segunda-feira, julho 31, 2017

AS MIL E UMA NOITES – UMA HOMENAGEM À LITERATURA

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Em 1704 o orientalista francês Antoine Galland publica pela primeira vez no ocidente uma tradução d’ As Mil e Uma Noites, dando a conhecer aos leitores da época e futuros um vasto conjunto de contos (282) de origem persa, indiana e árabe. Desde o século IX que era conhecida, em árabe, a recolha de histórias provenientes da folclore de várias culturas do oriente. Antoine Galland na sua versão terá censurado alguns contos, e acrescentado mais alguns, sem grande fidelidade ao original. De certa forma, até hoje, As Mil e Uma Noites são um livro palimpsesto.

Mas, apesar das múltiplas versões d’ As Mil e uma Noites, importa a sua história que é uma grande homenagem à literatura, à arte de contar histórias (ou estórias). Vejamos: no início d' As Mil e Uma Noites, temos o rei Xarir, da Pérsia, que descobre que a sua mulher o engana com um escravo. Inicia-se uma furiosa vingança de Xarir, que decapita os amantes. Mas o rei persa vai muito mais longe na sua vingança: todas as noites casava com uma virgem, que depois da noite de núpcias, entregava ao seu vizir para ser degolada. Xerazade, precisamente a filha do vizir, engendra uma artimanha para acabar com esta carnificina – propõem-se entregar-se ao rei Xarir. E assim acontece. Mas Xerazade, que tinha pedido que fosse acompanhada da sua irmã Dinarzade, quando acorda da noite de núpcias é interpelada pela sua irmã mais nova para que conte uma história. Eis que o rei se interessa pela história que Xerazade conta a ponto de não mandar degolar Xerazade, interrompendo o seu atroz morticínio, porque quer saber o final da história que, entretanto, Xerazade interrompera. A interrupção é a chave do sucesso da artimanha de Xerazade, o método que lhe salva a vida.

É pois pela arte de contar histórias que Xerazade se salva e termina com a vingança do rei Xarir. Eis a suprema homenagem à literatura – neste caso à literatura oral e por extensão a outras formas de ficção, pois como escreveu o poeta T. S. Eliot “Humankind cannot bear very much reality.”

As Mil e Uma Noites e em particular a personagem Xerazade mostram-nos o poder da literatura, um poder político capaz de suspender as atrocidades humanas. Xerazade é uma dessas personagens femininas para quem, como acontece com Antígona, a injustiça e o despotismo são intoleráveis. Mas As Mil e Uma Noites nada têm da trágico; pelo contrário, o que neste encadeamento de narrativas abunda é o maravilhoso, o erotismo, uma compulsão por contar e ouvir histórias que suspende e anula os actos despóticos, o mal. Estas “noites” são solares. As Mil e Uma Noites convocam a literatura, o contar histórias, para uma ética/estética do imaginário, da envolvência com a ficção que interrompe a crueza e crueldade do real. Talvez por isso tenhamos necessidade de sonhar, de organizar o que vivemos durante o dia numa narrativa fantástica, surrealizante, desconexa, mas de qualquer forma a narrativa que o nosso inconsciente nos conta, essa estranha Xerazade que nos habita.
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Em Portugal existem várias edições d’ As Mil e Uma Noites. Editoras como a Civilização, a Estampa, as Publicações Europa-América, Amigos do Livro, Bertrand, Minerva (com tradução do poeta Cabral do Nascimento), Círculo de Leitores, a Parceria António Maria Pereira (que deve ter sido uma das primeiras, senão a primeira editora a publicar, em 1909, a obra organiza por Antoine Galland) mostram o interesse por esta obra que é uma das maiores da literatura universal. Mas dentre todas estas edições, uma se destaca: a que foi publicada pelos Estúdios Cor, em seis volumes, entre 1958 e 1962. Essa edição, hoje uma raridade vendida a preços bastante altos, conta com traduções de alguns dos nossos melhores escritores do século passado: Aquilino Ribeiro, Carlos de Oliveira, David Mourão-Ferreira, Domingos Monteiro, Irene Lisboa, João Gaspar Simões, José Gomes Ferreira, José Rodrigues Miguéis, Jorge de Sena, José Saramago, Urbano Tavares Rodrigues. A acrescentar a estes escritores/tradutores há todo um grupo dos melhores ilustradores da época.

O jornal Expresso resolveu editar em sete volumes O Livro das Mil e Uma Noites, distribuído gratuitamente (isto é, sem que o leitor pague mais que o preço do semanário). Esta edição, no entanto, e apesar de alguma qualidade gráfica, reveste-se de um desrespeito para com os leitores do jornal. Em primeiro lugar não estamos perante a obra integral, mas uma selecção ou antologia (As Mil e Uma Noites na versão de Antoine Galland têm cerca 1600 páginas; cada volume da edição do Expresso tem 110 páginas o que equivale na totalidade dos sete volumes a 770 páginas, ou seja a menos de metade da obra integral). A não edição da obra integral de Antoine Galland (já não me refiro a outros organizadores posteriores como Richard Burton) seria completamente natural e aceitável se fosse indicado que se tratava de uma selecção ou antologia. Mas não, em nenhum lugar, nem mesmo num prefácio introdutório à obra em geral isso é dito. Portanto, o Expresso mete no saco gato por lebre. O leitor que não procure informação sobre a obra, e ler os sete volumes, julga que leu na íntegra As Mil e Uma Noites quando leu apenas uma selecção de contos d’ As Mil e Uma Noites. Numa altura em que o jornalismo está em crise, este comportamento não abona nada a favor do Expresso e grupo Impresa – porque se o Expresso engana os leitores quanto a uma obra literária que distribui, também enganará os seus leitores nas peças jornalísticas que apresenta. Para além do já referido, esta selecção d’ As Mil e Uma Noites, tem, estranhamente, como assinatura de tradução Alêtheia Editores. Os volumes são editados em parceria com esta editora da ex-militante comunista Zita Seabra, mas mesmo quando se trata de uma tradução colectiva os nomes dos tradutores devem aparecer. É algo estranho e desprestigiante da edição, que a formação da editora como alto cargo do PCP não serve de desculpa. Antes, esta assinatura colectiva parece configurar uma lógica neoliberal a que Zita Seabra aderiu nas últimas décadas.