quinta-feira, dezembro 30, 2010

LIVROS EM 2010.


UMA LISTA*

- Nudez, Giorgio Agamben, Relógio d’ Água
- Inverness, Ana Teresa Pereira, Relógio d’ Água
- Que se diga que vi como a faca corta, Miguel Cardoso, Mariposa Azual
- O Nascimento da Filosofia, Giorgio Colli, Edições 70
- A Poesia Ensina a Cair, Eduardo Prado Coelho
- Matteo Perdeu o Emprego, Gonçalo M. Tavares, Porto Editora
- Mulher ao Mar, Margarida Vale de Gato, Mariposa Azual
- Viva México, Alexandra Lucas Coelho, Tinta da China
- Poemas com Cinema, Org. de Joana Matos Frias, Luís Miguel Queirós e Rosa Maria Martelo, Assírio & Alvim

* Esta lista corresponde a livros que li em 2010, editados neste mesmo ano, em Portugal.

UMA SÍNTESE

No ano em que morreu José Saramago, Gonçalo M. Tavares consolidou-se como um “valor” da literatura portuguesa – premiado em França, publicou três livros: Uma Viagem à Índia, Eliot e as Conferências (ambos editados pela Caminho) e Matteo Perdeu o Emprego (vergonhosamente editado pela Porto Editora que, numa lógica de merceeiro estúpido, colou nas capas um autocolante a prometer prémios aos leitores que ligassem para um número de valor acrescentado). Trata-se de uma crescente mercantilização do objecto livro que a consolidação de uma lógica de grupos (Leya, Porto Editora, Fnac) equipara a gadgets como telemóveis, tablets, computadores, plasmas, etc, - veja-se os “catálogos” de sugestões elaborados pela Fnac, Leitura-Bulhosa, Bertrand. Nem as livrarias “alternativas” conseguem escapar a esta lógica de mercantilização do livro (a Livraria Latina, do Porto, foi comprada pelo grupo Coimbra Editora e Leya, ficando com o nome mais ridículo que jamais uma livraria terá tido em Portugal: "Leya na CE Latina").
No entanto continuam a existir espaços de resistência. Para além de mais de duas dezenas de boas livrarias “alternativas” espalhadas pelo país, os leitores muito têm a agradecer a editoras como a Assírio & Alvim, a Relógio d’ Água e muitas outras.
A Mariposa Azual é uma destas editoras. Este ano deu a conhecer duas revelações da poesia portuguesa: Margarida Vale de Gato, com Mulher ao Mar, e Miguel Cardoso com Que se diga que vi como a faca corta, título que aponta para um diálogo com Herberto Helder e não só.
É no campo de batalha da poesia que algo de “bombástico” aconteceu: a publicação de Um Toldo Vermelho por Joaquim Manuel Magalhães, livro que faz a excisão e reescrita de toda a poesia do autor de Dois Crepúsculos. E essa reescrita é de tal forma radical que anula por completo o programa poético que J. M. Magalhães esboçou no poema “Princípio” de Os Dias, Pequenos Charcos (1981): o “voltar ao real”. No campo e contra-campo de batalha que tem sido a poesia portuguesa da última década, algo mudou com o livro de Joaquim Manuel Magalhães: um dos grupos perdeu o seu “pai” tutelar (enlouquecido? Farto de ser ama de leite seco?). Certo é que desde 2008 que a poesia portuguesa se tem vindo a renovar – com o livro de Herberto A Faca não Corta o Fogo, com os livros de Miguel-Manso e este ano com Margarida Vale de Gato e Miguel Cardoso.

segunda-feira, dezembro 06, 2010

Margarida Vale de Gato


DECLARAÇÃO DE INTENÇÕES

Para aqueles que insistem diluir
isto que escrevo aquilo que eu vivo
é mesmo assim, embora aluda aqui
a requintes que com rigor esquivo.

À língua deito lume, o que invoco
te chama e chama além de ti, mas versos
são uma disciplina que macera
o corpo e exaspera quanto toco.

Fazer poesia é árido cilício,
mesmo que ateie o sangue, apenas pus
se extrai, nem nunca pela escrita

um sólido balança, ou se levita.
Então sobre o poema, o artifício,
a borra baça, a mim a extrema luz.

Margarida Vale de Gato, Mulher ao Mar, Mariposa Azual, Lisboa, 2010, p. 9.

Margarida Vale de Gato é tradutora e docente universitária na área da tradução. Mulher ao Mar é o seu primeiro livro de poesia, embora tenha anteriormente publicado alguns poemas em revistas. A inovação poética apresentada neste livro fez de MVG uma das revelações de 2010. Como escreve Hélia Correia no posfácio à 2ª edição de Mulher ao Mar, esta poesia “Não pretende dar origem ao irreconhecível mas ao reconhecível que se estranha, á familiaridade estilhaçada” (p. 73).

terça-feira, novembro 30, 2010

UMA ANTOLOGIA QUE NÃO ME FOI PEDIDA


Camilo Pessanha
Fernando Pessoa
Mário de Sá-Carneiro
Ângelo de Lima
Sophia de Mello de Breyner Andresen
Jorge de Sena
Eugénio de Andrade
Florbela Espanca
Irene Lisboa
Mario Cesariny
António Maria Lisboa
Alexandre O’ Neill
Carlos de Oliveira
António Ramos Rosa
Herberto Helder
Albano Martins
António José Forte
Luiza Neto Jorge
Fiama Hasse Pais Brandão
Gastão Cruz
Fernando Assis Pacheco
Armando Silva Carvalho
António Osório
Nuno Júdice
Joaquim Manuel Magalhães
João Camilo
A M Pires Cabral
Jorge Fallorca
António Franco Alexandre
José Agostinho Baptista
Helder Moura Pereira
Al Berto
Paulo da Costa Domingos
Isabel de Sá
Fátima Maldonado
Luís Miguel Nava
Jorge de Sousa Braga
Adília Lopes
Daniel Maia-Pinto Rodrigues
Teresa Leonor M. Vale
Fernando Pinto do Amaral
António Gancho
Daniel Faria
José Tolentino Mendonça
Carlos Saraiva Pinto
José Miguel Silva
Manuel de Freitas
Ana Paula Inácio
Bénédicte Houart
Mário Rui de Oliveira
Miguel-Manso
Renata Correia Botelho
Miguel Cardoso

Seguindo uma proposta de manuel a. domingos que não me foi endereçada, nem tinha que ser, apresento uma lista para uma antologia de poesia de autores publicados entre 1900 e 2010. (Ao cimo retrato de Luiza Neto Jorge por Escada).

