segunda-feira, abril 27, 2009

BIG BROTHER, 8


PODE HAVER UMA DERIVA TOTALITÁRIA EM PORTUGAL?


O que me preocupa não é nenhum dos cenários clássicos das ditaduras do passado, mas sim a deriva autoritária no presente, porque, pela sua inconsciência, desleixo e, nalguns casos, ideias muito erradas sobre a democracia, não possam estar a preparar um mundo que será o ideal para exercer o poder como "mando". Se aparecer alguém que queira "mandar" mais do que deve tem à sua disposição muitos instrumentos que, em plena democracia, lhes estamos a preparar.

(...)

Mas não é apenas a conjuntura, muito dependente das vicissitudes do Primeiro-ministro, é também a estrutura de um estado que está a coleccionar leis e práticas muito pouco democráticas, com pretexto na segurança, no combate à fuga ao fisco, no reforço unilateral dos direitos do estado em detrimento dos direitos dos cidadãos, na rarefacção dos lugares onde o indivíduo é livre sem ser controlado electronicamente em todos os seus actos. Eu nem quero imaginar o que pode fazer uma variante de uma PIDE moderna com os instrumentos e as bases de dados a que pode aceder no estado, desde a do ADN, à da Via Verde, ao Cartão do Cidadão e os seus "números" interligados, com as escutas e procuras na Internet e nos telemóveis, às câmaras de videovigilância que proliferam por todo o lado, etc., etc. De manhã à noite, todo o meu percurso, o dinheiro que gasto, os livros que compro, onde almoço e com quantas pessoas, se passo pela Rua do Carmo, se entro no Sheraton ou se vou a um bar de alterne, que palavras procuro no Google, os bilhetes de avião ou comboio, tudo, tudo, tudo pode hoje ser procurado, sistematizado, devassado. Com o modo como o PS quer acabar com o sigilo bancário, com o crescente fim do ónus da prova pelo estado no fisco e agora em tudo o resto, estamos a construir uma sociedade vigiada e controlada, sempre pelas melhores e mais "eficazes" razões, mas que é um maná para quem começar a abusar da lei.
E mais: se houver uma deriva totalitária ela começará por aí, pela utilização destes novos instrumentos instalados por governantes yuppies sem respeito pelas liberdades, e para quem a palavra "indivíduo" é um anátema e o estado um dogma racional. Todas as comissões reguladoras, todas as "entidades", todas as múltiplas instâncias que nos deviam "proteger" da violação dos nossos dados, defendendo a nossa privacidade, acabarão por ser controladas pelo melhor método, pela escolha das pessoas certas para os lugares certos, pela crescente aprovação de leis que as tornam ineficazes, pela redução ao quixotesco, arcaico e pouco moderno dessas preocupações antiquadas com a liberdade contra a eficácia e comodismo das novas tecnologias.
Neste 25 de Abril preocupa-me estarmos a construir a perfeita sociedade totalitária em plena democracia. A preparar o órgão, a polir a função. Só falta haver alguém que o queira usar, que tem tudo preparado. Por nós.



José Pacheco Pereira, in Público de 25-04-09 e Abrupto, selecção e sublinhados meus.

