céu -
Pois - colocai-os lado a lado -
Um o outro irá conter
Facilmente - e a Vós - também -

O Cérebro é mais fundo do que o mar -
Pois - considerai-os - Azul e Azul -
Um o outro irá absorver -
Como as esponjas - à Água - fazem -

O Cérebro é apenas o peso de Deus -
Pois - Pesai-os - Grama a Grama -
E eles só irão diferir - se tal acontecer -
Como a Sílaba do Som -

Emily Dickinson, Esta é a minha carta ao mundo e outros poemas, Trad. Cecília Rego Pinheiro, Assírio & Alvim, col. Gato Maltês, 1997, pp. 33, 53 e 61.

sexta-feira, novembro 28, 2008

CLAUDE LÉVI-STRAUSS: 100 ANOS

O antropólogo francês Claude Lévi-Strauss faz hoje 100 anos. E está vivo para assistir ao seu centenário. Talvez mais vivo que a sua teoria estruturalista, mas isso é outra questão.

quinta-feira, novembro 20, 2008

DAVID LYNCH



BOB'S BIG BOY

Costumava ir ao restaurante Bob's Big Boy praticamente todos os dias desde a metade dos anos setenta até ao início dos oitenta. Pedia um batido, sentava-me e pensava.
Existe uma certa segurança em refletir num restaurante. Podemos tomar o nosso café ou batido e partir para zonas estranhas e obscuras e regressar sempre à segurança do restaurante.

TERAPIA

Fui a um psiquiatra uma vez. Estava a fazer uma coisa que se tinha tornado um padrão na minha vida e pensei: Bem, devia ir falar com um psiquiatra. Quando entrei na sala, perguntei-lhe: «Acha que este processo poderia, de alguma maneira, danificar a minha criatividade?» E ele respondeu: «Bem, David, tenho que ser sincero: acho que sim.» Apertei-lhe a mão e fui-me embora.

David Lynch, Em Busca do Grande Peixe, Estrela Polar, 2008

domingo, novembro 02, 2008

O GOVERNO DO CAMARADA SÓCRATES NACIONALIZOU O BPN

Os trabalhadores do sector bancário, e outros populares, manifestaram hoje, nas ruas de Lisboa, o seu regozijo pelo reinicio das nacionalizações da banca, depois do camarada ministro das finanças, Teixeira dos Santos, ter anunciado a nacionalização do BPN.

segunda-feira, outubro 20, 2008

O EFEITO HERBERTO HELDER


A Faca Não Corta o Fogo – Súmula & Inédita vem interromper cerca de catorze anos de silêncio, no que diz respeito a inéditos, por parte de Herberto Helder. O último livro de originais do poeta foi publicado em 1994, Do Mundo, na Assírio & Alvim. Ora esta quebra do silêncio num dos poetas mais fortes da poesia portuguesa contemporânea originou um efeito paradoxal e estranho no que diz respeito à relação do poeta e da poesia com o mundo da comunicação social.
Sabe-se o quanto Herberto Helder é um poeta secreto, recusando entrevistas ou prémios literários. O autor de A Colher na Boca foge da fama e numa conhecida invocação escreve: “meu Deus, faz com que eu seja sempre um poeta obscuro”. Ora, paradoxalmente, e suponho, contra o desejo do poeta, o lançamento do seu livro A Faca Não Corta o Fogo tomou aspectos pouco usuais num livro de poesia. Primeiro foi o anúncio da saída do livro, principalmente em alguns blogues que avançaram com poemas inéditos que não eram inéditos; depois, a atenção dada pelos poucos jornais que ainda escrevem sobre poesia (JL, Público e Expresso). Com a distribuição dos três mil exemplares do livro, constatou-se que estes eram insuficientes para a procura e o livro rapidamente esgotou. Este facto originou notícias nos jornais e televisões. Ou seja: a poesia que só tem lugar nos telejornais aquando da morte de algum poeta significativo (Cesariny, Fiama, Eugénio de Andrade) era agora, paradoxalmente, tema pelo facto do mais “obscuro” dos poetas portugueses vivos ter publicado um livro. Curiosamente, o último livro de António Lobo Antunes, O Arquipélago da Insónia, lançado ao mesmo tempo, e esse sim com pretenções a best-seller, era relegado para um lugar secundário.
Talvez Herberto Helder não consiga ser um poeta assim tão obscuro. Ou o desejo de se manter nessa obscuridade e silêncio o torne uma presa fácil da lógica mediática que procura tudo o que foge à norma. E nessa lógica mediática a norma é querer aparecer a todo o custo.

sexta-feira, outubro 17, 2008

HERBERTO HELDER - A FACA NÃO CORTA O FOGO (DOIS POEMAS)