FERNANDO PESSOA


A vulgaridade é um lar. O quotidiano é materno. Depois de uma incursão larga na grande poesia, aos montes de aspiração sublime, aos penhascos do transcendente e do oculto, sabe melhor que bem, sabe a tudo quanto é quente na vida, regressar à estalagem onde riem os parvos felizes, beber com eles, parvo também, como Deus nos fez, contente do universo que nos foi dado e deixando o mais aos que trepam montanhas para não fazer nada lá no alto.
(…)
Que de vezes o próprio sonho fútil me deixa um horror à vida interior, uma náusea física dos misticismos e das contemplações. Com que pressa corro de casa, onde assim sonhe, ao escritório; e vejo a cara do Moreira como se chegasse finalmente a um porto. Considerando bem tudo, prefiro o Moreira ao mundo astral; prefiro a realidade à verdade; prefiro a vida, vamos, ao mesmo Deus que a criou. Assim ma deu, assim a viverei. Sonho porque sonho, mas não sofro o impulso próprio de dar aos sonhos outro valor que não o de serem o meu teatro íntimo, como não dou ao vinho, de que todavia não me abstenho, o nome de alimento ou de necessidade da vida.

Fernando Pessoa / Bernardo Soares, Livro do Desassossego, edição de Richard Zenith, Assírio & Alvim, 2009, p. 190.

Na foto Fernando Pessoa e Aleister Crowley a jogar xadrez. Foto retirada do jornal inglês The Independent

Nota:No dia que fazia 75 anos sobre a sua morte (30 de Novembro de 1935), Fernando Pessoa foi ignorado, tanto pela blogosfera como pelos média tradicionais. O único jornal, de que tive conhecimento, que dedicou espaço a esta data foi... o Jornal de Notícias. Eduardo Lourenço, num depoimento a esse jornal, esclarece a situação em que se encontra Pessoa em Portugal: "(...) Fernando Pessoa é mais vivido por públicos estrangeiros do que aqui, em Portugal. Os Portugueses cansam-se facilmente de tudo, como, aliás, o próprio Pessoa verificou quando disse sermos um povo que nasceu cansado". Que os investigadores da obra pessoana sejam cada vez mais estrangeiros, só confirma este diagnóstico. Mas, sobretudo, realça o quanto Pessoa foi e é mal-amado em Portugal.

sábado, novembro 13, 2010

JORGE ROQUE


CANÇÃO DA VIDA

3

Quero que se foda o sublime. A minuciosa construção do absoluto literário. Assim sem emendas e em rigoroso vernáculo, parece-me mais exacto. Quero que se foda o sublime (desculpem-me a repetição). Prefiro portas fechadas, casas destruídas, chaves de pouco ou nenhum uso para gestos de pouca ou nenhuma glória que são o absoluto onde me posso sentar para beber mais um copo deste vinho que te pinta os lábios e te acende nos olhos esse fulgor de luz, esse pulsar de salto, onde me lanço para voltar ou não voltar, mas ter cumprido do sangue o impulso. Quero que se foda o sublime (começa a saber-me bem repeti-lo, o ritmo sincopado conjugado com a limpidez expressiva). Estou a falar contigo, a viver contigo, a morrer contigo. Estou a dizer-te ama comigo, sofre comigo, morre comigo um pouco mais devagar.

4

Devias querer vida em vez de palavras. Devias saber que as palavras não choram, não riem. Devias, sobretudo, aprender que estas só. Nenhuma palavra poderá viver ou morrer no teu lugar. Escreveste na mensagem que me enviaste: eu não vou poder ser feliz. Senti que estavas a trocar a vida por poesia e nem a dor consegui ouvir. A violência do erro tudo calava e do grito que desesperado lançavas, nem dor nem poesia restavam.

Jorge Roque, "Canção da vida", Telhados de Vidro / 14, pp.89-90, Averno, 2010.

domingo, novembro 07, 2010

GASTÃO CRUZ


JOVENS À PORTA DO CHIADO


Vêem-se ao telemóvel como ao espelho
nos nomes e nos números buscando
o lodo morno dum profundo poço

O seu mundo está preso àquele fio
de presente irreal que não explica
o facto de ser a pele a pele ainda

Tudo fica no raio do olhar
brevemente fictício a vida reduzindo
ao enredo menor das chamas perdidas

das mensagens que vindas ou não vindas
fazem tremer do dia o edifício
Disso vivem fingindo que se vêem

a si somente enquanto o mundo escorre
com a rapidez do dia para o poço

Gastão Cruz, Escarpas, Assírio & Alvim, 2010, p.39.

segunda-feira, outubro 25, 2010

Teresa M. G. Jardim


TELEVISÃO

A televisão é uma fotografia de guerra
que mexe. É um beijo mais largo que a minha cabeça.
É uma caixa de sabão que não se cansa de lavar mais branco.
E faz muita companhia, a mim, aos livros, ao cão.

O arroz está mais caro. A água e a luz também.
Eu estou mais gorda e não passou na televisão:
a minha televisão é sensível, preocupa-se comigo,
é como se fosse uma pessoa; melhor
que as pessoas amigas que me contam as rugas
e os cabelos brancos, resmungam
por tudo e por nada, calçariam luvas
para apanhar do chão um livro
ou mesmo o meu coração se caísse.

Teresa M. G. Jardim, Jogos Radicais, Assírio & Alvim, 2010, p. 19

Teresa M. G. Jardim nasceu no Funchal em 1960. Nos anos 80 publicou poemas no DN Jovem e no Anuário de Poesia da Assírio & Alvim. Professora e artista plástica, estreia-se em livro com Jogos Radicais. A sua poesia aproxima-se de um quotidiano onde a televisão convive com os gatos e os livros. (A fotografia acima foi retirada da página do facebook da autora).

quinta-feira, outubro 21, 2010

DAVID MOURÃO-FERREIRA


Brilha nas mãos do sol o gume de um cutelo
O pescoço da Lua é que há-de ser o alvo

***

Os meses vão batendo à nossa porta
Sempre fingindo que são deuses diversos

***

TRENO

Ai a tua nudez Ai a tua mudez
Ó taça de cristal sobre veludo preto

Quando voltas de novo a ser aquele vento
que antes do amor se começa a mover

Poemas do livro Matura Idade, (1ª edição 1973) reeditado (8ª edição) pela Arcádia, 2010.

quarta-feira, outubro 13, 2010

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Leitura de poemas sobre a temática da água e do fogo amanhã, 14 de Outubro, pelas 21h00 no Café Progresso. Os poemas serão lidos por Celeste Pereira e Ana Afonso.
Aqui fica o poema de António Ramos Rosa cujos dois primeiros versos encimam o cartaz

Escrevo-te com o fogo e a água. Escrevo-te
no sossego feliz das folhas e das sombras.
Escrevo-te quando o saber é sabor, quando tudo é surpresa.
Vejo o rosto escuro da terra em confins indolentes.
Estou perto e estou longe num planeta imenso e verde.

