segunda-feira, abril 21, 2014

DULCE MARIA CARDOSO

[...] As crianças pintaram ainda mais as caras com um toco de madeira ardida, fizeram bigodes e barbas a carvão na pele, tudo isso se passou na terça-feira gorda, um dia frio e chuvoso, um dia feio e tão diferente do dia luminoso do mês de Maio em que nos apareceu um anjo com uma cesta de cerejas para nos oferecer.
    As crianças foram as primeiras a reagir. A sua pouca sabedoria não lhes permitia completo entendimento do milagre. Rodearam Dóris e a cesta das cerejas com saltinhos de animais domésticos que também eram. Trincaram a medo a primeira cereja, a segunda, e perdido o medo começaram a devorá-las. O sumo vermelho escorria-lhes pelos queixos e pelas mãos, e as crianças não paravam de sorrir. As mães receosas pelos filhos logo os imitaram, como é instinto de qualquer fêmea. Se as crias se perderem, perca-se também quem as pariu que, em caso de perda daquelas, estas cá não ficam a fazer nada para além de sofrer. Começaram então as mães a comer cerejas e a cuspir os caroços, que se enterravam na areia ao lado dos pés de Dóris. Chegou a vez de os homens se baixarem e, com as mãos em concha, servirem-se das cerejas. Devoraram-nas com gula e com o mesmo sorriso das crianças. À nossa frente, ao nosso lado, no meio de nós, o anjo vestido de branco continuava a sorrir com os pés enterrados na areia, decerto para não fugir da terra a que não pertencia.
   O sumo das cerejas escorria nas mãos das crianças, das mulheres, dos homens, nas minhas mãos, que fui o último a provar do pecado da gula, tão perdido estava a desrespeitar o mandamento que proíbe a cobiça da mulher alheia, ainda que, em vez de mulher, visse um anjo. Não me lembro se o Matias comeu cerejas mas deve ter comido, naquele sítio a comunhão dos gestos era obrigatória. E da comunhão dos gestos à dos pensamentos, palavras, actos e omissões vai menos que um passo. Nem sempre por nossa culpa, tentávamos convencer-nos"

Dulce Maria Cardoso, Tudo são Histórias de Amor, Tinta-da-China, Lisboa, 2014, pp. 16-17.

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