sábado, abril 25, 2009

A LIBERDADE NÃO ESTÁ A PASSAR POR AQUI


Quando se fala de liberdade como algo plenamente atingido, algo vai mal no nosso reino. Está-se a escamotear que a liberdade política (e estou tão só a falar da liberdade política, porque a liberdade em sentido lato é impossível de alcançar) é algo que se constrói no dia-a-dia, algo que ameaça subitamente desaparecer perante novos poderes. Existe um discurso político estúpido que dá a liberdade política como algo de completamente adquirido e a censura como algo que acabou com o 25 de Abril. Nada mais errado. Na verdade existem sectores da sociedade portuguesa que nunca foram abalados pela revolução; outros adaptaram-se à democracia espectacular.
Os magistrados são um dos poucos sectores da sociedade portuguesa que se mantêm tão fascista quanto eram antes de 25 de Abril. Alguns acontecimentos, bastante mediatizados, ocorridos nos últimos anos dão-nos a prova disso. No caso Casa Pia, assistiu-se ao linchamento público de alguns membros do Partido Socialista; à prisão preventiva de pessoas que, ou já foram declaradas inocentes, ou ainda aguardam o final do julgamento. Mas o caso Casa Pia veio apenas mostrar como era a justiça portuguesa, como era tão fácil acusar e colocar na cadeia qualquer pessoa. E mesmo depois da revisão do Código do Processo Penal, motivada talvez pelo caso Casa Pia, continua a ser bastante fácil para os magistrados (juízes e Ministério Público) restringir a liberdade de pessoas por simples calúnias. Tudo se passa num sistema paralelo, fortemente corporativo e sedento de um poder que não tem – o poder político. É um sistema onde predomina a mediocridade, a estupidez, a ignorância (qual é a formação dos nossos magistrados? O que é necessário para se ser juiz ou delegado do ministério público? Que formação em Ética, por exemplo, têm estes doutores e doutoras?), a insensibilidade, a ausência de reflexão sobre o sistema judicial, que termina num lugar gerador por excelência de crime: a prisão. A sociedade apenas pede justiça, não quer saber como ela é aplicada, que crimes se cometem nas prisões. É claro que sem o sentimento de segurança não há liberdade – liberdade, por exemplo, de circular na rua à noite. Mas essa é uma questão a que os magistrados estão a leste.
O que importa a determinados magistrados vai para além da sua carreira, de acusar, de vencer processos, por vezes de forma promíscua pelas relações que existem entre Ministério Público e juízes. O que importa a determinados magistrados é alargar o seu campo de acção, fazer da justiça um terreno de salvação de lutas políticas perdidas. Um caso concreto: Maria José Morgado. Esta ex militante maoista dedica-se agora a perseguir corruptos especialmente no futebol. O futebol cheira a um mundo mafioso, de facto. Mas Maria José Morgado, na sua ânsia contra os corruptos, no seu protagonismo, faz demasiado lembrar a sede de sangue que a ex dirigente do PCTP-MRPP teria numa chamada democracia popular como a China.
Outro caso concreto: Cândida de Almeida. A procuradora do DCIAP tornou-se na responsável por um processo demasiado quente: o Freeport. Foi ela quem foi buscar o processo que envolve, ainda que indirectamente, o nome de Sócrates. Ou seja, e se não estou errado, existindo este processo há mais de quatro anos, porque razão Cândida de Almeida o foi “desenterrar” agora, nas vésperas de eleições? Porque o não fez antes? A batata parece quente demais para a procuradora que, arrependida, faz agora a defesa do Primeiro-Ministro. Não podia estar calada? Creio que Cândida de Almeida tem a ilusão que consegue estar acima do Presidente da República: enquanto defender Sócrates, ela está a segurar o governo, se deixar de defender o PM está a demitir o governo.

segunda-feira, abril 20, 2009

J. G. BALLARD (1930-2009)


De J. G. Ballard lembro-me de um documentário transmitido pela RTP-2 onde era visível a denúncia do mundo de betão das cidades dormitórios – um mundo desertificado que Ballard combateu através da sua obra. Não foi só um escritor de ficção científica, mas talvez tenha sido dos escritores de FC que mais notoriedade teve, mercê das adaptações das suas obras literárias ao cinema. Pensar o mundo de hoje implica estar atento ao que a ficção científica nos tem legado, e por isso a obra de Ballard é uma obra para ser pensada. Mas, ao mesmo tempo uma obra para ser usufruída, entre o apocalipse e a utopia.
Do livro As Vozes do Tempo (editado pela Caminho, em 1992, numa saudosa colecção que misturava ficção cientifica e policial) fica aqui o primeiro parágrafo do conto “O jardim do tempo”:
Ao cair da noite, quando a imponente sombra da Villa Palladin cobria o terraço, o conde Axel abandonou a biblioteca e desceu, por entre as flores do tempo, a larga escadaria rococó. A figura alta, imperiosa, com um paletó de veludo preto, um alfinete de gravata em ouro, cintinlando por debaixo da barba estilo George V, e uma bengala firmemente segura na mão de luva branca, observava indiferente as delicadas flores cristalinas. Da sala de música, enquanto a mulher tocava um rondó de Mozart, ouvia-se o som do cravo que ecoava e vibrava nas pétalas translúcidas.

domingo, abril 05, 2009

ANTÓNIO RAMOS ROSA


O GRITO CLARO

De escadas insubmissas
de fechaduras alerta
de chaves submersas
e roucos subterrâneos
onde a esperança enlouqueceu
de notas dissonantes
dum grito de loucura
de toda a matéria escura
sufocada e contraída
nasce o grito claro

António Ramos Rosa, Antologia Poética, D. Quixote, 2001, p.41