O que procuro é um coração pequeno, um animal
perfeito e suave. Um fruto repousado,
uma forma que não nasceu, um torso ensanguentado,
uma pergunta que não ouvi no inanimado,
um arabesco talvez de mágica leveza.

Quem ignora o sulco entre a sombra e a espuma?
Apaga-se um planeta, acende-se uma árvore.
As colinas inclinam-se na embriaguez dos barcos.
O vento abriu-me os olhos, vi a folhagem do céu,
o grande sopro imóvel da primavera efémera.

(de Volante Verde, 1986)

terça-feira, outubro 05, 2010

REPÚBLICA: 100 ANOS


Hoje, cem anos depois da implantação da República torna-se difícil compreender o que foi esse tempo, entre 1910 e 1926. Talvez um tempo de paixão pela política, de crença na política como algo que iria modificar a vida das pessoas, mudar de vida, mudar de regime. Paixão e crença e não calculismo, estratégia e carreirismo.
A grande turbulência política, o espírito positivista, a perseguição às entidades religiosas, a participação de Portugal na I Guerra Mundial – com baixas significativas –, a liberdade de imprensa num acentuado nível, a aposta no ensino como forma de libertação do povo. Alguns dos aspectos positivos e negativos da I República.
Destes aspectos vejamos um em particular, o que hoje, nas comemorações do centenário mais se destacou: a aposta na educação. O governo inaugurou cem escolas (algumas foram apenas remodeladas), talvez para tentar contrabalançar as centenas que tem vindo a fechar. Cem anos depois da proclamação da República exigia-se uma outra atitude política, uma outra capacidade de ver o presente. O que se torna hoje necessário não é apenas a aposta na educação, vista como forma de alfabetizar as crianças. O que hoje é necessário é uma outra forma de pensar a educação. Já não se trata de combater o analfabetismo mas a iliteracia.

quarta-feira, setembro 22, 2010

JOÃO LUÍS BARRETO GUIMARÃES


AS EMPREGADAS FABRIS

Arregaçam a manhã (as empregadas fabris)
pernas como tesouras
recortando a calçada
ferem o lenho da mesa com
sortes
de boletim. Uma sirene as trouxe aqui
(às
empregadas febris)
ancas de esboço perfeito sob
vestes de operária
tocam umas nas outras como
se
inda fossem meninas mas a
delas que vai noivar já
traz o primeiro a caminho. E
quando o cigarro se apaga
(ou a
cerveja se escoa) o
que resta é a dor da tarde
que nem esta chuva afaga
o
gasóleo dos rapazes que
lhes cantam a cantiga e
as tomam pela cintura. Um
foguete fecha a festa
(pelo lado de dentro da coxa)
há nelas a incerteza de
não saberem se são
incompletamente
infelizes

João Luís Barreto Guimarães, poema do livro Rés-do-chão, in Poemas Portugueses, Porto Editora, 2009, p.2050

segunda-feira, agosto 23, 2010

dixit: Fernando Sobral sobre a desertificação do interior do país


701 não é o novo número de emergência nacional. É o número que decreta a desertificação do País.
O ministério que defende esta chacina em nome da modernidade e da eficiência pensa que as escolas são "call centers". O fim das escolas cumpre o que os fogos iniciaram: asfixia económica e socialmente os que ainda vivem no interior. O que se pretende é o fim do interior. Desde há anos que se quer transformar Portugal num País de litoral onde o resto é paisagem. Esta decisão do Ministério da Educação é um decreto de suicídio assistido de muitas aldeias deste pobre território. Como é possível decretar, de Lisboa, que crianças vão começar a fazer 50 quilómetros por dia para ir para escolas melhor equipadas? É a mesma política que decreta a morte da floresta nacional. Nenhuma explicação é suficiente para aquilo que se está a fazer perante o silêncio da sociedade que, mais uma vez, encolhe os ombros. Maria de Lurdes Rodrigues iniciou esta política com a pose de Madame Min. Isabel Alçada cumpre-a com sorriso de Cinderella. Esta última forma dói mais, porque parece que a ministra troça do País e que isso lhe dá um secreto gozo. Quando se fala da revisão constitucional esta decisão ministerial mostra como o Estado deixou de cumprir a sua função de ser garante da educação de todos os portugueses. Sobretudo daqueles que não garantem maiorias parlamentares. É espantoso como não se escutam os deputados eleitos por Viseu (o mais atingido), unidos no interesses dos seus, a clamar contra este atentado. Não admira: quem os elege são as direcções nacionais...



Fernando Sobral, Jornal de Negócios, 23. 08. 2010, última página.

domingo, agosto 15, 2010

Margarida Ferra


Flores nocturnas

Ouviste ontem à noite
a cadência misteriosa,
outra vez o trabalho
daquela costureira sem idade.
Os pés descalços sobre o pedal,
os braços colados ao pano, frios
e brancos, não têm carne
que possa ferir-se por
acaso ou falta de vista.
Mora dentro das paredes,
edifícios com mais de quinze anos,
e escolheu aqueles
a quem embala e atormenta o sono.

Os pontos regulares, na tua cabeça,
fixam sardinheiras frescas sobre
chitas desmaiadas pela luz do dia
que chagará daqui a nada.

***

Morada

Habitamos
uma casa quando
a sombra dos nossos gestos
fica mesmo depois
de fecharmos a porta.

Margarida Ferra, Curso Intensivo de Jardinagem, & etc, 2010, pp. 11 e 51.

Margarida Ferra estreia-se na poesia com a publicação deste Curso Intensivo de Jardinagem. Neste livro a autora explora o espaço da casa, de que é exemplo o poema "Morada" aqui publicado, mas sobretudo a segunda secção do livro - "Quatro Divisões". A terceira secção do livro, "Playlist", destoa das outras partes por um certo hermetismo, onde os poemas aparecem como menos conseguidos, o que não impede que este conjunto de poemas tenha excelentes momentos.

quarta-feira, agosto 04, 2010

RUI PIRES CABRAL


SHIRLEY ANN EALES


Na vitrina lê-se Livros Raros
e Usados sob o azul inclinado
de um toldo – mesmo em frente
à glacial cafetaria de franchise
onde o dia destrata o desejo
e não se pode fumar. Subo
aos pequenos gabinetes
mergulhados no doce bafio
da literatura e percorro de A
a Z as espinhas estreitas

e rachadas da poesia. É o sítio
mais vazio de Novembro
e o que mais reconforta;
o livro que escolho, por metade
de uma libra, traz no frontispício
um nome e uma morada: Shirley Ann
Eales, de Scottsville – um sumido
autógrafo de maiúsculas magras
e triangulares onde a imaginação
encontra por enquanto pretexto

e oxigénio suficientes para arder.
O livro teve outra existência,
pertenceu a outra casa, a outra mesa
de cabeceira – e o pensamento,
de tão óbvio, conjura de repente
uma vertigem, é um corredor
abrupto para a imensidão do mundo
onde trafica o acaso. Ah, sabemos
que a vida é improvável se damos
por nós a cismar, a meio de uma tarde

insípida, numa mulher desconhecida
que lia poemas em Scottsville, nos anos
70. Mas haverá aqui alguma espécie
de sentido, algum sinal guardado
para alguém mais sábio ou inocente
do que tu? Não sei quem és
nem onde estas agora, Shirley Ann,
mas como seria belo se pudesses
um dia encontrar, por obra da mesma
sorte, o teu nome nestes versos.