Aparas gregas de mármore em redor da cabeça,
torso, ilhargas, membros e nos membros,
rótulas, unhas,
irrompem da água escarpada,
o vídeo funciona,
água para trás, crua, das minas,
tu próprio crias pêso e leveza,
luz própria,
levanta-os com o corpo,
cria com o corpo a tua própria gramática,
o mundo nasce do vídeo, o caos do mundo, beltà, jubilação, abalo,
que Deus funciona na sua glória electrónica

*
a acerba, funda língua portuguesa,
língua-mãe, puta de língua, que fazer dela?
escorchá-la viva, a cabra!
transá-la?
nenhum autor, nunca mais, nada,
se a mão termica, se a técnica dessa mão,
que violência, que mansuetude!
que é que se apura da língua múltipla:
paixão verbal do mundo, ritmo, sentido?
que se foda a língua, esta ou outra,
porque o errado é sempre o certo disso

Herberto Helder, A faca não corta o fogo, Assírio & Alvim, 2008, págs. 159 e 170

sábado, outubro 11, 2008

J.-M. G. LE CLÉZIO: O NOBEL PARA UM "ÍNDIO BRANCO"


Não sei muito bem como é possível, mas a verdade é esta: sou um índio. Não o sabia antes de ter encontrado os Índios, no México e no Panamá. Sei-o agora. Não sou talvez um índio muito bom. Não sei cultivar o milho nem afeiçoar uma piroga. O peiote, o mescal ou a chicha mastigada sobre mim não exercem grande efeito. Mas quanto ao resto, quanto à maneira de andar, de falar, de amar ou de ter medo, posso dizer o seguinte: quando encontrei esses povos índios, eu, que não julgava por aí além ter família, senti-me como se de repente tivesse conhecido milhares de pais, de irmãos e de esposas.

J.M.G. Le Clézio, Índio Branco, trad. de Júlio Henriques, Fenda, 1989, p.7

domingo, outubro 05, 2008

DANIEL MAIA-PINTO RODRIGUES


É manhã
abro a porta da cozinha
a das traseiras da casa de campo.
Encaro a manhã.
O caseiro diz bom-dia
um cão aproxima-se de mim
e do pão com manteiga.
Desço de pé as escadas.
As escadas são de pedra.
Considero a manhã quente.
Não há nuvens
e o sol está lá em cima
no céu.
É domingo.
e uns tantos gatos amarelos
brincam com as ervas altas.
Considero a manhã quente
tiro a camisola
olhando de relance para um bando de pombos
sento-me
quase me deito num banco de madeira
distante já da casa.
Não vou ler agora este livro de poemas.
Uma voz suada pelo calor
chamou o meu nome
mas agora eu não vou responder.

Daniel Maia-Pinto Rodrigues,O Valete do Sétimo Naipe, Editora Corpos, 2ª ed., 2005, p. 43.

domingo, setembro 28, 2008

MACHADO DE ASSIS


Há 100 anos morria o escritor brasileiro Machado de Assis (1939-1908). Autor de inúmeros contos, poemas, crónicas, peças de teatro e de romances como Dom Casmurro, Memórias Póstumas de Brás Cubas e Quincas Borba, Joaquim Maria Machado de Assis foi considerado pelo crítico norte-americano Harold Bloom como o maior escritor afro-descendente de todo o mundo e um dos cem mais da História da literatura de todos os tempos. Esta afirmação do autor de O Cânone Ocidental, apesar de valer o que vale na sua subjectividade, coloca em K. O. Eça de Queiroz (ou Camilo Castelo Branco) numa disputa sobre o maior autor de língua portuguesa do século XIX. Autodidacta, mestiço, membro da Academia Brasileira de Letras, Machado de Assis foi além da ironia e humor em romances e contos: utilizou a sua obra literária como uma forma surpreendente de reflexão filosófica na linha de um Diderot. Um exemplo disso é o conto (ou novela) O Alienista (1882), uma crítica à psiquiatria e ao positivismo da época, quase um século antes do movimento anti-psiquiatria e das obras de Foucault, Deleuze e Thomas Szasz. Do final de O Alienista fica um pequeno excerto:



Mas o ilustre médico, com os olhos acesos da convicção científica, trancou os ouvidos à saudade da mulher, e brandamente a repeliu. Fechada a porta da Casa Verde, entregou-se ao estudo e cura de si mesmo. (...). Alguns chegam ao ponto de conjecturar que nunca houve outro louco, além dele, em Itaguaí.

sexta-feira, setembro 26, 2008

GEORGE ORWELL (A QUINTA DOS ANIMAIS)




Era agora evidente o que sucedera aos rostos dos porcos. Os animais diante da janela olhavam dos porcos para os homens, dos homens para os porcos, e novamente dos porcos para os homens: mas era já impossível distingui-los uns dos outros.


George Orwell, A Quinta dos Animais, trad. Paulo Faria, Antígona, 2008, p. 132

terça-feira, setembro 09, 2008

CESARE PAVESE


O INSTINTO

O homem velho, desenganado de tudo,
da soleira da porta, sob o sol cálido,
observa o cão e a cadela a satisfazerem o instinto.

