quinta-feira, dezembro 31, 2009

Renata Correia Botelho


as amoras caídas e os limos
subindo a encosta, este dia
mudo e a solidão

dos barcos que largam do porto
enquanto dormes

*
o gato espia do telhado
a vida a partir
em cada comboio que passa,

o tempo que se arrasta
na dor metálica dos carris.

é feriado nas mãos,
trago uma canção triste
e o teu rosto no bolso.

*
o vento agita as sombras
na minha mão, lança-me
vultos, um nome em chamas, versos
afiados contra os dedos.

sempre pressenti a distância mínima
entre o poema e o medo
de não saber regressar a casa.

*
já ninguém nos toca à porta
a vender cerejas.

devíamos talvez lembrar
à terra o nosso nome

plantar sílabas frescas
que nos matem a sede

ter um pingo de esperança
na morte depois da vida.

Renata Correia Botelho, poemas de Um Circo no Nevoeiro, Averno, 2009.


Renata Correia Botelho nasceu em 1977 em S. Miguel, Açores, filha do poeta Emanuel Jorge Botelho. Em 2001 publicou Avulsos, por causa (edição de autor, fora do mercado) e em 2009 Um Circo no Nevoeiro (Averno). Tem colaboração nas revistas Magma e Telhados de Vidro. A sua poesia (a avaliar pelo seu último livro), apresenta-se como uma renovação de um lirismo que tem andado arredado das novas poéticas.

sábado, dezembro 26, 2009

INÊS LOURENÇO


Possessio maris

para Adília Lopes


É tão banal no poema
saber dourar a cópula. Como, ao
amar, resistir à boa humilhação de
babélica virtuosamente
foder e ser fodido. Assim

tão cruamente seja dita
a bíblica prática do conhecimento
dos corpos livre de intertextos e
arredada da culpa e das pestes
racionais.

As almas sensíveis, minha amiga,
não acham sobre-humano nem
muito estético esse acto de achada
eficácia. Desdenham e enjoam
o látego terminal do gozo. Eternos
nautas em seco, aportam a doutos

ensaios e outras posições
elípticas, esquecidos do genitivo
de posse e das declinações trágico-marítimas
onde nunca ninguém possuiu
sem ser possuído.

Inês Lourenço, in Logros Consentidos, & etc, 2005, p. 18.

sábado, dezembro 12, 2009

Pedro Mexia


ELAS PASSAM

Elas passam, magras estudantes,
julgando-se felizes talvez,
passam e passam, as pernas e os dentes
mostram saúde e altivez

Os jeans ao atravessarem a nave
maior do centro comercial
estreitam a cintura suave
numa falsa aparência virginal.

Vê-las alegra e entristece,
o seu corpo é uma matéria mais pura,
e cada uma, como se soubesse,
mostra-se obstinada e segura.

Passam e passam, são toda uma tarde,
sentinela que em mim sente
esta palha seca que arde,
que às vezes engana, mas não mente.

Poder tê-las sem qualquer dano
e à sua alegre inconsciência,
misturando nos dedos a pele, o pano,
os ossos, a transparência.

A tarde fez-se a hora de regresso,
o coração sussura e quase cai
aos pés das raparigas a quem peço
«de novo, levantando-me, passai»

Pedro Mexia, in Poemas Portugueses - Antologia da Poesia Portuguesa do Séc. XIII ao Séc. XXI, Porto Editora, Porto, 2009, pp. 2095-2096 ( o poema é retirado do livro "Eliot e Outras Observações", 2003).