Rui Pires Cabral, Longe da Aldeia, Averno, 2005, pp. 21-22

quarta-feira, julho 28, 2010

MIGUEL CARDOSO


DIÁLOGOS COM SOPHIA II

Sabemos que a noite
desfia as horas do dia
teceu e a manhã
irrompe irreversível e quase
singular e nada
do que acontece é solitário tudo
é eco e ressoa

E o inumerável é outro nome
para o mundo para o aguçado
revolver dos restos que nos restam
e do que neles resta
do entorpecido músculo do possível

A branda cegueira do inominável é outro nome
para as rugas do tecido de poeira e luz e espanto
da janela que por vezes habitamos em jejum
na manhã que sacode a exactidão
dos nomes e desperta coisa a coisa as ramagens
nítidas as mãos mundanas do que é eterno
e inteiro por instantes

Dos arranhados ecos

do estilhaçar das coisas
já no início estilhaçadas

Uma e outra vez na sucessão dos dias
erguem-se os ombros subitamente

nos intervalos dos tambores
do tempo tão dividido
num gesto fora de tempo e fora de uso
danço tropeço gesticulando para a verdade

Como é estranho tudo
saber – enquanto espero
neste canto do café com um livro
um lápis a luz de soslaio
sobre este canto da mesa –

a pouco

e no pouco saber e
de coisa em coisa
cerrar o punho do tempo
todo o tempo
fiado e desfiado
em torno de um instante

Sabêmo-lo.

É preciso reinventar o início

Miguel Cardoso, Que se diga que vi como a faca corta, Mariposa Azual, 2010, pp. 70-71

Que se diga que vi como a faca corta é o primeiro livro de Miguel Cardoso, autor que nasceu em 1976. Já apontado como uma das revelações poéticas do ano, em Miguel Cardoso encontramos uma poesia opaca, que recorre ao poema longo e a uma declarada intertextualidade (de que o poema reproduzido acima é um exemplo).

terça-feira, julho 13, 2010

FÁTIMA MALDONADO


CANÇÃO PARA O PRESIDENTE DO BURKINA, THOMAS SANKARA TRAÍDO PELO SEU AMIGO BLAISE COMPAORÉ


Sankara tinha um amigo
chamado Compaoré
Sankara tinha o reino
mais pobre do continente
e chamava-lhe «a pátria dos homens íntegros»
Campaoré era a sombra de Sankara
e Sankara desvendou o seu nome verdadeiro
a um companheiro de armas
esquecendo que nem os deuses o fazem.
E no Olimpo negro todos riram de Sankara –
o da alma orgulhosa –
por não ter resguardado a sua própria sombra.

***
UM FADO

Quem viu barcos
ir ao fundo
tem nos olhos a certeza
aposta firme na boca

Quem viu barcos trazer escravos
munições e artifícios
figueira brava na costa
açoite preso no riso

Quem viu barcos
magoá-lo,
ferros, lavas e palmeiras
descrê santos e novenas,
nega laços, destrói cercos,
toma ventos por lareiras.

Fátima Maldonado, Cadeias de Transmissão, Frenesi, 1999, pp. 166 e 169

terça-feira, junho 22, 2010

CABAZADA E FUZILAMENTOS


Ontem a selecção nacional venceu a Coreia do Norte por 7-0. Resultado histórico contra um pais que não é deste planeta. A Coreia do Norte é uma espécie de monarquia estalinista de Kim's, um buraco negro entre as nações da terra: quem lá entra, por exemplo como jornalista terá poucas hipóteses de sair de lá vivo para contar o que viu, se quiser fazer mesmo um trabalho jornalístico. Um pais como este governado pelo querido líder Kim Jong-Il, é capaz de tudo. O jogo de ontem foi transmitido em directo pela televisão estatal norte-coreana, ao contrário do jogo com o Brasil, transmitido em diferido. Ora se o jogo foi mesmo transmitido em directo sem nenhuma decalage que permitisse ao realizador da emissão cortar os sete golos de Portugal, os norte-coreanos que têm o privilégio de ter uma televisão viram em directo a humilhação de uma nação que para propaganda interna deve dominar o mundo. Tudo isto faz-me pensar no destino dos jogadores da Coreia do Norte. O que os espera quando chegarem à sua querida pátria estalinista, depois da humilhação que Portugal lhes infligiu? Receio o pior, o fuzilamento. Imagino que enquanto os portugueses festejavam ontem os sete golos, estivessem a festejar também os fuzilamentos do coreanos, como se a metáfora fuzilar a baliza se tornasse literal. E um dia o deus demente, o grande líder Kim resolve ripostar com armas nucleres (não contra Portugal, mas contra o pais que esteja mais à mão, talvez a inimiga Coreia do Sul)

segunda-feira, junho 21, 2010

JOSÉ SARAMAGO 1922-2010


Depois de tudo o que foi dito, escrito, mostrado, pouco há a dizer. Li apenas quatro livros de Saramago e gostei. Memorial do Convento, O Ano da Morte de Ricardo Reis, principalmente destes. Depois Saramago passou a ser para mim um produto de marketing: os grandes espositores nas livrarias, as polémicas que ajudavam a vender (quer se queira quer não ajudavam). Entre Saramago - ou Lobo Antunes - e Margarida Rebelo Pinto ou José Rodrigues dos Santos, existe uma diferença talvez abissal, mas o marketing livreiro que tudo engole e vomita com estrelas resplandecentes, também tudo nivela pela mesma escala. Por isso sempre que saia um livro de Saramago passava ao lado. E não é agora, depois de todo este folclore fúnebre que vou ler Saramago. Reconheço uma importância em Saramago pelo autodidatismo, talvez uma certa rudeza que à medida que ai descobrindo o mundo da cultura não se deixava possuir pela fineza deste. Era um camponês, um operario. Foi assim que sempre pensou, como um camponês alentejano que desconfiava da metafísica depois de a conhecer. Permaneceu fiel às origens, como Genet.

terça-feira, junho 15, 2010

JORGE GOMES MIRANDA


AUTO-RETRATO

Nos outros livros, em verdade, afirmei
aquilo que neste, claramente, coloco em dúvida:
a tenaz esperança de um mundo capaz de escapar
ao eterno alinhamento de violência e impiedade.

