terça-feira, março 24, 2015

HERBERTO HELDER (1930-2015)

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(a poesia é feita contra todos)

      É aborrecido ter que reclamar-se de todas as afirmações de princípio muito óbvias.
      Nós respeitamos os atributos e instrumentos da criminalidade: agressão, provocação, subversão, corrupção. Queremos conhecer, exercendo-nos dentro de poemas, até onde estamos radicalmente contra o mundo. Os poemas começam a fundar os seus entendimentos com a poesia. É também o momento em que desaparecemos, e seria grato ver como o nosso rosto pode promover o susto dos corações afectos e afeitos à cordialidade.
      Force-se alguém a afastar as palavras, essa folhagem de ouro implantada nos olhos e nos ouvidos, para descobrir o rosto zoológico que nem uma câmara de filmar tornaria capturável e doméstico. A impertinência põe-se a fornecer lições de arquitectura. Há muita gente para habitar as casas. Mas só gostamos de oficinas explosivas.
      Temos tudo o mais contra todos os trabalhadores. O trabalho de uns e o capital de outros não bastam para alugar-nos, embora estejamos usualmente disponíveis. Eles fazem inculcas, em tempos de sedução, para saber do nosso endereço. Mas desaparecemos, por irreversível disponibilidade. Somos inúteis até onde poderia estar por acaso a nossa morada.
      Deus tem uma cabeça demasiado pesada, ocupa totalmente o alforje do pão. Crê-se mesmo ser abusivo um toque no ombro com vista a um momentâneo desvio da carga. Deus dorme, dorme de um sono pesadíssimo, e por isso pesa tanto aquela cabeça. Às vezes pretendemos acordá-la para que se faça mais leve. Tudo morreu em nós menos exactamente a morte das coisas divinas. É por dentro de poemas que transportamos esse estranho alimento de todas as mortes. A celebração funesta torna-se uma política da ignorância pessoal que nos compelimos assumir até ao fim, para ficar com a ciência possível que não conduz à cidadania. Nota-se logo a nossa ausência pedagógica, e quando os outros chegam para o ensino, já não estamos lá e, interrogada a população, talvez se fique a saber que nunca estivemos.
      A poesia é feita contra todos, e por um só; de cada vez, um e só. A glória seria ajudar a morte nos outros, e não por piedade. A grandeza afere-se pelas conveniências do mal. Aquilo que se diz da beleza é uma armadilha. Pena que não pratiquem o pavor, todos. Seria o lucro do nosso emprego e um pequeno contentamento para quem está com alguma pressa em agravar.
      E leia-se como se quiser, pois ficará sempre errado.
Herberto Helder, Photomaton & Vox, 4ª edição, Assírio & Alvim, Lisboa, 2006, pp. 152-153

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