Sobre a sua boca desdentada perseguem-se as moscas.
A sua mulher há muito que morreu. Também ela,
como todas as cadelas, não queria saber disso,
mas não lhe faltava o instinto. O homem velho cheirava o ar
- ainda tinha dentes -, a noite vinha,
metiam-se na cama. Era bonito o instinto.

O que agrada no cão é a grande liberdade
De manhã à noite vagueia pela rua;
e ora come, ora dorme, ora monta cadelas:
não espera sequer pela noite. Raciocina
com o faro, e os cheiros que sente são seus.

O homem velho recorda-se de uma vez
em que o fez como os cães, de dia, no meio duma seara.
Já não sabe com que cadela, mas lembra-se do grande sol
e do suor e da vontade de nunca mais acabar.
Era como numa cama. Se os anos voltassem,
gostaria de o fazer sempre no meio duma seara.

Desde a rua uma mulher e pára a olhar;
o padre passa e volta-se. Na praça pública
pode-se fazer tudo. E até a mulher,
que tem pudor em voltar-se para o homem, pára.
Só um rapaz não tolera o jogo
e faz chover pedras. O homem velho indigna-se.

(Cesare Pavese, Trabalha Cansa, Trad. e Introdução de Carlos Leite, Cotovia, 1997, pp. 265-267)

Cesare Pavese nasceu há precisamente cem anos em Santo Stefano Belbo; estudou em Turim, tendo apresentado uma tese sobre Walt Whitman. Pertenceu ao Partido Comunista Italiano e trabalhou como tradutor para a editorial Einaudi. Poeta e ficcionista, dele estão traduzidos para português vários livros como o seu diário, Ofício de Viver, ou as narrativas A Lua e as Fogueiras, Férias de Agosto, A Praia, O Verão, A Guitarra Quebrada, O Diabo sob as Colinas, Noites de Festa (estas últimas editadas nos anos 60 e 70 estão esgotadas). A sua poesia está compilada no volume Trabalhar Cansa (Cotovia). Suicidou-se a 27 de Agosto de 1950.

sexta-feira, agosto 29, 2008

COPY & PASTE (1) - A. Guerreiro sobre Agamben


Para percebermos o alcance deste ensaio de Agamben [Bartleby - escrita da potência], devemo-nos referir a um dos seus conceitos mais recentes: o de «inoperosità», inoperância, o processo que consiste em desactivar a obra, seja ela humana ou divina, Não se trata de uma inacção, mas da actividade de desactivar. Isso é, no fundo, o que faz a poesia, que desactiva a linguagem da comunicação; e esse é também o dispositivo ético que Agamben propõe para tornar inoperantes as operações da máquina despolitizada da economia do poder. A inoperância, diz algures Agamben, é a substância política do Ocidente. Só ela é capaz de restituir a linguagem de que fomos expropriados. Bartleby, com a sua fórmula, é a figura dessa restituição.

António Guerreiro, "A potência da linguagem", excerto da recensão a Bartleby - escrita da potência de Giorgio Agamben, Expresso-Actual de 23.08.2008, p. 26

sexta-feira, agosto 01, 2008

É O FIM?


Hoje, pela primeira vez em 140 anos, O Primeiro de Janeiro não saí para a rua. Em editorial, na edição de ontem, a directora, Nassalete Miranda, despede-se “até para a semana”, mas tudo indica que a regressar o jornal apenas volte em Setembro como diário gratuito depois de uma reconversão gráfica. Para já foram despedidos os 30 trabalhadores do jornal, ainda com salários em atraso.
Durante anos, sob a direcção de Manuel Pinto de Azevedo (director entre 1946 e 1976), o PJ foi um dos principais jornais portugueses, opositor ao salazarismo. Nos anos 80 o jornal entrou em decadência, de que resultou um despedimento em larga escala em 1991 e a iminência do encerramento do jornal. Adquirido pelo empresário Eduardo Costa, o jornal têm nos últimos anos tentado recuperar algum do seu passado glorioso. Está neste caso o suplemento “Das artes, das letras”, publicado à segunda-feira, que pode ser considerado o único suplemento literário da imprensa portuguesa. De facto, o Janeiro acolheu nas suas páginas alguns dos maiores escritores portugueses. E pelo jornal que esteve durante décadas sediado num magnífico prédio da rua de Santa Catarina, no Porto, onde hoje funciona mais um centro comercial do grupo Sonae, também passaram alguns dos melhores jornalistas de Porto.
Depois do encerramento, há três anos d’ O Comércio do Porto, jornal igualmente histórico para a cidade do Porto e para o país, e de A Capital, espera-se que o Janeiro apareça em Setembro.

