terça-feira, abril 26, 2016

MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO



Há entre Mário de Sá-Carneiro e Fernando Pessoa mais que uma amizade. Sá-Carneiro poderá ter sido prejudicado por essa pequena multidão de gente que habitava a mente e o génio de Pessoa. Demasiado ofuscante para toda a poesia que viria depois, Mário de Sá-Carneiro terá sido a primeira “vítima” de Pessoa. Sá-Carneiro foi quase um heterónimo de Pessoa. Mas, por outro lado, Pessoa foi o duplo de Sá-Carneiro, a alteridade em que se funda a poesia moderna, pelo menos desde Rimbaud (o outro, “Aqueloutro”).
E, no entanto, há um caso Mário de Sá-Carneiro na literatura portuguesa que tem sido sombreado pela imensa complexidade – em todos os sentidos – do caso Pessoa. E Sá-Carneiro, de mais breve vida, de obra publicada em vida e com poucos inéditos, não deixa de ser um caso único na unicidade da sua obra a que se liga um ou outro biografema, quando não se tenta fazer uma interpretação da obra pela biografia ou vice-versa. A orfandade materna, o dinheiro, os cafés, Paris… e o suicídio, a 26 de Abril de 1916, que parece ter sido uma encenação para um espectador – João Araújo.
Mas para além de tudo isto, há uma obra de extrema riqueza, quer a nível poético quer ficcional. É essa obra, escassa, que tem vindo a ser descurada, talvez em proveito de um mito que o jovem suicida alimenta. Ou, simplesmente a literatura de Mário de Sá-Carneiro, hoje, cem anos após o seu suicídio, ainda não foi entendida. Como defendem vários especialistas na obra do “esfinge gorda” na edição de hoje do Público (pp. 24-25), terá sido Sá-Carneiro a abrir caminhos para a obra pessoana. Repare-se num poema como Manucure (datado de Maio de 1915), “semifuturista” mas algo de único na literatura portuguesa, na sua ligação às vanguardas de princípios de século. E algo de único também entre o barroco e a poesia experimental. É claro que a literatura, nem a sociedade, portuguesa estava preparada para ter um Mário de Sá-Carneiro – e provavelmente ainda não está. Mário de Sá-Carneiro sabia que escrevia para o futuro, o que espanta é como esse futuro tem andado alheado desta escrita. Será porque ainda não a compreendeu? 

sábado, abril 16, 2016

O JORNALISTA NÃO MORDE O DONO

 
Sexta-feira foi noticiado no Jornal de Notícias a discussão e aprovação de uma lei que partiu de um projecto de iniciativa cidadã com cerca de 157 mil assinaturas. O projecto de lei dizia respeito ao fim do período de fidelização de 24 meses dos serviços das operadoras de telecomunicações. Como bem escrevia o subdirector do JN, David Pontes, "sempre que vierem à baila os interesses de grandes empresas, preparemo-nos para a sintonia entre os dois grandes blocos [PS e PSD] e a completa nulidade da ação dos reguladores". Portanto, a referida tentativa de acabar com o abuso que é o período de fidelização de 24 meses saiu em parte gorada porque PS e PSD formam, ainda, um bloco central que serve os interesses das grandes empresas. No entanto, algo mudou. O que não mudou, antes pelo contrário, foi a forma como os média noticiam estes acontecimentos. Se o JN deu relevo a esta iniciativa, que mobilizou 157 mil pessoas, já o Público a ignorou por completo (não falo dos outros jornais e telejornais que não consultei nem vi). Torna-se fácil perceber porque razão esta notícia não saiu no Público: o jornal é propriedade da sonae, o mesmo grupo empresarial que detém uma das operadoras de telecomunicações em Portugal, a actual Nos. O que está em questão é a independência editorial de um jornal que se tem como jornal de referência perante o seu dono. Mais: sendo as operadoras de telecomunicações um dos principais clientes, a nível publicitário, de televisões e jornais, qual a independência editorial dos média perante estas grandes empresas? Ou estamos todos, desde consumidores a partidos políticos, reféns dos interesses destas empresas? Na resposta a esta pergunta, creio, está também a resposta à pergunta sobre a nossa liberdade, e em última instância sobre quem verdadeiramente nos governa.  

terça-feira, abril 12, 2016

Inês Fonseca Santos

 

Eis a língua terrível,
incendiada, densa,
de encontro ao verso;

a língua de lamber
da mão a ferida aberta
no encontro do verso.

Nessa língua, saberás falar: a boca
aberta com o abismo dentro

como se alguém estivesse realmente
à escuta do outro lado.

Do outro lado:
um tiro na cabeça do verso,
estilhaçando a voz.

Sem colete à prova de bala

Inês Fonseca Santas, O Voo Rasante - Antologia de poesia contemporânea, Mariposa Azual, 2015, p. 62
Inês Fonseca Santos (1979) é jornalista cultural, com quase total dedicação aos livros. Publicou uma antologia do humor português e, no campo da poesia editou os livros As Coisas (abysmo, 2012) e Habitação de Jonas (abysmo, 2013). É ainda autora de um estudo sobre a obra de Manuel António Pina: Regressar a Casa com Manuel António Pina (abysmo, 2015).