segunda-feira, agosto 24, 2009

JORGE LUIS BORGES (nascido há 110 anos)


BORGES E EU

Ao outro, a Borges, é que acontecem as coisas. Eu caminho por Buenos Aires e demoro-me, talvez já mecanicamente, na contemplação do arco de um saguão e da cancela; de Borges tenho notícias pelo correio e vejo o seu nome num trio de professores ou num dicionário biográfico. Agradam-me os relógios de areia, os mapas, a tipografia do século XVIII, as etimologias, o sabor do café e a prosa de Stevenson; o outro comunga dessas preferências, mas de um modo vaidoso que as converte em atributos de um actor. Seria exagerado afirmar que a nossa relação é hostil; eu vivo, eu deixo-me viver, para que Borges possa urdir a sua literatura, e essa literatura justifica-me. Não me custa confessar que conseguiu certas páginas válidas, mas essa páginas não me podem salvar, talvez porque o bom já não seja de alguém, nem sequer do outro, mas da linguagem ou da tradição. Quanto ao mais, estou destinado a perder-me definitivamente, e só algum instante de mim poderá sobreviver no outro. Pouco a pouco vou-lhe cedendo tudo, ainda que me conste o seu perverso hábito de falsificar e magnificar. Espinosa entendeu que todas as coisas querem perseverar no seu ser; a pedra eternamente quer ser pedra, e o tigre um tigre. Eu hei-de ficar em Borges, não em mim (se é que sou alguém), mas reconheço-me menos nos seus livros do que em muitos outros ou no laborioso toque de uma viola. Há anos tratei de me livrar dele e passei das mitologias do arrabalde aos jogos com o tempo e com o infinito, mas esses jogos agora são de Borges e terei de imaginar outras coisas. Assim, a minha vida é uma fuga e tudo perco, tudo que é do esquecimento ou do outro. Não sei qual dos dois escreve esta página.

Jorge Luis Borges, Obras Completas, vol. II, O Fazedor, tradução de Fernando Pinto do Amaral, Lisboa, Editoral Teorema, 1998, p. 181. (Via Bomba Inteligente)

sexta-feira, agosto 07, 2009

PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS


Uma notícia do Público de hoje (p. 7) dá conta de que a Associação Américana de Psicologia aprovou orientações para que “perante pedidos de clientes que lhes peçam ajuda, os psicólogos devem apostar noutras abordagens que não visem a mudança de orientação sexual (..)”. Ora, se alguém devidamente informado, sobre as formas como se processa a tentativa de mudança de orientação sexual (o dever de esclarecimento a que devem estar sujeitos psicólogos, psiquiatras, médicos, psicoterapeutas) quiser, ainda assim, submeter-se a um tratamento para mudar de orientação sexual, porque razão não deverá de existir algum profissional “psi” que o faça? A questão não me parece estar relacionada com os direitos dos homossexuais ou com conceitos como o de homofobia, mas com a transparência e a forma como os “psis” exercem a sua profissão. Ou seja, os “psis” são prestadores de serviços, como os advogados, solicitadores ou outros profissionais liberais. É evidente que como qualquer prestador de serviços há pedidos que não podem ser satisfeitos, quer porque estes não estão dentro das competências do psi, quer porque razões éticas, legais ou pessoais levam a que o psi não aceite o pedido que lhe é feito. Tudo deve ser feito, no entanto, com a maior transparência, verdade e respeito pelo cliente.

domingo, agosto 02, 2009

Miguel-Manso


«ONDE A NOITE CAI SOBRE ANTUÉRPIA»

há uma tal ventoinha no tecto soprando
um possível começo um hotel um homem
bebendo whisky no balcão do bar

o gelo roça no vidro do copo
o calor atrasa as pás da ventoinha
uma mulher lê uma carta junto à janela sentada
num esquecido cadeirão de vime

é meio -

-dia ouve-se lá fora a claridade de um motor
de automóvel europeu fazendo fazendo a curva de uma rua inquieta
um pouco de cinema algum pó

tem o longínquo nome de Kikwit esta cidade
o nome do hotel não sei - Congo Belga anos cinquenta
a pelicula retrata um tempo colonial

não conheço esta história
sei apenas que a mulher tem um vestido azul
que a carta foi tecida na distância de Antuérpia ao pôr do sol
junto ao porto por um homem que a já não quer

a mulher tem um cigarro ao fim dos dedos a cinza cai
a perna cruzada

o joelho branco apontado ao janelão
que dá para a rua

o homem no balcão é o dono do hotel
é português usa fato gravata impecável no pescoço suado
tem um livro dentro do bolso do casaco e espera alguém
olha a mulher sem olhar a mulher
dentro dela cai a noite sobre Antuérpia
relê sempre a primeira frase que diz

esteve um dia lindo no teu sorriso

das histórias que desconheço gosto muito desta
um lóbi de hotel uma cidade chamada Kikwit nos anos cinquenta
um homem uma mulher ele impaciente em whisky ela
triste em tabaco

não se conhecem nem se vão conhecer
o homem tem um livro no bolso a mulher o coração partido

entre o bar e o cadeirão de vime há um verso impossível

depois alguém entra a porta abre fecha
nesse intervalo um ruído de vozes calor poeira e comércio
invadem a placitude do lugar

o homem pousa enfim o copo no tampo do balcão
a mulher nem repara (esteve um dia lindo no sorriso dela
há muito tempo)

o português dirige a maior simpatia à
personagem que acaba de entrar - é Jacques-Yves Cousteau
o conhecido oceanógrafo francês

trocam cortesias
o gesto do português convida-o a sentar-se
apontando uma das cadeiras
o livro sai do bolso e vai estender-se na mesinha onde
acabam por deter-se

Cousteau aceita a caneta do português
abre na folha de rosto escreve o seu nome
debaixo do nome desenha um peixe

a mulher amachuca um pouco mais a carta
no gesto de a guardar na mala
levanta-se sai do hotel

consigo vê-la dobrando o edifício à direita
não sei para onde levou o começo de um choro
não sei onde leva aquela rua
desconheço toda a geografia da cidade africana

bem como o fim desta história
apenas que Cousteau subiu para um dos quartos
que o português sentado sorriu na direcção do tecto
com o livro encostado ao peito
desapertou um pouco a gravata
soube-lhe bem o inexistente sopro da ventoinha

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JAPÃO Nº4

usou as mãos como contraponto luminoso da face
centenas de anos antes e depois de no Japão
chamarem a isso Reiki

Miguel-Manso, Contra a Manhã Burra, Mariposa Azual, 2ª ed., pp. 19-21 e 50, 2009.

Miguel-Manso nasceu em 1979. Em 2008 publicou dois livros em edição de autor - Contra a Manhã Burra e Quando Escreve Descalça-se -, que não passaram despercebidos à crítica atenta de poesia que o consagrou (justamente) como revelação de 2008 (António Guerreiro no Expresso). Mercê do título, os seus dois livros foram reeditados pela Mariposa Azual e Trama. A poesia de Miguel-Manso convoca uma pluralidade de "formas", do poema narrativo ao poema culturalista, do poema longo ao poema de um só verso, que acabam por se tornar numa lufada de ar fresco (podendo evoluir para uma corrente de ar) na poesia portuguesa desta década.