FERNANDO GUERREIRO


AS CINZAS DE LENINE

Será desculpável a facilitação do discurso? A ligeireza
com que as águias passam, deixando cair as suas penas
sobre as acabrunhadas raízes (e ruínas) do absoluto?!
A partir de que ponto se altera (perde) o pensamento?
Quantas vezes é preciso repeti-lo até ele se constituir
como um símbolo capaz de assolar o futuro? Marx refere-se
ao «espectro do comunismo» (no Manifesto, em 1847) e tanto
para Burke (Reflections) como para Michelet (Le Peuple)
o fantasma da História reveste a forma de uma sanguinária
Medusa. Mas era verdadeiro o seu Terror face ao que ante
os seus olhos acontecia: o abismo que tornava o raciocínio
sempre inconcluso. Da mesma forma, as cinzas da Revolução
o nosso imaginário ainda perturbam. Putrefacta, seria mais
acessível à repulsa? É neve, neve, que o cérebro nos atulha,
enquanto lá fora os pássaros voam baixo, à procura
das sementes que nos resguardem do futuro.

Fernando Guerreiro, Toeria da Revolução, Angelus Novus Editora, 2000, p.31

segunda-feira, julho 28, 2008

O GRANDE SILÊNCIO PELAS VÍTIMAS DO COMUNISMO


Leio a introdução de José Pacheco Pereira à obra de Marx, editada na colecção "os grandes filósofos", e reparo que JPP se esqueceu de uma das mais importantes consequências do pensamento de Marx: as inúmeras, incontáveis (?) vitimas dos regimes comunistas por todo o mundo. Na União Soviética, com o Gulag que provocou milhões de mortos, certamente mais que o número de mortos vitimados pelo Holocausto, mas também nos restantes países da Europa de leste comunista; nas inumeráveis guerras em África onde após as independências se confrontavam guerrilhas pró soviéticas contra guerrilhas pró americanas (veja-se o caso de Angola ou Moçambique); na china de Mao Tsé-Tung (ou Mao Zedong) com a sua Revolução Cultural; no Cambodja do sanguinário Pol Pot …. O rol de pulhas que encarceraram, torturaram e mataram em nome do fim da exploração do homem pelo homem, de uma sociedade mais justa, sem classes, e de outros ideais tão nobres é extenso. Tão extenso como secreto. Como se o facto de serem sanguinários marxistas os tornasse menos sanguinários, menos criminosos, porque bem vistas as coisas esses monstros como o camarada Estaline ou Ceausescu apenas buscavam a felicidade do Homem na terra.
Espanta-me toda essa condescendência para com os carniceiros comunistas e espanta-me, também, que aqueles que de certo modo os representam assobiem para o lado como se nada se tivesse passado. Está neste caso o PCP. O Partido Comunista Português tem, pela sua base de apoio, uma importância sociológica mas também política, uma vez que não pode alcançar o poder (sendo assim um partido benévolo). No entanto, o partido vive autista perante a derrota política do comunismo no mundo, bem como perante as atrocidades cometidas pelos regimes comunistas, actuando internamente como se fosse um pequeno PCUS (o finado Partido Comunista da União Soviética), expulsando os membros que colocam em causa a orientação do comité central. Mas o que espanta é que os dirigentes do PCP não façam um mea culpa pelos horrores do comunismo. Podem dizer que não têm nada que ver com isso, mas têm, pelo menos pela ligação estreita que existiu entre o PCP e o PCUS e outros partidos e organizações comunistas (ainda hoje as FARC estão presentes na festa do Avante).
No fundo, é como se todos aqueles milhões de mortos fossem justificáveis por uma razão maior (o materialismo científico). Mas nem essa razão maior existe, nem – se acaso existisse – justificaria tantas e tantas vítimas. Quanto ao capitalismo, esse só ganhou com a barbárie marxista.

sexta-feira, julho 25, 2008

LEONORA CARRINGTON





Leonora Carrington nasceu na Inglaterra, em 1917, tendo passado parte da sua vida no México e nos Estados Unidos.Pintora surrealista e escritora, dela foi traduzido para português o relato de uma experiência de loucura, Em Baixo (Black Sun Editores, 1990).

segunda-feira, julho 21, 2008

BIG BROTHER, 7


Virtualmente, já é possível a uma qualquer polícia reconstituir tudo o que fiz ao longo do dia. Mesmo sem ter de recorrer a escutas nem colocar um agente a seguir-me. Apenas cruzando informação presente em computadores a que pode ter acesso quando desejar, bastando cumprir um mínimo de exigências legais.
(...)
A partir do próximo ano, o nosso querido Estado, se a lei passar o teste de onstitucionalidade, pode passar a saber por onde anda o meu carro, a que volecidade se deslocou entre dois "sensores", onde o deixei estacionado, quem nele viajava (basta cruzar as informações do chip da matrícula com as dos telemóveis) e uma quantidade de outras coisas que fazem parte da intimidade de cada cidadão.
Faltará passar do chip na matrícula para o chip subcutâneo, altura em que o Estado me poderá prestar, com a maior eficiência, uma enorme quantidade de serviços com enormes vantagens económicas. No chip subcutâneo pode estar tudo: os meus dados de identidade, a minha história civil, todos os registos médicos, os meus dados fiscais, porventura uma boa parte do que estiver em todas as outras bases de dados. E nem será muito difícil desenvolver a geringonça, pois já há chips para cães.

