quarta-feira, maio 29, 2013

NUNO GUIMARÃES

[ACERCA DA POESIA]

Há um tipo de poesia em que a intenção é adjacente à escrita, uma poesia de púlpito, destinada a uma audiência que, como dizer?, age por simpatia a certos «slogans». Creio que isso é uma forma muito fácil de dizer as coisas em nome da poesia. Não é que eu pense numa arte aristocrática e muito menos destinada a um público aristocrata. O público ideal está ainda, infelizmente, em condições económicas e culturais muito deficientes e não parece que delas possa sair tão cedo. Eu acho que a expressão da ideologia [...] terá que fazer-se dentro da materia verbal. A linguagem poética [...] não é sinal de algo exterior. É ela mesmo um objecto. É um signo que vale por si próprio. Um signo inquieto mas perfeitamente circular.
[...] Terá que haver sempre uma revolução, digamos, interna. O envelhecimento inevitável do modo de dizer situa já essa poesia. A persistência na repetição é o suicídio. É claro, todos nós corremos esse risco, não é? Todos nós envelhecemos, pelo menos fisicamente. A renovação é indispensável, é a resistência, é a negação da morte física.
[...] Penso que todo o poeta é responsável, através da sua escrita. E acho mesmo que a prática da vida e a prática da poesia são coisas indissociáveis...
[...] O quotidiano é, por assim dizer, esquecimento, uma dissolução das suas funções. Todo o esforço de escrita é, portanto, uma reacção: esquecer o esquecimento. É uma actividade traumatizante, então. Não sei se estou a ser claro. Não quero dizer que possa ser algo de insuportável, messiânico. É, simplesmente, um risco próprio do ofício, da natureza da matéria. Um risco, digamos, profissional...
[...] Acho que a poesia é irredutível, tem a propriedade da irredutibilidade. Quando acontece uma redução, passará a ser outra coisa, passará a ser talvez a substância redutora, mas já é outra coisa...
[...] Quanto a mim a única posição coerente e revolucionária tem de iniciar-se dentro da matéria, numa renovação interna, em que forma e fundo sejam um só. [...] A partir de certa altura acreditei na inutilidade, por si só, das intenções. A intencionalidade não tem por si só, sentido.
[...] A poesia é feita de tensões. Isso é fundamental. É intencional mas sempre tensional. E isso implica uma atenção constante à linguagem, uma investigação permanente. O que por si só, é claro, também não é condição suficiente...
[...] Eu penso que quase toda a poesia, para não dizer a totalidade, mesmo a mais positiva, estabelece uma ruptura com as coisas, é de crise, e é crítica. No entanto estou longe de pensar que isso seja sinónimo de decadência. Antes pelo contrário.

[Publicado no J. L. nº 111, 1984, a partir de selecção feita por José do Carmo Francisco]
Nuno Guimarães, Poesia Completas, Org. e prefácio de Fernando Guimarães, Porto, Afrontamento, 1995, pp. 113-114.
Nuno Guimarães nasceu Vila Nova de Gaia a 29 de Agosto de 1942. Faleceu em 1973. Publicou Corpo Agrário (1970) e Os Campos Visuais (1973). A sua poesia inscreve-se na lógica dos poetas que publicaram em Poesia 61

sexta-feira, maio 10, 2013

A ALEMANHA AO ESPELHO



Wagner, Richard Wagner, o compositor alemão nasceu há 200 anos. Portanto, e como é natural nestas coisas comemoram-se os 200 anos de Wagner. E para comemorar os 200 anos do nascimento de Wagner a Deutsche Oper levou à cena Tannhäuser, em Düsseldorf. Até aqui tudo muito bem e normal. O problema surgiu no dia da estreia – o público não gostou da encenação da ópera. Não só não gostou como ficou em choque e pavor, tendo alguns espectadores recebido assistência médica (algo inédito num evento cultural). E porquê esta reacção tão reactiva a uma obra de arte? Porque o encenador resolveu colocar em cena figuras nazis, com execuções e tudo, tal como durante o Holocausto. De tal forma foram os protestos que a ópera continua apenas com a parte sinfónica.
Tudo isto é revelador do que é a actual Alemanha e da sua relação com o passado nazi. Esse passado, não tão distante, foi recalcado pelos alemães, de tal forma que quando é evocado numa versão de uma ópera de um compositor anti-semita, provoca reacções psicossomáticas. Os alemães para viverem no seu conforto e na sua eficiência trabalhadora, têm que enterrar o passado que vai sendo enterrado como memória viva à medida que os mais velhos, os que levaram Hitler ao poder e ajudaram a construir o Holocausto, vão morrendo. Ao mesmo tempo a Alemanha regressa a uma posição de hegemonia na Europa. É quando se enterra o passado, quando se perde a noção de culpa e vergonha, que algo parecido com esse passado pode regressar. É claro que a Alemanha de Merkel não é a Alemanha de Hitler, são incomensuráveis as distâncias. Mas, setenta anos depois, a Alemanha de Merkel é a que mais próxima está da Alemanha de Hitler. Agora não são os judeus, mas os povos do sul, os PIIGS, os porcos. Também não se trata do extermínio em câmaras de gás, mas do asfixiar de economias como a portuguesa ou a grega com a ajuda de governos colaboracionistas como o de Passos Coelho. Esta Alemanha quando se vê ao espelho, sem maquilhagem, vê o horror e desmaia.