sábado, maio 09, 2015

JOSÉ AGOSTINHO BAPTISTA

TRAVESSA DE SÃO FILIPE

Cheguei cedo, na primavera dos rapazes.
O cão do norte veio morrer às portas da cidade,
já do amigo compadecido.

Havia dálias e cravos e gladíolos e as tias atrás
das cortinas.
As cortinas tinham medo nas suas rendas.
Eu tinha medo no coração.

O tédio parava na imobilidade dos guindastes.
Havia nas sombras de um beco uma luz muito triste.
As trepadeiras enredavam-se nos muros e subiam.
No terraço, a minha vida sentava-se longamente.
Ao longe, a palmeira recortava o seu perfil e
parecia uma esfinge,
uma faca apontada ao céu.

Retive o gosto das tâmaras e do fruto do paraíso.
Amei em frente uma cabeleira de trigo errante e
na sua dourada exaltação
os metais refulgiam.
Era uma cabeleira ondulando. Eram vales ondulando
na pequena alegria.

Crescia-se com os gerânios, ao abandono.
As famílias afastavam-se, inadvertidamente.
Eu não dizia nada.
Sei que houve um adeus numa estação de lágrimas no
meio de lenços, no meio da cambraia húmida,
e nem uma palavra,
nem um rumor de pálpebras.

Os beijos queimavam. O sol queimava o convés onde
eles se perfilavam, entontecidos pelas hélices.

Percebi que as agulhas corriam pelos dedos e nos
dedos havia um dedal de prata.
Elas falavam devagar,
falavam alto para a solidão dos filhos, distraídas
da candura,
explodindo às vezes, mas como podia sair,
desprender-me, soltar as amarras do ventre?

Oh,
maternal, nocturna gestação de ser morosamente
aturdido, encostado às raízes.
Sonolenta inspiração dos dias raros.
E a mágoa sobrepõe-se à orquídea, à bela orquídea
encantada.
À magoada flor da mocidade.

Os sinos de São Filipe eram como uma dor, um
veneno doce nas horas de maio.
Depois ao crepúsculo,
elas recolhiam-se e já nada se ouvia para lá do
próprio coração.
Eu não dizia nada.

As manhãs repetem os sintomas da doença.
Mal respiro, e o pólen faz-me enlouquecer.
Um pássaro de papel cai junto à janela.
A avó sobressalta-se.

Agora chove nas abacates e nos araçás.
Chove por dentro, diluvianamente,
para sempre.
A ternura escava a sua morada subterrânea.
Oculto as minhas nascentes.

Dizem que hei-de ser homem mas o meu sonho é
uma obsessão de mastros e linhas de água.
Eu era um rapaz muito cedo na primavera.

José Agostinhos Baptista,Canções da Terra Distante (1994), Biografia (2000), Lisboa, Assírio & Alvim, pp. 509-511.

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