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domingo, fevereiro 28, 2021

Yosa Buson



 Lua com auréola
o perfume das ameixoeiras
subiu tão alto?

*
Trabalhando a terra
vislumbro a casa
ao anoitecer

*
Nortada
o som da chuva
afiado pelas rochas

*
Canta o cuco
sem pais
nem filhos

De "Primeiro Amor e outros poemas", selecção e versões de Manuel Silva-Terra, Editora Licorne, 2013.


sexta-feira, julho 31, 2020

Al - Mu'tamid

Al-Mu 'Tamid: o rei-poeta de Sevilha | by Maria João Cantinho ...

Ao passar junto da vide
Ela arrebatou-me o manto,
E logo lhe perguntei:
Porque me detestas tanto?
Ao que ela me respondeu:
Porque é que passas, ó rei,
Sem dares saudação,
Não basta beberes-me o sangue
Que te aquece o coração?

*

Só eu sei quanto me dói a separação!
Na minha nostalgia fico desterrado
À míngua de encontrar consolação.
À pena no papel escrever não é dado
Sem que a lágrima trace, caindo teimosa,
Linhas de amor na página da face.
Se o meu grande orgulho não obstasse
Iria ver-te à noite; orvalho apaixonado
De visita às pétalas da rosa

In O Meu coração é Árabe - a poesia luso-árabe, Sel. Trad. e prefácio de Adalberto Alves, Assírio & Alvim, 1987.
Al-Mu´tamid nasceu em Beja, em 1040, no seio de uma família de poetas. Foi rei da taifa de Sevilha, e é considerado como o mais importante poeta da poesia Luso-Árabe e do Al-Andaluz.


sexta-feira, fevereiro 27, 2009

TRADUÇÕES, 1:TRÊS POEMAS DE ANNE SEXTON


QUANDO O HOMEM ENTRA NA MULHER

Quando o homem
entra na mulher,
como a onda batendo contra a costa,
de novo e de novo,
e a mulher abre a boca com prazer
e os seus dentes brilham
como o alfabeto,
Logos aparece ordenhando uma estrela,
e o homem
dentro da mulher
ata um nó
de modo que nunca
possam voltar a separar-se
e a mulher
sobe a uma flor
e engole o seu caule
e Logos aparece
e solta seus rios.

Este homem,
esta mulher,
com a sua dupla fome,
tentaram atravessar
a cortina de Deus,
e por um instante conseguiram,
ainda que Deus
na Sua perversidade
desate o nó.



PALAVRAS

Tem cuidado com as palavras
mesmo as milagrosas.
Pelas milagrosas nós fazemos o melhor possível,
por vezes são como uma multidão de insectos
que não nos deixa uma picada mas um beijo.
Podem ser tão boas como dedos.
Podem ser tão seguras como a rocha
onde te sentas.
Mas também podem ser ao mesmo tempo margaridas e [amachucadas.

Contudo, estou apaixonada pelas palavras.
São pombas que caem do tecto.
São seis laranjas santas pousadas no meu regaço.
São as árvores, as pernas do verão,
e o sol, seu impetuoso rosto.

No entanto, falham-me com frequência.
Eu tenho tantas coisas que quero dizer,
tantas histórias, imagens, provérbios, etc.

Mas as palavras não são suficientemente boas,
as erradas beijam-me.
Por vezes voo como uma águia
mas com as asas de uma carriça.

Mas tento ter cuidado
e ser amável com elas.
As palavras e os ovos devem manipular-se com cuidado.
Uma vez partidas há coisas
impossíveis de reparar.




DEPOIS DE AUSCHWITZ

Raiva
tão negra como um gancho,
alcança-me.
Cada dia,
cada nazi
pega, às oito da manhã, num bebé
e serve-o para o pequeno-almoço
com pão frito.
E a morte olha despreocupada
e limpa a sujidade que tem debaixo das unhas.

O homem é maldade,
digo em voz alta.
O homem é uma flor
que poderia ser queimada,
digo em voz alta.
O homem
é um pássaro cheio de barro
digo em voz alta.

E a morte olha despreocupada
e arranha o ânus.