José Manuel Fernandes, Um dia vamos estar todos "chipados". Como cães ou ovelhas, editorial do Público de 21-07-08

sábado, julho 19, 2008

MANUEL FERNANDO GONÇALVES


(foto respigada daqui)

Quantos shekel de prata
custa o campo de efron
e a protecção de javé?
Que memórias guardarei aqui
de nemrod e da minha babilónia
se já corri todo o oriente
e sobre as costas me pesou
o cutelo e o sangue me ferveu
junto ao carvalho de moré?
Morei em gerara meu amo
e fui amigo dos reis
e mais forte que os reis
lá cavei sete poços
e ver não vi mais
do que os poetas diziam:
difícil é ler os poetas
o maior deles
dentre alguns que julgo
conhecer não escreve
outro dos mais astutos
é escravo de rebeca
e mal se atreve a falar
Meus filhos partiram
e a melhor das mulheres
minha amiga inquieta
indicou-lhes a porta dos inimigos
Bem posso sentir o vento da tarde
e o calor dos desertos sei
que as mulheres se arranjam
e tremem à hora certa
que das fontes tiram àgua
Mas onde repousas
senhor ansioso e belo
dos retratos?

Manuel Fernando Gonçalves, Isaac, IN-CM/Gota de Água, col. Plural, 1985, p. 16.

terça-feira, julho 15, 2008

FÁTIMA MALDONADO DIXIT


Por motivo da saída do seu último livro, Vida Extenuada (& etc), Fátima Maldonado foi entrevistada pelo jornalista da Lusa Raul M. Marques. A entrevista foi publicada na edição de ontem d' O Primeiro de Janeiro. Pela sua acutilância e lucidez reproduzo aqui algumas das afirmações da autora de Cadeias de Transmissão. O texto da entrevista, na integra, pode ser consultado aqui.
[A poesia]pode ser também um agente do caos, testemunha da derrocada ou da incapacidade de viver de rastos. E seguindo por caminhos escusos presenciar o lixo que sobeja, o gelo que derrete, a desorientação do urso, a floresta sangrada, o mal alastrando na rota milenar.

Por que não há-de a poesia infiltrar-se na barbárie e conseguir submetê-la à regra imposta pelo poeta?
Mas acompanhar o nosso tempo não significa beber até às fezes o cálice da televisão, deixar-se embalar pelo Estado ou vestir-se de arlequim. Contrariando a tendência a que alguns, ainda incrédulos, assistem, o escritor deve incomodar não só a língua mas os poderes. Nem ao arrepio do tempo deve temer a alcunha de moralista porque o acto criador que não se confunde com o acto económico protege o sentido da vida, o equilíbrio da terra, o pouco que ainda resta de beleza.

É preciso recusar os compromissos e sermos Heréticos.

[Sobre António Nobre:]Fascina-me a paixão masoquista que concebeu por este paisinho. Nela se banha a toda a hora como se de líquido amniótico se tratasse ou de leite de burra que as nobres romanas adoravam porque lhes amaciava a pele.

Poetas, hoje, como chapéus no filme conhecido, há muitos.
Cada época tem a poesia que merece e a nossa tem bonzos que se farta e inspiração de alto coturno.

A crítica literária é, tanto quanto me apercebo, um produto em extinção.
O Joaquim Magalhães praticou-a a sério, como numa faena o diestro, com tudo o que isso implica de risco, de falhanço e desastre. Agora ainda subsiste a contra-corrente pela mão de António Guerreiro, de Manuel de Freitas, de uma ou outra pessoa da geração mais nova.
[Q]uem manda nas redacções não tolera que se diga a verdade sobre uma obra má vinda de um bonzo poderoso. Daí a confusão gerada sobre boa e má literatura, daí os equívocos, os temores e a degradação a que temos de assistir”.

sábado, julho 05, 2008

NUNO JÚDICE


DEMOCRACIA

Fui dar com a democracia embalsamada, como
o cadáver do Lenine, a cheirar a formol e aguarrás,
numa cave da Europa. Despejavam-lhe por cima
unguentos e colónias, queimavam-lhe incensoe
haxixe, rezavam-lhe as obras completas do
Rousseau, do saint-just, do Vítor Hugo, e
o corpo não se mexia. Gritavam-lhe a liberdade,
a igualdade, a fraternidade, e a pobre morta
cheirava a cemitério, como se esperasse
autópsias que não vinham, relatórios, adêenes
que lhe dessem família e descendência. Esperei
que todos saíssem de ao pé dela, espreitei-lhe
o fundo de um olho, e vi que mexia. Peguei-lhe
na mão, pedi-lhe que acordasse, e vi-a tremer
os lábios, dizendo qualquer coisa. Um testamento?
a última verdade do mundo? «Que queres?»,
perguntei-lhe. E ela, quase viva: «Um cigarro!»

