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sexta-feira, outubro 24, 2014

Rosa Oliveira



L´HOMME AUX RATS


vai-me buscar cigarros
(de enrolar duram mais)
dizia agarrado ao roupão
que gritava hospital a
centenas de metros
os chinelos de velho
nos calcanhares de cortiça
ontem esfreguei-me no chão
não há hipótese
não tenho orgasmos há quatro anos

fugi daquela casa
os ratos não me deixavam dormir
conduzi
o carro sugado pela neblina
os ciganos
ofereceram-me o lixo deles
para comer
agradeci
os algarismos
não paravam
batiam à porta
depositaram
um cão esventrado
no tapete

na aldeia
havia menos pessoas que no prédio
em frente de tua casa
cheira bem
o teu manjericão roído
por traças verdes

foi então no outono
telefonei-te
percebi
que estava a
deixar de ser moderno
era um sabujo
que batia nos pais
e mal sabia ler
tens de escrever e falar
por mim
perco-me nas frases
e as ideias partem-se
ao quererem sair

estás a ver este gajo
foi buscar tabaco e
agora vem com conversa de padre
se calhar safava-me
da ala psiquiátrica
se fosse para padre
assim
rio e choro
tudo de seguida
e não tenho ninguém a quem
encostar o corpo

esta conversa parece um poema
do cesariny
numa noitada
abjeccionista

esquece o orgasmo
é só um espasmo
toma mas é o lítio
e põe-te firme
na realidade

qual mimese
qual caralho...

(Relâmpago - revista de poesia nº 33)

Rosa Oliveira nasceu em 1958, Viseu. Tem-se dedicado ao estudo e ensino da literatura. Em 2013 publicou o seu primeiro livro de poemas - Cinza - editado pela colecção de poesia da Tinta da China.
                                                              

domingo, agosto 31, 2014

EDUARDO GUERRA CARNEIRO

DIVÃ

   Transforma-se o amador na cousa amada. Por entre lágrimas e suspiros, prossegue o jogo, motivado pela vontade de jogar, mais forte que a sorte em pano verde.
   Divã - o título da jogada. Uma sorte de prestidigitador, soltando a pomba nos ombros da diva, chamas reais da boca da divina. No divã quem se deita? O doente ou o médico? O paciente ou o inconsciente? O psicanalista ou a psicanálise?
   Passando, para já, adiante, ó cavalheiros!, voltemos à diva, sob os projectores fortes do espectáculo ou junto às luzes da ribalta. Divino é seu gosto, à medida, nos gestos melhores, fora de cena. Adivinhas? O gosto duvidoso do poeta não sabe decifrar jogadas - fora de jogo.
   Encaminha-se o relato para o relatório; alguns novelos soltam-se; o papel químico desfaz-se em pó. E o amador?, questiona o artista. Quem lhe poderá dar a resposta se nem a amada sabe a quantas anda?
   A diva, essa, já nem usa lantejoulas, sentando-se no chão, de ganga gasta. O poeta deita-se no divã. Inicia o monólogo. Defensor de causas perdidas, preocupa-se com o gesto, perde já o gosto. Outros diriam que a pedalada esmorece.
   Nas curvas da divina - a diva? - o artista tenta a sorte do divã. Não joga bem e perde, ainda outra vez. Quando de galo, assim, tenta avançar, faz gala em simular um volta atrás. Os outros não perdoam a batota! dizem. Ele sabe que não joga em falsidade e conquista alguns pontos, poucos, nessa sorte. Mas longe vai já a diva - hesitou, perdeu.
   Volta ao divã, em busca dos novelos, procurando, afinal, o fio à meada própria. Nos outros sabe ver e precisar o gesto, o gosto, cambiante, ficção, realidade. Quem lhe oferece um espelho, bem antigo, onde possa olhar-se até ao fundo?

Eduardo Guerra Carneiro, A Dama de Espadas, Lisboa, & etc, 1981, pp. 21-22