quinta-feira, dezembro 18, 2014

ALEXANDRE VARGAS

MA BLONDE

Ouve, vagueio num espaço de luz cercado dum silêncio...
é um silêncio e não o teu... vejo claramente olhando as mesas
o meu perfil que se volta docemente e não és tu,
em que braços te suspendes e flutuas os teus lábios
rigorosos de planície quando voas?...

Olha, fixa e furtivamente olha superiormente,
ó Cyborg que enorme já te ergues no teu luto,
a boca entreaberta como um ovo que é olhado
na doce e fresca idade que em breve nos espera
entoa já o canto dos fantasmas que dão fruto.

*
CYBORG (excerto)

Não sei por que modo ou forma entrei em Cyborg.
À entrada lembro-me dos pássaros tenebrosos e eu a hesitar
orgasmático naquele labirinto cósmico
onde os gigantes poderosíssimos nas suas terríveis bielas
nos falam da raça superior. Eu estava vestido
de negro e acordava num sítio inacessível onde
estivesse a começar a levantar-me. Uma porta lassa,
no seu crepitar de ídolo de barro, verificava as
grandes colunas ibéricas que, nos corredores das suas
engrenagens, começavam a erguer-se. [...]

Alexandre Vargas, Cyborg (1978), Lisboa, Livros Horizonte, 1979, pp. 16 e 27.
Alexandre Vargas nasceu em Lisboa em 1952. Publicou os seguintes livros de poesia: Morta a sua fala (1977), Cyborg (1979), Vento de pedra (1981), Organum (1984) e Múltiplo de Três (1997). 
Cyborg é dos poucos livros da poesia portuguesa que se enquadra dentro da ficção-científica. Um outro exemplo é uma das secções de Quatro Caprichos de António Franco Alexandre.


1 comentário:

Mário Soares Braga disse...

O poeta Alexandre Vargas foi encontrado morto esta quarta-feira, em sua casa, não sendo ainda conhecidas as causas da morte. Filho mais novo do escritor José Gomes Ferreira, estreou-se como poeta com o livro Morta a Sua Fala, publicado em 1977 na prestigiada colecção das Iniciativas Editoriais, que o seu pai inaugurara em 1956 com o volume Eléctrico.
Tendo publicado regularmente desde o final dos anos 70 até meados da década seguinte, Alexandre Vargas remeteu-se depois a um prolongado silêncio, só quebrado em 1997 com a sua colaboração na obra colectiva Múltiplos de Três, com Rui Caeiro e Miguel Torres-Chaves.
Em 2002, Amadeu Baptista e Luís Adriano Carlos escolheram-no para abrir a sua antologia Poesia Digital: 7 Poetas dos anos 80, onde divulgam vários poemas inéditos de Alexandre Vargas, designadamente do livro inédito Terminal Transe, que o autor teria há muito pronto a publicar, e para o qual Luis Manuel Gaspar chegou a desenhar várias ilustrações em 1987, mas que acabou por nunca sair.
Já no seu livro de estreia, mas sobretudo a partir do volume seguinte, Cyborg (Livros Horizonte, 1979), a poesia de Vargas está cheia de referências à música pop, do psicadelismo de Syd Barrett ao rock progressivo dos King Crimson ou de Peter Hammill. O líder dos Van der Graaf Generator foi mesmo uma das suas principais referências: o poeta português entrevistou-o e traduziu as suas letras para o volume Camaleão na Sombra da Noite, que publicou em 1990 na colecção Rei Lagarto, da Assírio & Alvim. Alguns anos antes, em 1983, Vargas já publicara na mesma editora, com o título Witt, as suas traduções de Patti Smith.
Em 1981, o poeta chega à colecção Círculo de Poesia, da Moraes, com Vento de Pedra, e publica no mesmo ano, em colaboração com Rui Baião e João Candeias, o livro-envelope Ubris. Seguem-se mais dois títulos, ambos de 1984: Organum (Fenda) e Lua Cisterna (& etc).
Segundo o esquema já experimentado em Cyborg de juntar um conjunto de textos, em verso e em prosa, a um extenso poema final que dá título ao livro, Organum é talvez o volume onde as referências à música são mais frequentes e eclécticas. Num dos poemas do livro, Vargas escreve: “Sinto-me, falo pela tua boca Syd Barrett”. E termina o mesmo texto com uma referência expressa à canção See Emily Play, que Barrett compôs para o álbum inaugural dos Pink Floyd: “E Emily que brinca, que brinca até desapareceres…”
Nascido a 31 de Dezembro de 1952, Alexandre Vargas Gomes Ferreira era filho de José Gomes Ferreira e da sua segunda mulher, Rosália Abecassis Vargas, e meio-irmão do arquitecto Raul Hestnes Ferreira, que morreu em Fevereiro deste ano.
(In Publico)