Findo um milénio de pássaros agonizantes,
e no início de outro, tudo vejo capitular
de novo: a cidade de ninguém, abatida
por construções clandestinas, desabamentos;

entre amigos, vocábulos de aspereza
comprometendo o entendimento;
negrura sem interrupção e homicida

nos gestos que dantes reflectiam o amor;
a perda lancinante do conhecimento
da poesia às mãos de ressentidos e diletantes.

Jorge Gomes Miranda, in Este Mundo, Sem Abrigo, Relógio d' Água, 2003, p.11.

quarta-feira, maio 19, 2010

LUÍS QUINTAIS


X
(L.W. intensamente negro sobre quadro riscado)


Desprezasse o conhecimento
e o terrível sentir de uma palavra moral.
A guerra consigo mesmo,
esse combate mortal, jogava-se, não nas trincheiras
(as trincheiras seriam apenas um expediente
para o vazio que em si parecia contemplá-lo)
mas no seu oco, nessa incerteza que o percorria,
que merecia ser ferida, golpeada,
numa espécie de ódio de si mesmo
que lhe diziam envenenar a alma vienense,
cujos golpes seriam um desvio
para outra coisa, um degrau abandonado,
uma clareza consentida e de partilha improvável.
Riscava a palavra dor no quadro negro
que intensamente lhe tomava o olhar
quando escutava um dos dilectos,
ele que sempre odiara discípulos, e aqui
estava ele, a avaliar a dor do mundo
através de um relance sobre a inviolável
gramática da perplexidade.


Luís Quintais, "X", in Riscava a palavra dor no quadro negro, Livros Cotovia, 2010. (Respigado daqui)

terça-feira, maio 11, 2010

O SEXO PERDIDO DA IGREJA


Um dos argumentos lançados contra a Igreja (católica) consiste em acusá-la de um domínio sobre a sexualidade. Ora esse argumento tem um atraso de várias décadas. Qual o poder da Igreja para determinar, hoje, o comportamento sexual das sociedades ocidentais? Nenhum, ou quase nenhum. Nem os católicos praticantes, os que frequentam semanalmente a missa seguem as prescrições da doutrina moral da Igreja sobre a sexualidade. De resto, quem não frequenta a Igreja não sofre nenhuma influência, directa, desta.
Noutros tempos, durante séculos, a Igreja católica assustou e teve o domínio sobre o comportamento sexual dos indivíduos. Hoje a Igreja não tem, neste aspecto, nenhum poder. Mas quem tem hoje o poder que antes pertenceu à Igreja? Uma aliança entre meios de comunicação social e sexólogos e outros “psis”. O próprio discurso da Igreja baseia-se hoje, creio, porque como não frequento a Igreja desconheço em grande parte o seu discurso, em algumas bases “científicas”.
Quem impõe hoje um modelo de comportamento padronizado em matéria de moral sexual é essa aliança entre comunicação social (televisão, internet, rádio, imprensa, cinema, publicidade, etc) e um alegado saber científico no domínio das ciências do comportamento. Esta aliança torna-se clara, na paisagem mediática portuguesa, em figuras como Júlio Machado Vaz, Clara Crowford e outros “psis” que frequentam os média portugueses. Mas é também na ficção e na informação que se tem determinado uma nova moral amorosa. Essa moral é claramente o oposto da antiga moral preconizada pela Igreja católica. Há já algumas décadas que essa moral se tornou dominante, numa clara mudança de paradigma que significa também uma mudança em quem tem o poder sobre a vida das pessoas. Essa mudança ocorre, entre outras razões, porque a Igreja perdeu poder, tornando-se nas sociedades ocidentais desenvolvidas naquilo que o polémico filósofo Slavoj Zizek chamou “o frágil absoluto”. E a tendência é para que a Igreja continue a perder poder e multidões.
Torna-se caricato, nesta situação, que num dos últimos estertores da Igreja,quase semelhante a uma supernova, como é o caso da visita de Bento XVI a Portugal, um grupo de pessoas se tenha organizado para distribuir preservativos. O que esse gesto, alegadamente provocatório mostra, é quem tem hoje o poder de determinar e influenciar a sexualidade: não a Igreja (cuja campanha contra o preservativo é feita predominantemente pelos média num discurso acusatório), mas aqueles que estão a distribuir os preservativos. São esses que hoje querem ter poder sobre os nossos corpos e o nosso erotismo.

segunda-feira, maio 10, 2010

LUIZA NETO JORGE


ACORDAR NA RUA DO MUNDO

madrugada. passos soltos de gente que saiu
com destino certo e sem destino aos tombos
no meu quarto cai o som depois
a luz. ninguém sabe o que vai
por esse mundo. que dia é hoje?
soa o sino sólido as horas. os pombos
alisam as penas. no meu quarto cai o pó.

um cano rebentou junto ao passeio.
um pombo morto foi na enxurrada
junto com as folhas dum jornal já lido.
impera o declive
um carro foi-se abaixo
portas duplas fecham
no ovo do sono a nossa gema.

sirenes e buzinas. ainda ninguém via satélite
sabe ao certo o que aconteceu. estragou-se o alarme
da joalharia. os lençóis na corda
abanam os prédios. pombos debicam

o azul dos azulejos. assoma à janela
quem acordou. o alarme não pára o sangue
desavém-se. não veio via satélite a querida imagem o vídeo
não gravou

e duma varanda um pingo cai
de um vaso salpicando o fato do bancário

Luiza Neto Jorge, Poesia 1960-1989, Assírio & Alvim, pp. 285-285

quinta-feira, maio 06, 2010

JOSÉ CARLOS BARROS


As páginas dos romances


Arriscávamos o salto mortal
voando com uma venda nos olhos
dos andaimes para o monte de areia da póvoa.
As obras da escola eram a nossa perdição:

as fasquias de alumínio, o ondulado de luzalite
das coberturas, o entulho, o ressalto
exacto do encaixe das tijoleiras, o pó quase de talco
dos sacos de cimento da cimpor. Nos sábados

à tarde erguíamos muros no combarro com tijolo
de quinze, marcávamos com estacas de pinho
o perímetro exterior do pavilhão, ligavamos a betoneira
a olhar em sobressalto os movimentos oscilatórios

do balde. Penso que era assim. Às vezes
pergunto o que fica dos livros, o que pertence
e não pertence à literatura, o que acrescentaram
à nossa vida as páginas dos romances.