Nuno Júdice, A Matéria do Poemas, Dom Quixote, 2008, p. 45

segunda-feira, junho 23, 2008

OSKAR KOKOSCHKA / ANA TERESA PEREIRA



Os quadros que Oskar Kokoschka pintou em Polperro. Um mundo em movimento, nuvens, mar, rochas, casas, barcos de pesca e uma ou duas gaivotas em primeiro plano. O meu pai tinha um álbum de Kokoschka e eu já conhecia os quadros muito antes de os descobrir nas galerias.

Os invernos eram longos e eu passava-os a folhear álbuns de pintura, a ler livros policiais, a desenhar, a ouvir os pescadores contarem histórias de piratas. E a pensar em Lizzie.

(imagem de Oskar Kokoschka, Polperro II; texto de Ana Teresa Pereira, do seu último livro, O Fim de Lizzie, ed. Biblioteca de Editores Independentes, nº 34, 2008, p. 133)

quarta-feira, junho 18, 2008

E NÃO SE PODE DISSOLVER O POVO?



Os irlandeses, em referendo, na passada sexta-feira, votaram contra o Tratado de Lisboa. O referendo ao Tratado de Lisboa apenas se realizou na Irlanda porque a constituição irlandesa assim o obriga: nos restantes 26 países da União Europeia o Tratado tem sido – e deverá continuar a ser – rectificado pelos parlamentos de cada país. A questão que este não dos irlandeses coloca perante a “construção europeia” relaciona-se com a democraticidade dessa mesma construção. Senão vejamos: toda a construção do que é hoje a União Europeia tem sido feita à revelia dos cidadãos (o caso português é um bom exemplo: desde a adesão à então CEE, até este Tratado, aprovado pelo parlamento português, passando pela entrada no euro, nunca os portugueses foram ouvidos em referendo). Os políticos europeus e os eurocratas de Bruxelas desprezam e/ou temem o povo da Europa. No fundo desprezam a democracia, acham-se uma oligarquia de iluminados. Mas, paradoxo, a Europa não é um resultado da democracia e do fim da segunda guerra mundial? Não é, embora imperfeita, a democracia o melhor dos regimes? Para os políticos europeus, eleitos democraticamente, e perante as reacções ao resultado do referendo irlandês – como perante as atitudes anteriores do processo de construção europeia –, parece que eles desdenham da democracia. E, continuação do paradoxo, não foram eles eleitos democraticamente? Talvez por isso se achem no poder de um mandato que os faz ignorar a vontade popular – e de facto faz, durante os quatro anos de duração desse mandato.

segunda-feira, maio 26, 2008

ONDE ESTÃO OS MARCIANOS?


O horizonte de Marte, captado pela sonda Phoenix que hoje pousou no planeta chamado vermelho. E nem sombra de marcianos verdes...

terça-feira, maio 20, 2008

OLIVIER ROLIN



A opinião pública ... As próprias sonoridades da expressão transportavam evocações desagradáveis, águas mornas, odores a cebola, instalação... algo de desbotado e burguês. Quando deixara a França, há uma vintena de anos, não havia «opinião pública», tínhamos opiniões - cortantes, por vezes, mas eram, parece-me, actos que implicavam o espírito, e frequentemente o corpo também. (...). Não nadávamos na espécie de placenta maioritária que agora via alimentando uma multidão mole, uma imensa gelatina de fetos intelectuais. Tirávamos força e orgulho de ser minoritários, de caminhar atrás das bandeiras dos grandes réprobos. A solidão não era uma vergonha.(...). [O]s meus olhos, os meus ouvidos, que um exílio prolongado tinham tornado ingénuos, não viam nem ouviam agora senão banalidades de percentagens e de gestão - de negócios, de economia, de carreira, de texto, de sentimentos. Submetíamos as questões mais graves, as mais cívicas - a pena de morte, a sobrevivência ou extinção de um povo -, não à arbitragem das ideias, nem mesmo aos artíficios da eloquência, mas sim às flutuações de sinusóides projectadas por máquinas. Já não reconhecia nesse país, onde se pretendia agora julgar as causas humanas através de estatísticas que se geram umas às outras, onde a vida e a morte, o bem e o mal, a honra e a infâmia se calculavam em parcelas do mercado, a nação a que havíamos chamado, noutros tempos, grande, e onde de qualquer modo o espírito não tinha entregado todos os seus poderes às caixas registadoras dos comerciantes.


