sábado, outubro 31, 2009

DEMOCRACIA E ABSTENÇÃO


De um artigo publicado na edição portuguesa da revista Foreign Policy (nº 11, Agosto / Setembro 2009, pp. 76-78) assinado por Paulo Saragoça da Matta, intítulado "O significado da abstenção nas eleições europeias", reproduzo aqui alguns excertos.
(...)
Tal como o Estado moderno ocidental, também a Europa vive uma ficção de democracia. A Europa não teve uma origem democrática, não terá um porvir democrático e, mesmo no seu quotidiano, são mais aparentes do que reais as características daquilo que nos ensinaram ultimamente que deve ser uma democracia. Sim, que a Democracia que hoje nos vendem (e vendem porque a pagamos cara), nada tem que ver com o conceito técnico originário de democracia.
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Será (...) de estranhar que os cidadãos se abstenham nas eleições europeias? Será de causar espanto que os cidadãos, mesmo em eleições nacionais da maioria dos estados menbros se abstenham? Não se vê como. Ninguém sente verdadeira pertença a algo que não escolheu. Por que artes mágicas deveriam os europeus votar para o Parlamento Europeu, se, no quotidiano, nem o parlamento, nem a Comissão, nem o Conselho, se preocupam minimamente com as legitimas aspirações, anseios e desejos dos europeus?
E esse fenómeno nem sequer é típico das instituições europeias. É algo que hoje caracteriza a esmagadora maioria das democracias, sejam elas verdadeiras, ou mais aparentes. O famigerado divórcio entre cidadãos e classe política não é nenhum divórcio. É uma separação de facto, porque a política partidária (no seu mais baixo valor e pior sentido), nem sequer nos permite divorciar-nos dela. Estamos compulsoriamente em comunhão de mesa, leito e habitação com estas "democracias", sem direito ao divórcio.
De que me serve ser um cidadão de um País da União, com os impostos em dia, com capacidade eleitoral activa e passiva, se, no momento em que pretendo exercer os meus direitos, só me posso acercar das instituições arrebanhado numa manada paridariamente disciplinada e ajeazada? Porque razão tenho que votar em listas de partidos se apenas um dos candidatos de uma lista me merece confiança? Porque razão não posso candidatar-me fora das máquinas partidárias, se nenhum partido me dá as garantias de seriedade e probidade de que necessito?
Assim o que me sobra? Abster-me! Dizer "não" aos tais Senhores dos Gabinetes, que sempre continuarão a decidir, comigo ou sem mim, com o meu voto ou sem ele, como lhes aprouver (...).
Restam dois caminhos para fazer cessar esta separação de facto: terminar com o arrebanhamento compulsivo de cidadãos eleitores e elegíveis através de máquinas partidárias - responsáveis pelo grosso dos desmandos que se vivem em quase todos os sistemas políticos de matriz "democrática" -; ou dar uma efectiva representatividade à abstenção. Nem mais, nem menos. Se não é possível no sistema haver uma democracia mais directa (ainda que representativa), então permitam, a todos os Europeus, eleger uma cadeira vazia que os represente.
Aliás, seria um sistema fundamental em todo o lado, Portugal incluído. Que gratificante seria saber que 60% das cadeiras do Parlamento Europeu, e de S. Bento, estavam vazias, não porque os Deputados se encontram a trabalhar fora do plenário, mas porque os abstinentesassim o desejaram. Quanto se pouparia aos erários públicos! Quanto reduziria o défice.
(...)
Haverá então alguma dúvida sobre a razão da abstenção? Nenhuma! A abstenção é a mais pura e simples reacção dos mansos, dos que nada podem fazer contra a maquiavélica simulação democrática em que o sistema aprisiona os cidadãos. A Europa nasceu nos Gabinetes, faz-se nos Gabinetes, e perder-se-á nesses mesmos Gabinetes. É uma questão de tempo, se não houver um afinamento verdadeiraqmente democrático da representatividade do Povo.

sexta-feira, outubro 02, 2009

ÉTICA A VIEGAS


Em Portugal não existem mais de uma dúzia de pessoas, que com o dom da ubiquidade, ocupam todos os lugares que não pertencem ao "povo". São gestores que têm cargos em dezenas de empresas, especialistas em comentário político que estão nos três canais televisivos ao mesmo tempo - e ainda preparam, ou alguém prepara para eles, um comentário para sair na edição de um diário no dia seguinte. Somos uma aldeia bastante pequena, apesar de termos 10 milhões. E temos esses que demasiado obesos ocupam muitas cadeiras. Por exemplo Francisco José Viegas. Actualmente é director da revista Ler e editor da Quetzal, além de escritor premiado. E também blogger (?). Imagino que dorme pouco, e se dormisse menos continuaria com os seus programas televisivos e radiofónicos sobre livros. Ora, nesta promiscuidade, Viegas utilizou o último número da revista Ler (o de Outubro) para promover o tão promovido 2666 de Roberto Bolaño, que o mesmo Viegas editou na Quetzal. Não é caso único - veja-se a promiscuidade que grassa na secção de Livros do Expresso -, mas é caso para pensar sobre o estado do meio literário português.
Note-se que o calhamaço (mais de 1000 páginas) que Bolaño deixou é o grande tema da actualidade literária. Mas é precisamente por sê-lo que se dá a ver a incompativblidade de funções que FJ Viegas ocupa. Imagine-se o que seria, agora, Paulo Portas ser ao mesmo tempo que é presidente do CDS director de um jornal.

quinta-feira, outubro 01, 2009

PASCAL QUIGNARD


O aparelho de televisão que prescreve as modas e as sujeições era o seu inimigo pessoal. Aquele fundo sonoro divertia o sofrimento, adormecia a rebelião, desligava para sempre os que trabalhavam dos que governavam. O lugar medíocre dessa desconexão era o ecrã acinzentado rodeado de madeira de acaju: os políticos refractavam-se naquele pequeno espelho abaulado onde as massas procuravam seduzir-se. A sociedade expirava sobre aquele vidro leitoso. A vida social tornara-se uma abstracção sem lastro, sem corda de recurso para chamar, sem fim, onde o ideal já não era mais que um corante sarapintado na baixeza, onde a generosidade já não passava de um golpe publicitário de meio minuto.

Pascal Quignard, A Ocupação Americana, Quetzal, 1995, p. 69