José Carlos Barros, Resumo: a poesia em 2009, Assírio & Alvim, 2010, p. 70.


José Carlos Barros não é, ao contrário do que um leitor menos atento possa supor, um jovem poeta estreante. Nasceu em 1963 em Boticas. O primeiro livro de JCB, Pequenas Depressões, em colaboração com Otília Monteiro Fernandes, foi publicado em 1984. Seguiram-se mais cinco livros de poesia, em edições o suficientemente discretas para passarem despercebidas. Publicou os livros em prosa O Dia em que o Mar Desapareceu (2003) e O Prazer e o Tédio (2009). Nos anos oitenta foi um dos principais colaboradores do suplemento juvenil do Diário de Notícias, o DN-Jovem. Recentemente venceu o prémio de poesia Sebastião da Gama, com o livro, ainda inédito, Os Sete Epígonos de Tebas. O poema aqui apresentado foi publicado originalmente no nº 3 da revista Criatura, revista mantida por alguns jovens poetas como António Ramos Pereira, David Teles Pereira, Diogo Vaz Pinto ou Ana Salomé. É autor do blogue Casa de Cacela

sábado, abril 24, 2010

ANA CURADO


Há as mulheres cultas
E afamadas prostitutas,
Mulheres argutas
que se entregam a disputas,

A um povo - são poetisas,
Herdeiras, eternas artemisas
Que perderam as maneiras
E desgrenham cabeleiras

Em as lutas, tão guerreiras,
com as maduras-ultras,
Intelectuais robustas,
Exibindo-se, perfeitas,

Em lugares social
E moralmente limpos,
E abraçam os amigos
Que as bajulam no jornal

E as titulam «Marginal»!

*

«Mirror on mirror mirrored
is all the show» - W. B. Yeats

Encontrei o Cesariny na Alsaciana.
Egrégio ou não não trazia o anão britânico
P' la mão. Desenhei um na margem do jornal.
Rasguei-o cuidadosamente
E convidei-o: «Queira sentar-se»

Ali ficámos três decisivamente pelo chá
Pelas torradas e conversas literárias.
Viria então, assegurou o anão, enorme
Um rapaz azul alado (dos que andam aí
Pelos poemas) pô-lo ao corrente dos esquemas.

Esgotou-se a noite e o rapaz não veio.
Despediu-se britanicamente o anão
Deixando na mesa a rosa que trazia na mãozinha.
Deitou-se à última chávena que o Cesariny bebeu.
Suicidou-se, penso eu.

Ana Curado, Sião, antologia de poesia organizada por Al Berto, Paulo da Costa Domingos e Rui Baião, Frenesi, Lisboa, 1987, pp. 142-143.

De Ana Curado apenas conheço quatro poemas publicados em Sião, e dois publicados no Anuário de Poesia 1985 (ed. Assírio & Alvim). O livro anunciado na nota publicada em Sião, Poemas de Ana Curado, nunca terá sido publicado, infelizmente.

quinta-feira, março 18, 2010

Rui Lage


V. C. I.

O cântico dos carros sobe do asfalto.
Há quem venha espreitar a recolha do lixo
depois do jantar, enquanto fuma à janela,
respondendo para dentro à voz de criança
que chama no quarto,
ou mais perto,
àquele que diz haver pratos na mesa
por levantar.

Um ecrã em cada lar
emite luz amarela
como vela acesa
em cela de convento.

Rui Lage, Revólver, Quasi Edições, 2006, p. 40.

Rui Lage nasceu no Porto em 1975. É autor de quatro livros de poesia (todos publicados nas Quasi Edições: Antigo e Primeiro (2002), Berçário (2004), Revólver (2006) e Corvo (2009). Traduziu Paul Auster, Samuel Beckett e Pablo Neruda. Foi co-fundador e director da revista Águas Furtadas e é membro da direcção da Fundação Eugénio de Andrade. É actualmente doutorando em Literaturas Românicas na FLUP. Com Jorge Reis-Sá organizou para a Porto Editora a antologia Poemas Portugueses.

sexta-feira, março 12, 2010

AS CRIANÇAS CRIMINOSAS


I
Se uma organização criminosa (máfia, terrorismo, etc.) pretendesse uma maior eficácia na prática dos seus actos (por ex. matar alguém), fugindo a qualquer ilícito penal, não contrataria um top guy daqueles que vemos nas séries e filmes de acção, mas “inocentes” crianças, inimputáveis perante a lei. O suicídio de Leandro, de 12 anos, no rio Tua, e o suicídio de um professor de música no Tejo (hoje revelado pelos jornais i e Público), ambos vítimas de bullying, vem revelar esta eficácia assassina por parte das crianças. Até há uns anos atrás a expressão “criança criminosa” poderia remeter para o título de um escritor considerado maldito, Jean Genet, que passou por reformatórios e prisões antes de ser consagrado como um dos mais importantes escritores franceses do século XX.
Agora, pelo menos em Portugal, estamos a assistir a um transbordar do crime praticado por crianças – porque há que dizê-lo: não existindo outras causas fortes, e pelo que os média têm relatado, estas crianças são homicidas, desencadearam situações que levaram ao suicídio de duas pessoas. Levar alguém ao suicídio, pela subjectividade que envolve este acto, torna-se no crime perfeito, o crime de mãos limpas: afinal quem em último lugar decide por termo à vida é o suicida. Nisto, nesta arte da crueldade, as crianças de Mirandela, como as do 9º B da escola de Sintra, podem dar lições aos maiores pulhas do crime organizado. Lembram-se do caso Gisberta?
Em tudo isto a cumplicidade dos adultos é essencial. As crianças / adolescentes não são estúpidas ou ingénuas, sabem que nada, ou praticamente nada, lhes pode acontecer, têm um estatuto sagrado, intocável. São uma moeda viva rara. As escolas são hoje um dos locais de maior violência real e simbólica das sociedades ocidentais. Sempre o foram, mas essa violência que dantes era aplicada pelos professores aos alunos é agora aplicada pelos alunos aos professores.