Olivier Rolin, Porto-Sudão, Edições Asa, Trad. de João Duarte Rodrigues, 1995, pp. 22, 23

domingo, maio 11, 2008

JEAN-JACQUES ROUSSEAU E OS LIVROS


Uma mulher chamada Tribu, que era famosa pelo aluguer de livros, fornecia-mos de todos os tipos. Bom e mau, tudo era admitido; eu nunca escolhia e devorava tudo com a mesma avidez. Lia no escritório, lia na rua, quando me mandavam a algum lado, lia na casa de banho, horas inteiras, esquecendo-me de tudo; não fazia mais do que ler, e tanto lia que a cabeça me andava à roda. O meu patrão vigiava-me, apanhava-me, sovava-me e apoderava-se dos livros. Quantos volumes foram destruídos, queimados ou atirados pela janela! Quantas obras ficaram incompletas na loja da Tribu! Quando não dispunha de outra coisa, pagava-os com camisas, gravatas, e roupas e todos os domingos, sem falhar um, entregava-lhe os três soldos que me davam como gorjeta.


Jean-Jacques Rousseau, Confissões, Livro Primeiro.

sexta-feira, maio 09, 2008

DIAMANDA GALÁS: A VOZ DE ORFEU


Ontem, Diamanda Galás voltou à Casa da Música, no Porto. Uma figura vestida de preto ao piano gritava, modulava o grito, como o oleiro modula o barro. A voz/grito de Diamanda Galás parece ter feito o percurso de Orfeu: ela foi ao inferno e voltou. O inferno de Diamanda Galás é a sida, ou o genocídio de um milhão de arménios pela Turquia. É a denúncia de factos como estes que torna a música de Diamanda Galás politizada. O som da sua voz, única, ampliado pelo sistema sonoro, fica a ressoar dentro do ouvido. Penetra o ouvido. É um acto físico entre Diamanda e os espectadores. Quando as palavras são importantes, elas são de Pasolini, Baudelaire ou Lorca, ou fazem uma revisitação muito própria de canções da música pop ou de cantores como Edith Piaf ou Johnny Cash, como acontece neste seu último disco, "Guilty, Guilty, Guilty", uma "compição de trágicas e homicidas canções de amor".

quinta-feira, maio 01, 2008

DIA DO TRABALHADOR


Um dos maiores triunfos dos situacionistas foi ver reaparecer nas paredes, em 1968, durante a greve geral selvagem, a palavra de ordem dada por Debord em 1952: «Ne travaillez jamais» [«Não trabalhem nunca»]. À crítica de não levarem em conta a realidade do trabalho, respondem [os situacionistas] que «quase nunca trataram de outro problema que não o do trabalho na nossa época: as suas condições, as suas contradições, os seus resultados» (IS, 10/67). Nunca produziram análises detalhadas sobre o mundo do trabalho e sobre as lutas operárias como fez Socialisme ou Barberie, mas observaram que o conjunto das actividades sociais, em particular o consumo dos lazeres, obedece a uma extensão da lógica do trabalho. O lugar de onde a sociedade extrai o seu sentido e a sua justificação, e que determina a identidade dos´indivíduos, está em vias de se transferir do trabalho para os chamados «lazeres».

Anselm Jappe, Guy Debord, Antigona, 2008, p. 120

segunda-feira, abril 28, 2008

MERIDITH MONK


Meridith Monk esteve no passado sábado em Lisboa, onde deu um concerto. Aqui fica um excerto do seu "grito" e outro excerto da crítica de João Bonifácio no Público de hoje.
O trabalho de Meredith Monk centra-se essencialmente no significado primordial da linguagem. Se antes de os homens "aprenderem" uma linguagem falada comunicavam por sons (que serviam de aviso, chamada, etc.), Monk faz numa "canção" o caminho oposto: parte de uma palavra para chegar a um som. Pega numa palavra, divide-a silabicamente, repete um fonema e torce-o e retorce-o em termos de amplitude vocal e extensão, tornando-a dúctil, como se se tratasse de uma criança a experimentar palavras, ainda antes de perceber que uma palavra é uma representação e que por baixo de uma palavra há uma emoção.

quarta-feira, abril 16, 2008

AS MULHERES E O PODER


Aristófanes, dramaturgo grego, escreveu uma comédia intitulada Lisístrata (411 a. C.) onde as mulheres fazem greve de sexo para que os maridos ponham fim à Guerra do Peloponeso. Quase dois mil e quinhentos anos depois as mulheres têm acesso à instituição militar; podem servir a pátria em combate, lado a lado com os homens. Para muitas (os) trata-se de algo de bom: o reconhecimento de uma igualdade de género. Mas a guerra é algo de mau.
Em Espanha, o novo governo de Zapatero tem como ministra da defesa uma mulher, Carme Chacón, professora de direito constitucional. Por cá, Sócrates nunca pensaria em dar a pasta da defesa a uma mulher, e no entanto o PS tem uma especialista em defesa, Maria Carrilho.
A questão pode ser colocada nestes termos: é possível que ao conquistar o poder as mulheres o transformem em algo diferente, para melhor, em relação ao que é o poder exercido pelos homens? Creio que a resposta é negativa, não só pelos exemplos – Margareth Thatcher, Condoleezza Rice – mas porque o poder (político, económico) é em si algo de negativo, algo que visa submeter o outro.

