domingo, julho 26, 2015

Vasco Gato

VI

Que não te enganem
os que compram as horas por atacado
para do teu suor extraírem
a bandeira de um país que nunca será o da atenção
que nunca será o da morada
mas sempre e sempre
o território homeopático da extinção
em que os troféus são
joelhos vergados à condição de cera
para os soalhos do progresso
cujo verdadeiro nome é
despovoamento

Vender-te-ão o conforto
a perseverança     o brio
como se tivéssemos por fito
a acumulação do tempo
sem o fruirmos boca a boca
desesperadamente
garantir o futuro     dir-te-ão
sem repararem na estupidez do repto
pois que poder temos nós
sobre as válvulas biológicas
do nosso prazo
para nos arrogarmos a garantir
o que quer que seja
quanto mais o sumo fruto da inexistência
esse futuro-cano-enfiado-na-boca
para ser disparado sem falta
de manhã e ao deitar

Em volta sucedem-se clarões
e abismos inóspitos
os elementos torcem-se na pesca à linha
dos lugares fundamentais
há uma convulsão de panoramas
para o brevíssimo turismo
dos olhos
mas o importante é a matemática mesquinha
do sangue que furtamos uns aos outros
a medalha de carne pútrida
com que esperamos aparecer
na fotografia da época

Que se foda a época
digo-te já
que se foda a sépia dos futuros
eu quero aparecer no dia
do teu nascimento
desarmado como uma árvore
sem outra missão que não
amparar-te o susto
e dizer-te baixinho
bem-vindo ao continente dos frágeis
podes parar de nadar

Vasco Gato, Fera Oculta, Douda Correria, 2014
Vasco Gato nasceu em 1978. Publicou mais de uma dezena de livros de poesia  entre  Um Mover de Mão (Assírio & Alvim, 2000) e Fera Oculta, plaquete manifestamente politizada que testemunha a situação que Portugal vive e tem vivido.

domingo, julho 19, 2015

EU NÃO CONFIO NA JUSTIÇA PORTUGUESA



Uma das afirmações que mais se têm ouvido aos políticos sobre a justiça, decorrente dos inúmeros casos de envolvimento de políticos em processos judiciais e da prisão de José Sócrates em particular, é o “eu confio na justiça” ou “à justiça o que é da justiça e à política o que é da política” – esta frase tem sido muito utilizada por António Costa em relação a Sócrates. Ora este respeito pela separação de poderes está muito bem do ponto de vista teórico no funcionamento de um Estado, embora se pensarmos bem ele não exista – porque são os políticos que fazem as leis que os magistrados aplicam, são eles, no fundo, os responsáveis pelo Código Penal, Código Civil ou Código do Processo Penal, instrumentos essenciais para a aplicação da justiça. Resta, nestas afirmações de confiança na justiça, uma confiança nos homens e mulheres que aplicam a justiça – os magistrados. Ora o que os vários casos mediáticos que têm envolvido políticos nas malhas da justiça mostram é mais que incompetência ou inépcia por parte de magistrados. É má-fé, abuso de poder, desrespeito pelos mais básicos direitos humanos, procura de protagonismo e poder, sistemática e intencional violação do segredo de justiça. A prisão de José Sócrates e o modus operandi do juiz que ordenou essa prisão, Carlos Alexandre, é exemplar sobre o despótico funcionamento da justiça portuguesa. Como se pode perceber que exista um juiz a quem vão parar todos os processos mediáticos, principalmente os relacionados com políticos? Que explicação tem a procuradora-geral da República, Joana Marques Vidal, para isto?
Para a justiça portuguesa qualquer pessoa uma vez suspeita, e não falta imaginação aos magistrados e “investigadores” portugueses para inventar teorias da conspiração que corroborem que determinada pessoa é responsável por um crime, corre o risco de ir parar à prisão (preventivamente) durante meses e ficar com a vida desfeita. Prende-se para investigar, prendem-se preventivamente cidadãos inocentes, nega-se o princípio de inocência. Diria que hoje qualquer cidadão, porque qualquer cidadão pode ser alvo de uma denúncia anónima que é levada a sério pelos “investigadores”, deve ter mais medo da Polícia Judiciária, dos magistrados do Ministério Público e dos juízes que dos reais criminosos. Não há que ter receio: em certo sentido a justiça portuguesa voltou a tornar-se pidesca e plenária.
Prende-se ao início da noite ou de madrugada, às vezes à sexta-feira, para que a pessoa presa passe o maior tempo possível na prisão antes de ser apresentada ao juiz; prende-se sem reserva de imagem, pelo contrário, chamam-se as televisões, os fotógrafos, todas as redacções de televisão e imprensa ficam a saber antes da prisão ser efectuada; prende-se com meios ostentatórios como os GOE gente que é simplesmente acusada de corrupção. Prendem-se pessoas simplesmente para ser ouvidas em processos. Prende-se, como bem disse José Sócrates numa entrevista, para humilhar e para quebrar. A polícia e a magistratura portuguesa cansaram-se de prenderem carteiristas, pilha galinhas, drogados ou homicidas passionais, gente que só passava pelas páginas d’ O Crime. A justiça portuguesa, e não só a portuguesa, quer protagonismo, quer que as suas prisões abram os telejornais e sejam capas de todos os jornais, a justiça quer o poder que pertenceu aos reis absolutistas, a justiça quer influenciar a política. Não vale a pena tentar negar: a justiça tem uma agenda política, o juiz Carlos Alexandre tem uma agenda política.

