terça-feira, maio 26, 2015

Frederico Pedreira

CIRCO

Os salpicos das ondas voam entre o nevoeiro. Passam horas em que só vemos as nossas sombras a agigantarem-se no chão. Ao longe, monta-se um espectáculo de circo e uma criança passa por nós correndo nessa direcção, visionária, urdindo uma velha canção entre monólogos abafados. Acena muito a uns cavalos brancos que estão presos a um poste e que se sacodem em toda a sua magreza pela excitação. Tento agarrar-lhe o braço, pedir-lhe desculpa por não poder ir com ela. Que não me é possível, que entre a minha e a vida dela aconteceu um número de circo que terminou abruptamente, com estatelamento no chão, sem magia  ou aplausos, e um público a retirar-se em profundo constrangimento.
A criança corre através de mim como se me expulsasse do tempo, corre cada vez mais veloz contra a parede do vento, empurrando a sua primeira contrariedade. O rosto é jovem mas os olhos parecem doentes e lembram-me os meus, injectados ainda com a possibilidade de diferentes rumos.
É a única vez que paramos de andar, petrificados, os pés afundados na areia húmida. Sintonizamos a respiração da criança, tentando obter uma escuta transversal do mundo.

Frederico Pedreira, Breve Passagem pelo Fogo, Lisboa, Artefacto, 2011, p. 28
Frederico Pedreira nasceu em 1983. É autor dos livros de poesia Breve Passagem pelo Fogo, O Artista Está Sozinho, Doze Passos Atrás e Presa Comum (Relógio d' Água, 2015). Publicou também o livro de contos Um Bárbaro em Casa (Língua Morta, 2014)



terça-feira, maio 12, 2015

MESMO A TEMPO

Última página do Diário de Lisboa (digitalizado pela Fundação Mário Soares e acessível aqui) de 1 de Abril de 1975. Leia-se a notícia "Sartre informa-se da luta na TAP"

sábado, maio 09, 2015

JOSÉ AGOSTINHO BAPTISTA

TRAVESSA DE SÃO FILIPE

Cheguei cedo, na primavera dos rapazes.
O cão do norte veio morrer às portas da cidade,
já do amigo compadecido.

Havia dálias e cravos e gladíolos e as tias atrás
das cortinas.
As cortinas tinham medo nas suas rendas.
Eu tinha medo no coração.

O tédio parava na imobilidade dos guindastes.
Havia nas sombras de um beco uma luz muito triste.
As trepadeiras enredavam-se nos muros e subiam.
No terraço, a minha vida sentava-se longamente.
Ao longe, a palmeira recortava o seu perfil e
parecia uma esfinge,
uma faca apontada ao céu.

Retive o gosto das tâmaras e do fruto do paraíso.
Amei em frente uma cabeleira de trigo errante e
na sua dourada exaltação
os metais refulgiam.
Era uma cabeleira ondulando. Eram vales ondulando
na pequena alegria.

Crescia-se com os gerânios, ao abandono.
As famílias afastavam-se, inadvertidamente.
Eu não dizia nada.
Sei que houve um adeus numa estação de lágrimas no
meio de lenços, no meio da cambraia húmida,
e nem uma palavra,
nem um rumor de pálpebras.

Os beijos queimavam. O sol queimava o convés onde
eles se perfilavam, entontecidos pelas hélices.

Percebi que as agulhas corriam pelos dedos e nos
dedos havia um dedal de prata.
Elas falavam devagar,
falavam alto para a solidão dos filhos, distraídas
da candura,
explodindo às vezes, mas como podia sair,
desprender-me, soltar as amarras do ventre?

Oh,
maternal, nocturna gestação de ser morosamente
aturdido, encostado às raízes.
Sonolenta inspiração dos dias raros.
E a mágoa sobrepõe-se à orquídea, à bela orquídea
encantada.
À magoada flor da mocidade.

Os sinos de São Filipe eram como uma dor, um
veneno doce nas horas de maio.
Depois ao crepúsculo,
elas recolhiam-se e já nada se ouvia para lá do
próprio coração.
Eu não dizia nada.

As manhãs repetem os sintomas da doença.
Mal respiro, e o pólen faz-me enlouquecer.
Um pássaro de papel cai junto à janela.
A avó sobressalta-se.

Agora chove nas abacates e nos araçás.
Chove por dentro, diluvianamente,
para sempre.
A ternura escava a sua morada subterrânea.
Oculto as minhas nascentes.

Dizem que hei-de ser homem mas o meu sonho é
uma obsessão de mastros e linhas de água.
Eu era um rapaz muito cedo na primavera.

José Agostinhos Baptista,Canções da Terra Distante (1994), Biografia (2000), Lisboa, Assírio & Alvim, pp. 509-511.