domingo, agosto 31, 2014

EDUARDO GUERRA CARNEIRO

DIVÃ

   Transforma-se o amador na cousa amada. Por entre lágrimas e suspiros, prossegue o jogo, motivado pela vontade de jogar, mais forte que a sorte em pano verde.
   Divã - o título da jogada. Uma sorte de prestidigitador, soltando a pomba nos ombros da diva, chamas reais da boca da divina. No divã quem se deita? O doente ou o médico? O paciente ou o inconsciente? O psicanalista ou a psicanálise?
   Passando, para já, adiante, ó cavalheiros!, voltemos à diva, sob os projectores fortes do espectáculo ou junto às luzes da ribalta. Divino é seu gosto, à medida, nos gestos melhores, fora de cena. Adivinhas? O gosto duvidoso do poeta não sabe decifrar jogadas - fora de jogo.
   Encaminha-se o relato para o relatório; alguns novelos soltam-se; o papel químico desfaz-se em pó. E o amador?, questiona o artista. Quem lhe poderá dar a resposta se nem a amada sabe a quantas anda?
   A diva, essa, já nem usa lantejoulas, sentando-se no chão, de ganga gasta. O poeta deita-se no divã. Inicia o monólogo. Defensor de causas perdidas, preocupa-se com o gesto, perde já o gosto. Outros diriam que a pedalada esmorece.
   Nas curvas da divina - a diva? - o artista tenta a sorte do divã. Não joga bem e perde, ainda outra vez. Quando de galo, assim, tenta avançar, faz gala em simular um volta atrás. Os outros não perdoam a batota! dizem. Ele sabe que não joga em falsidade e conquista alguns pontos, poucos, nessa sorte. Mas longe vai já a diva - hesitou, perdeu.
   Volta ao divã, em busca dos novelos, procurando, afinal, o fio à meada própria. Nos outros sabe ver e precisar o gesto, o gosto, cambiante, ficção, realidade. Quem lhe oferece um espelho, bem antigo, onde possa olhar-se até ao fundo?

Eduardo Guerra Carneiro, A Dama de Espadas, Lisboa, & etc, 1981, pp. 21-22

domingo, agosto 24, 2014

A BARBÁRIE



1, Enquanto uma moda viral (embora por uma boa causa) faz deste apagado verão uma estação ainda mais silly – a moda das figuras públicas despejarem um balde de água gelada pela cabeça abaixo, o terror espalha-se na zona do médio oriente. O chamado IS (Islamic State), que controla uma já vasta zona do Iraque e da Síria, espalha o terror com mais eficácia que o fez a Al-Qaeda: um vídeo onde é degolado o jornalista inglês James Foley demonstra até onde tem crescido o fundamentalismo islâmico. Este fundamentalismo do IS recruta cidadãos europeus – estima-se que no IS estejam 500 ingleses e 700 franceses. Talvez seja um niilismo mascarado pela sociedade do espectáculo, onde alguns programas televisivos parecem campos de treino para estes fundamentalistas (veja-se por exemplo O Poder do Amor, SIC, Domingos à noite), uma das prováveis géneses deste niilismo. A Europa niilista, entre uma imbecil e caquéctica sociedade do espectáculo e a especulação dos mercados financeiros, acaba por ser um viveiro para a angariação de terroristas.

2, Enquanto isto, aqui, em Portugal, na periferia da Europa, mas pertencendo nós ao, ainda, risível califado do Estado Islâmico, o nosso califa Passos Coelho vai semeando a miséria e a mentira. É certo que Coelho não é Abu Bakr al-Baghdadi, o califa, mas numa versão lusa de brandos costumes, sem cabeças cortadas, tem feito tudo o que lhe permite (e mesmo o que não permite) o Estado de direito para destruir Portugal e dar cabo da vida dos portugueses. Pois, enquanto Coelho mentia pela enésima vez que não ia aumentar os impostos, sabendo-se (por Marques Mendes) do muito possível aumento do IVA para 24%, o Jornal de Notícias lembrava, na sua edição de ontem, Domingo, que em Portugal existem 400 mil pessoas desempregadas sem auferir qualquer subsídio. Como vivem estas pessoas? Porque se calam?

3, James Foley, assassinado barbaramente por um membro do IS, era um jornalista free-lancer. A ele e a outros corajosos jornalistas devemos o testemunho do que se passa no mundo. Sem repórteres nas zonas de guerra as guerras seriam ainda mais selvagens e dessa selvajaria não teríamos testemunhos. O mundo precisa destes jornalistas, mas também precisa de jornalistas que procurem a verdade que está ao fim da rua (como no spot da TSF: “ir ao fim da rua, ir ao fim do mundo”). Ora a imprensa portuguesa – e não só a portuguesa – passa por uma profunda crise: perda de leitores, despedimentos dos melhores jornalistas, etc. Veja-se o caso do grupo Controlinveste (detentor do DN, JN, O Jogo e TSF) de onde foram recentemente despedidos 160 trabalhadores. O grupo outrora detido maioritariamente por Joaquim Oliveira tem novos accionistas, entre os quais Luís Montez, genro de Cavaco Silva, e um tal Mosquito, um empresário angolano. Se numa zona de conflito armado um jornalista tem imensas dificuldades para desempenhar o seu trabalho, num país como Portugal a liberdade de imprensa volta a estar em causa por contingências económicas e leis laborais.