António Costa e José Sócrates

Perante isto o que devia dizer António Costa quando é interrogado sobre José Sócrates? A verdade que está no pensamento de muitos militantes, simpatizantes e não só do PS. Sócrates era alguém incómodo com a sua narrativa que vinha apresentando aos domingos na RTP desde que resolvera regressar de Paris. Ao negar Sócrates, quase como Judas traiu Cristo, António Costa está o negar o passado, onde aliás ele também participou como ministro. Tudo isto lhe fica muito mal como candidato a primeiro-ministro, como cidadão, e pode voltar-se contra ele. O que quer dizer Costa quando diz que não tenciona visitar José Sócrates à cadeia? No fundo António Costa sabe que Sócrates tem que ser condenado – não é impunemente que a justiça, em que Costa como muitos outros políticos do sistema dizem confiar prende um ex-primeiro-ministro e o mantém em prisão por mais de meio ano sem uma acusação sólida. E para mais tratando-se de alguém com a capacidade de José Sócrates, um feroz animal político. É também por essa razão que todos os colectivos de juízes que apreciaram os recursos interpostos pelos advogados de Sócrates indeferiram os mesmos. E num caso, em que um juiz relator tencionava dar razão ao recurso de Sócrates, teve que ser chamado à razão da justiça por duas colegas que votaram contra o recurso.
A cobardia de António Costa pode sair-lhe cara politicamente, porque a coligação não deixará de usar como arma de arremesso na campanha eleitoral a prisão de Sócrates. E Costa ao abandonar Sócrates retira-se da narrativa do ex-primeiro-ministro, deixando a narrativa da coligação PSD/PP virar ao de cima sem contraditório. É um erro político grave que pode explicar os fracos resultados que o PS tem tido nas sondagens.

sexta-feira, julho 10, 2015

O "OXI" GREGO E A POLÍTICA EUROPEIA



Ao dizer “Não” no referendo do passado domingo, os gregos disseram claramente não (oxi) às políticas de austeridade impostas desde há cinco anos pela troika. Foi um não corajoso, porque as suas consequências podem ser a saída da Grécia do Euro, com os inevitáveis efeitos para a Grécia mas também para a restante Europa. Possivelmente já no próximo domingo haverá quanto a isso uma decisão dos países do eurogrupo – será que eles preferem cortar um dedo, sem saber quais as consequências, para extirpar o mal fantasmático do Syriza alegadamente comunista? (na verdade o Syriza sendo uma “coligação” de várias facções de esquerda, não é o Partido Comunista ortodoxo, como o PCP em Portugal – existe na Grécia um partido comunista ortodoxo, o KKE).
O “efeito Syriza” trouxe democracia à União Europeia, o mesmo é dizer que trouxe uma dura dor de cabeça aos tecnocratas europeus habituados a lidarem com governos dóceis, como o português. Ora este “efeito Syriza” não funciona sozinho – viu-se nos últimos meses a falta que fez ao governo de Tsipras um aliado, como o Podemos espanhol. Perante a falta de democracia nas instituições europeias e perante a conivência dos partidos sociais-democratas/socialistas com essa ausência de democracia, faz falta uma nova esquerda de que o espanhol Podemos é o mais significativo – e assustador exemplo para o centro direita e centro esquerda.
Perante isto, e aconteça o que acontecer nas próximas semanas em relação à crise grega, algo já mudou com a vitória do Syriza em Janeiro passado. Falta que os cidadãos europeus ganhem confiança nos partidos de esquerda europeus. Mas essa é uma tarefa muito difícil: não só pela divisão existente entre estes partidos e movimentos, mas sobretudo porque os meios de comunicação social têm privilegiado os partidos do statuo quo em detrimento de outros actores políticos – veja-se quem são os comentadores políticos da televisão portuguesa em sinal aberto.
A Europa foi construída por uma elite – primeiro uma elite de políticos, depois uma “elite” de tecnocratas acéfalos e obedientes, comandados pelos altos interesses empresariais e financeiros. É, portanto, uma Europa feita pelo telhado, contra o povo que deveria ser a base desta construção. Ora isso só pode ser resolvido através de uma nova esquerda, e de uma nova política, que represente realmente os cidadãos europeus.