II
A propósito da criança que se suicidou em Mirandela, ouvia terça-feira na Antena 1, no programa Alma Nostra, a explicação de Carlos Amaral Dias (CAD), psiquiatra e psicanalista. Dizia CAD, logo no inicio do programa (que pode ser ouvido em podcast aqui): “O que acontece é que quando o adolescente se comporta como aquilo a que chamo o adolescente pária, que é o adolescente sem carta, sem identidade, sem pertença grupal, esse adolescente é mais vitima, por causa do seu isolamento social, deste tipo de situações”. Há nestas palavras uma terrível acusação, que não pode passar impune, contra a memória da criança de 12 anos que se suicidou no rio Tua; e também contra todas as outras crianças que foram e são vitimas de bullying.
O bullying não é um fenómeno apenas entre crianças. É antes sancionado por alguns adultos (professores, pais, psis) que o permitem e, por vezes, encorajam. Humilhar, agredir, gozar, mal-tratar é sinal de crescimento e adaptação social. Porque o bullying vai continuar pela vida fora: veja-se o caso dos suicídios na France Telecom. Os adolescentes párias e sem “carta”, segundo a noção fascista do psicanalista da rádio, serão sempre os suicidados da sociedade, aqueles que pela sua diferença a sociedade agradece o suicídio (embora diga o contrário).

sábado, março 06, 2010

PÚBLICO: 20 ANOS


O Público fez ontem 20 anos. Edição especial, grátis, com o irritante António Barreto como director convidado. Resultado: Portugal transformado em números, como o sociólogo / profeta da catástrofe portuguesa gosta. Uma maçada, como diria o Eça. Ora o Público tem vindo a transformar-se nisso, em jornalismo maçudo. A decadência daquele que foi o melhor jornal português esta patente na crónica de Bárbara Reis, a actual directora, quando lembra, com nostalgia os primeiros tempos do Público, dirigido e fundado por Vicente Jorge Silva e com grafismo de Henrique Cayate. Escreve Bárbara Reis: “Hoje, 20 anos depois, imagino que o Vicente estivesse a fazer a primeira página e quisesse dar destaque a Eastwood, mas que alguém argumentara que ninguém em Portugal conhecia o nome, muito menos os filmes, para quê ‘puxar’ por tal coisa na capa? Mas estávamos em 1990, o PÚBLICO acabara de nascer, tinha ideias novas e estava ligado à terra – das capas não se esperava menos do que serem uma ruptura permanente. O PÚBLICO não pairava numa nuvem previsível, adormecida e burocrática como os jornais à nossa volta”. Precisamente. Bárbara Reis tem toda a razão. O problema é que hoje, vinte anos depois, o Público transformou-se num jornal previsível, adormecido e burocrático (veja-se, por exemplo os editoriais não assinados).
Nada pior que viver da nostalgia desses tempos em que o jornal de Vicente Jorge Silva era um diário de referência que se podia comparar a um Liberation ou El País, com uma longa lista de redactores, colaboradores (especialistas nas mais diversas áreas) e correspondentes (espalhados por todo o mundo). Porque essa nostalgia impede que se faça algo de novo, criativo.
Hoje os jornais, em papel, estão a suicidar-se. Os grupos económicos que gerem jornais parecem a todo o custo querer acabar com eles, ansiosos por plataformas multimédia na Internet. Os recursos (económicos) baixaram. Torna-se muito mais difícil fazer, dirigir um jornal hoje. Mas os jornais são necessários, eles estão na génese das democracias modernas. As notícias estão, em forma instantâneas, a toda a hora em vários suportes tecnológicos – menos nos jornais em papel. Perante esta situação cabe aos jornais apostar na reportagem, na investigação, na opinião; e na estética – elemento fundamental para embrulhar tudo isso. Ora é isso que os jornais actuais, por razões económicas e não só (vivemos tempos de indigência) não o estão a fazer – com excepção para jornais de referência que mantém a qualidade a que nos habituaram, como o El País.
Voltando ao caso do Público, a degradação do jornal acentuou-se nos últimos anos, sob a direcção de José Manuel Fernandes, com mudanças gráficas que descaracterizaram o jornal, o fim de suplementos (como o Mil Folhas), o despedimento de uma importante fatia da redacção, a perda de colunistas. A mudança, recente, na direcção editorial não trouxe nada de novo. Eu esperava uma nova imagem gráfica, pelo menos.
No entanto, e apesar de tudo tenho que reconhecer que o Público actual continua a manter um certo espírito que presidiu à sua fundação. Jornalistas como Alexandra Lucas Coelho, Paulo Moura, Luís Miguel Queirós, Ana Gerschenfeld, Margarida Santos Lopes, Nuno Pacheco (que está na direcção editorial desde o início e assumiu várias vezes o lugar de director interino) entre outros, mantém a qualidade do jornal.
O aparecimento do i foi, como se costuma dizer, uma lufada de ar fresco na Imprensa portuguesa, mas o jornal dirigido por Martim Avillez Figueiredo dá pouca – e má – importância à cultura, ou à actualidade internacional.

terça-feira, março 02, 2010

CESÁRIO VERDE


DE TARDE

Naquele «pic-nic» de burgueses,
Houve uma coisa simplesmente bela,
E que, sem ter histórias nem grandezas,
Em todo o caso dava uma aguarela.

Foi quando tu, descendo do burrico,
Foste colher, sem imposturas tolas,
A um granzonal azul de grão de bico
Um ramalhete rubro de papoulas.

Pouco depois, em cima duns penhascos,
Nós acampámos, inda o sol se via;
E houve talhadas de melão, damascos,
E pão de ló molhado em malvasia.

Mas, todo púrpuro, a sair da renda
Dos teus dois seios como duas rolas,
Era o supremo encanto da merenda
O ramalhete rubro de papoulas!