Pedro Mexia nasceu em Lisboa, em 1972. Antes de publicar o seu primeiro livro de poemas (Duplo Império, 1999, edição de autor), foi responsável por uma antologia de poesia que reunia poetas dos anos 80 e 90 - Antologia da Novíssima Poesia Portuguesa, Tomar, 1997. Nesta década publicou os livros de poesia Em Memória (2000), Avalanche (2001), Eliot e Outras Observações (2003), Vida Oculta (2004) e Senhor Fantasma (2007). É crítico literário e cronista do jornal Público, director interino da Cinemateca e participa num programa de debate na TSF (Governo Sombra). Publicou três volumes de crónicas, resultado da sua intensa actividade como Blogger. Em 2002 José Ricardo Nunes inclui PM nos volume 9 Poetas para o Século XXI.

sexta-feira, dezembro 04, 2009

FRANZ KAFKA


DIANTE DA LEI

Diante da lei encontra-se um guarda. Um homem do campo aproxima-se dele e pede para entrar na Lei. Mas o guarda diz-lhe que de momento não o pode deixar entrar. O homem pondera e depois pergunta se o deixarão entrar mais tarde. «É possível», responde o guarda, «mas não agora» O guarda afasta-se do portão, aberto como sempre, e dá um passo para o lado; o homem estica-se para espreitar lá para dentro. Ao vê-lo, o guarda ri-se e diz «Se te sentes assim tão atraído, tenta entrar, não obstante o meu veto. Mas presta atenção: eu sou forte. E sou apenas o menor dos guardas. De salão em salão encontram-se guardas cada vez mais fortes. O terceiro é tão terrível que nem eu consigo olhar para ele». O homem do campo não esperava tantas dificuldades: a lei, pensa ele, deveria certamente ser sempre acessível e a todos; mas ao examinar mais de perto o guarda, no seu casaco de peles, com seu nariz comprido e afilado, a barba negra à tártaro, decide que é melhor que o deixe entrar. O guarda dá-lhe um banco e deixa-o sentar-se de um dos lados da porta. Ali ele fica durante dias e anos. Faz várias tentativas para que o deixe entrar, e desgasta o guarda com a sua persistência. O guarda faz-lhe pequenos interrogatórios frequentes, com preguntas sobre a sua terra e muitas outras coisas, mas as perguntas são feitas com indiferença, como grandes senhores as fariam, e terminam sempre com a declaração de que ele ainda não pode entrar. O homem, que se proveu com todo o tipo de coisas para a sua viagem, sacrifica tudo o que tem, independemente do valor, para subornar o guarda. Este aceita tudo, mas sempre com o comentário: «Só aceito para que não penses que esqueceste qualquer coisa» Durante estes muitos anos, o homem observa o guarda constantemente. Esquece os outros guardas, e este primeiro parece-lhe o único obstáculo que o lhe impede o acesso à Lei. Nos últimos anos, ele amaldiçoa a sua falta de sorte, em alto e bom som; mais tarde, à medida que vai envelhecendo, limita-se a resmungar para consigo. Torna-se infantil e, como depois de tantos anos a observar o guarda até já lhe conhece as pulgas da gola do casaco, também àquelas ele suplica, para que o ajudem a fazer com que o guarda mude de ideias. Com o tempo, a sua visão começa a falhar e ele não sabe se o mundo está mesmo a ficar escuro ou se os seus olhos o enganam. No entanto, na sua escuridão está agora consciente do brilho que emana eternamente do portão da Lei. Agora já não lhe resta muito tempo de vida. Antes de morrer, todas as suas experiências durante aqueles longos anos reúnem-se-lhe dentro da cabeça numa só questão, uma pergunta que ele ainda não fez ao guarda. Então, faz-lhe sinal para que se aproxime, uma vez que já não consegue levantar o corpo hirto. O guarda tem de se baixar, pois a diferença de altura entre os dois alterou-se muito, com desvantagem para o homem do campo. «O que queres saber agora?» perguntou o guarda; «és insaciável». «Todos se esforçam para chegar à Lei», disse o homem, «então como é que durante todos estes anos ninguém, para além de mim, pediu para entrar?» O guarda reconhece que o homem atingiu o seu limite e, para que os seus sentidos débeis captem as palavras, grita-lhe ao ouvido: «Mais ninguém poderia entrar aqui, visto que o portão foi feito só para ti. Agora, vou fechá-lo»

"Diante da Lei" in O Abutre e outras Histórias de Franz Kafka, trad. de Noémia Ramos, Estrofes e Versos, pp.17-20