quinta-feira, abril 03, 2008

Ana Paula Inácio


Este poema tem como hipotexto
o Florbela Espanca espanca de Adília Lopes
e o Livro de Mágoas da Florbela
não me interessa quanto valem
na cotação da bolsa literária -
ainda não gozei nenhuma e
bolsa que me interesse
só mesmo a do canguru
mas tu não és minha mãe
nem meu pai, ou tia, ou
irmão, pseudo-Electra -
nem do seu mainstream.
Este poema é dedicado
à minha amiga Mónica
que faz ioga aos sábados de manhã,
cabeleireiro e depilação 2 vezes por mês
(cf. poema anterior)
luta contra uma auto-estima precária
mas sabe o que quer
quando lourifica o cabelo
como 43, 33 % das mulheres
com idade > 40 anos,
licenciadas,
em Portugal,
no ano de 2004:

«falar, falar, falar
a este àquele
a toda a gente
e não falar a ninguém»

«Bom dia, meu amor» ou
«Bonjour, tristesse»
como dizia Françoise Sagan
ao seu amante
trocado
por falsos versos.


Ana Paula Inácio nasceu no Porto em 1966. Publicou dois livros de poesia, As Vinhas do Meu Pai (Quasi, 2000) e Vago Pressentimento Azul por Cima (Ilhas, 2000), e um de contos, Os Invisíveis (Quasi, 2002). O poema aqui publicado faz parte do número 9 da revista Telhados de Vidro (Novembro de 2007).

terça-feira, abril 01, 2008

A MÁ EDUCAÇÃO (TECNOLÓGICA)


O episódio do telemóvel na Escola Carolina Michaelis demonstra que para que algo exista, tenha relevância mediática, são necessárias imagens. As palavras, a palavra que acompanhava a honra de um homem (ou mulher), a palavra como narrativa, perdeu todo o seu valor. Se aquela disputa por um telemóvel ente professora e aluna não fosse filmada por outro telemóvel e depois colocada no you tube, este acto de violência seria um dos muitos calados nas escolas portuguesas. Desta situação, com a sua consequente cobertura mediática, podemos tirar uma lição sobre a importância que as novas tecnologias desempenham na sociedade actual, uma sociedade em permanente conexão, onde os meios tecnológicos acabam por ser extensões do corpo dos indivíduos. Nesse sentido, este caso parece ser um case study não tanto sobre a violência escolar mas sobre a forma como funcionam hoje os média e a sua relação com a sociedade.
Quanto à situação em si, a “agressão” da aluna à professora, ela demonstra, para além da inversão de papéis, num local extremamente violento como uma escola, uma total incapacidade por parte da docente de lidar com a situação. A aluna devia ter sido expulsa da aula.

domingo, março 30, 2008

JORGE LUIS BORGES


Os Borges

Nada ou bem pouco sei dos meus maiores
Portugueses, os borges: vaga gente
Cumprindo em minha carne, obscuramente,
Seus hábitos, rigores e temores.
Ténues como se não tivessem sido
E alheios aos trâmites da arte,
Indecifravelmente fazem parte
Do tempo e da terra e do olvido.
Melhor assim. Cumprida a sua ideia,
São Portugal, são a famosa gente
Que forçou as muralhas do Oriente
E ao mar se deu e ao outro mar de areia.
São o rei que no místico deserto
Se perdeu e o que jura estar desperto.

in O Fazedor, Obras Completas II, ed. Teorema, 1998, Trad. Fernando Pinto do Amaral, p. 206

terça-feira, março 18, 2008

DIOGO PIRES AURÉLIO


RELER DURREL




sugiro o verão para as grandes metáforas do saber
as intermináveis certezas de um só dia apavoradas
p'lo cair da tarde em meio do labirinto
à hora em que desperta o minotauro e o cio enreda
cada frase em mil projectos de minúcia

á beira ti o verso é mais precário e o tempo
das falésias se desprende em símbolos antiquíssimos
desfaz a teia de penélopes traindo enquanto esperam
outros rumos nos incautos remos do dizer

e se eu disser que os peixes se dissolvem
no azul inclino a fala para outras
mais subtis razões que o vinho ou a quimera esquecem
no bater de cada sílaba e no susto que a percorre

in A Herança de Holderlin, Assírio & Alvim, 1978, pp. 15-16


Diogo Pires Aurélio nasceu em 1946. É professor universitário de filosofia e ensaista. A Herança de Holderlin é o seu único livro de poesia. Em 1984 publicou um livro de crítica literária, O Próprio Dizer (IN-CM, col. Plural).