Cesário Verde, O Livro de Cesário Verde, Editora Orfeu, 1985, p. 75

sexta-feira, fevereiro 12, 2010

PITTA & MEXIA


Há uma velha ladainha que fala de quão pequeno é o meio literário nacional. Críticos, escritores, editores, professores universitários, todos se conhecem ou até acumulam várias destas funções. Acrescente-se a isto que só quem aparece existe, ou seja, só quem actualmente ocupa as cada vez mais reduzidas páginas de jornal que falam sobre livros, existe – como crítico literário, escritor ou noutra função. Alguns blogues também contam, mas apenas aqueles em que os seus autores também escrevem na imprensa. Face a isto torna-se fácil fazer o recenseamento de quem existe no meio literário português. Daí a velha ladainha proposta por velhos generais das letras que assim justificam (justificavam, porque muitos já desapareceram por motivos mais ou menos naturais) a sua perpetuação no meio.
Escrevo isto a propósito da interessante e promíscua história entre Eduardo Pitta e Pedro Mexia. Quarta-feira, 10, na Fnac do Chiado, Pedro Mexia apresentou o livro de Eduardo Pitta Aula de Poesia (Quetzal, 2010). Na mesa, para além de Mexia e Pitta estava o editor da Quetzal, Francisco José Viegas (que além de editor é também director da revista Ler, onde escrevem Pitta e Mexia). Está tudo bem documentado aqui, no blogue Da Literatura, que agora é domínio exclusivo de Pitta. Ora no livro Aula de Poesia, uma reunião de pequenas recensões sobre poesia publicadas na revista Ler e no Público, existe um texto sobre Pedro Mexia. Não seria esta uma razão suficiente para Pitta não convidar Mexia para a apresentação do seu livro, ou para Mexia declinar o convite? Não, não foi. Mas o mais estranho é que o suplemento ípsilon do Público de hoje publica a crítica de Mexia ao livro de Pitta (reproduzida no blogue de Pitta). No Público, no final do texto de Mexia, uma pequena nota informa o leitor que «Este texto foi lido por Pedro Mexia na apresentação de “Aula de Poesia”». Mexia deu três estrelas ao livro de Pitta, sendo crítico em relação a este, principalmente na forma como o autor de Comenda de Fogo aborda a geração de Mexia, sendo o próprio Mexia nela incluído. Dando uma no cravo, outra na ferradura, é interessante a forma como Mexia termina o seu texto: «A última nota vai para esse hábito essencial ao sarcasmo de Eduardo Pitta: a referência constante ao “mainstream”, à “crítica estabelecida”, ao “mandarinato” cultural. Pena não haver nomes. Além disso, fica a sensação de que para Pitta escrever na LER e no PÚBLICO não é fazer parte do “mainstream”». Pena não haver nomes? Serão necessários? Será que Mexia se esqueceu do seu? É que a mesa de apresentação de um livro pode ser um lugar tão promíscuo como uma cama para três. E já agora, para evitar esta promiscuidade, será que não há outra pessoa para escrever sobre poesia ou sobre ensaios sobre poesia, no Público, senão Pedro Mexia? Será tão difícil ao Público arranjar outro colaborador que escreva sobre poesia? Ou Mexia tem cátedra?

(foto respigada do Da Literatura)

terça-feira, fevereiro 09, 2010

ASSINAR


Quase 6500 pessoas já assinaram a petição TODOS PELA LIBERDADE. Eu também. Para assinar clique aqui

sábado, fevereiro 06, 2010

O DITADORZINHO


A semana começou com o caso Mário Crespo – o jornalista da SIC- Notícias, foi tratado pelo primeiro-ministro, em conversa num restaurante lisboeta com o director de programas da SIC, Nuno Santos, como “um problema” a ser resolvido. A crónica deste episódio, ocorrido num espaço público, feita pelo próprio Mário Crespo para o Jornal de Notícias foi censurada pela direcção desse jornal. Ontem, através de escutas divulgadas pelo semanário Sol, ficou-se a saber de toda uma conspiração por parte de Sócrates para controlar a comunicação social. Tudo isto é grave demais: um primeiro-ministro de um pais democrático, onde a comunicação social é privada (excepto a RTP), tenta – e parece ter conseguido – com a ajuda de alguns amigos estrategicamente colocados controlar os meios de comunicação privados.
Sócrates está agarrado, colado, ao poder como nenhum chefe de governo depois do 25 de Abril esteve. Ao longo destes anos vários episódios, envolvendo funcionários públicos, mostraram a cultura pidesca que Sócrates criou à sua volta. Passaram já 35 anos sobre o fim da ditadura do Estado Novo; mas a cultura da obediência e medo persistem na mentalidade e instituições portuguesas. Agora é demais, o copo transbordou. Se alguém que quer ser primeiro-ministro de um país democrático não admite que se fale mal dele, que vá fazer outra coisa qualquer, de preferência nada, porque em todas as profissões há sempre alguém que diz mal.
É completamente inadmissível que um primeiro-ministro numa democracia tente controlar os jornalistas através de empresários de comunicação social. Este caso coloca Portugal ao nível de um país do terceiro mundo.
Como a justiça, subserviente perante o poder político, não quis agir perante estas gravações, como um atentado ao estado de direito, justifica-se plenamente que sejam os jornalistas – os que ainda conseguem ser independentes –, a divulgar as escutas. Não se trata de jornalismo de “buraco de fechadura”, mas do dever dos jornalistas num país que se quer livre de ditadorzinhos.

quinta-feira, janeiro 14, 2010

CLARICE LISPECTOR


É curioso como não sei dizer quem sou. Quer dizer, sei-o bem, mas não posso dizer. Sobretudo tenho medo de dizer, porque no momento em que tento falar não só não exprimo o que sinto como o que sinto se transforma lentamente no que eu digo. Ou pelo menos o que me faz agir não é o que eu sinto mas o que eu digo. (16)

O que se consegue quando se fica feliz? (25)

Olhou-os. Sua tia brincava com uma casa, uma cozinheira, um marido, uma filha casada, visitas. O tio brincava com trabalho, com uma fazenda, com jogo de xadrez, com jornais. Joana procurou analisá-los, sentindo que assim os destruiria. (p.57)

O que importa afinal: viver ou saber que se está vivendo? (63)

Liberdade é pouco. O que desejo ainda não tem nome. (64)

Música pura desenvolvendo-se numa terra sem homens (...) (77)

O amor veio afirmar todas as coisas velhas de cuja existência apenas sabia sem nunca ter aceito o sentido. O mundo rodava sob seus pés, havia dois sexos entre os humanos, um traço ligava a fome à saciedade, o amor dos animais, as águas das chuvas encaminhando-se para o mar, crianças eram seres a crescer, na terra o broto se tornaria planta. Não poderia mais negar... o quê?, perguntava-se suspensa. O centro luminoso das coisas, a afirmação dormindo em baixo de tudo, a harmonia existente sob o que não entendia. (90-91)

A beleza das palavras: natureza abstracta de Deus. É como ouvir Bach. (116-117)

E quando meu filho me toca não me rouba pensamento como os outros. Mas depois, quando eu lhe der leite com estes seios frágeis e bonitos, meu filho crescerá de minha força e me esmagará com sua vida. Ele se distanciará de mim e eu serei a velha mãe inútil. Não me sentirei burlada. Mas vencida apenas e direi: eu nada sei, posso parir um filho e nada sei. (148-149)

Clarice Lispector, excertos de Perto do Coração Selvagem (ed. original, 1944), Círculo de Leitores, 1988.

quinta-feira, janeiro 07, 2010

BIG BROTHER, 10 - PARANÓIA NOS AEROPORTOS


Depois de um argelino ter tentado fazer-se explodir dentro de um avião, no dia de Natal, o mundo entrou em paranóia. Será que os governos ocidentais não percebem que reacções como as de fazer passar os passageiros por scanners não só de nada servem para evitar atentados, como são uma forma de vitoriar os extremistas islâmicos? Lentamente, por causa de toscas tentativas de atentados terroristas, como a deste argelino, o mundo em que vivemos torna-se cada vez mais securitário, mais parecido com aquilo que os extremistas islâmicos querem que seja o nosso mundo - um mundo sem liberdade, onde as pessoas são constantemente controladas. Ora isso mostra que, como em algumas séries televisivas, são os nossos governantes os principais aliados do extremismo islâmico.