O homem, com seus pequenos e rosados dedos dos pés,
com seus dedos milagrosos
não é um templo
mas um anexo,
digo em voz alta.
Que o homem nunca mais levante sua chávena de chá.
Que o homem nunca mais escreva um livro.
Que o homem nunca mais calce um sapato.
Que o homem nunca mais eleve seus olhos
numa suave noite de junho.
Nunca. Nunca. Nunca. Nunca. Nunca.
Digo isto em voz alta.

E suplico ao Senhor que não ouça.

Versão dos poemas “When man enters woman”, “Words” e “After Auschwitz” de Anne Sexton (a partir de uma tradução espanhola e do original) por ASM

segunda-feira, dezembro 08, 2008

EMILY DICKINSON (3 POEMAS)


Como se o mar apartando-se
Mostrasse um outro mar -
E esse - um outro - e dos Três
Apenas se pudesse suspeitar -

De Sucessões de Mares -
Adversos à Costa -
Eles próprios a Margem de Mares por ser -
A eternidade - é Isso -

*

Esta é a minha carta ao Mundo
Que nunca Me escreveu -
As Notícias simples que a Natureza contou -
Com branda Majestade

A sua Mensagem está destinada
A mãos que não consigo ver -
Pelo Seu amor - Afáveis - camponesas -
Julguem-me brandamente - a Mim

*

O Cérebro - é mais amplo do que o Céu -
Pois - colocai-os lado a lado -
Um o outro irá conter
Facilmente - e a Vós - também -

O Cérebro é mais fundo do que o mar -
Pois - considerai-os - Azul e Azul -
Um o outro irá absorver -
Como as esponjas - à Água - fazem -

O Cérebro é apenas o peso de Deus -
Pois - Pesai-os - Grama a Grama -
E eles só irão diferir - se tal acontecer -
Como a Sílaba do Som -

Emily Dickinson, Esta é a minha carta ao mundo e outros poemas, Trad. Cecília Rego Pinheiro, Assírio & Alvim, col. Gato Maltês, 1997, pp. 33, 53 e 61.

terça-feira, setembro 09, 2008

CESARE PAVESE


O INSTINTO

O homem velho, desenganado de tudo,
da soleira da porta, sob o sol cálido,
observa o cão e a cadela a satisfazerem o instinto.

Sobre a sua boca desdentada perseguem-se as moscas.
A sua mulher há muito que morreu. Também ela,
como todas as cadelas, não queria saber disso,
mas não lhe faltava o instinto. O homem velho cheirava o ar
- ainda tinha dentes -, a noite vinha,
metiam-se na cama. Era bonito o instinto.

O que agrada no cão é a grande liberdade
De manhã à noite vagueia pela rua;
e ora come, ora dorme, ora monta cadelas:
não espera sequer pela noite. Raciocina
com o faro, e os cheiros que sente são seus.

O homem velho recorda-se de uma vez
em que o fez como os cães, de dia, no meio duma seara.
Já não sabe com que cadela, mas lembra-se do grande sol
e do suor e da vontade de nunca mais acabar.
Era como numa cama. Se os anos voltassem,
gostaria de o fazer sempre no meio duma seara.

Desde a rua uma mulher e pára a olhar;
o padre passa e volta-se. Na praça pública
pode-se fazer tudo. E até a mulher,
que tem pudor em voltar-se para o homem, pára.
Só um rapaz não tolera o jogo
e faz chover pedras. O homem velho indigna-se.

(Cesare Pavese, Trabalha Cansa, Trad. e Introdução de Carlos Leite, Cotovia, 1997, pp. 265-267)

Cesare Pavese nasceu há precisamente cem anos em Santo Stefano Belbo; estudou em Turim, tendo apresentado uma tese sobre Walt Whitman. Pertenceu ao Partido Comunista Italiano e trabalhou como tradutor para a editorial Einaudi. Poeta e ficcionista, dele estão traduzidos para português vários livros como o seu diário, Ofício de Viver, ou as narrativas A Lua e as Fogueiras, Férias de Agosto, A Praia, O Verão, A Guitarra Quebrada, O Diabo sob as Colinas, Noites de Festa (estas últimas editadas nos anos 60 e 70 estão esgotadas). A sua poesia está compilada no volume Trabalhar Cansa (Cotovia). Suicidou-se a 27 de Agosto de 1950.

domingo, março 30, 2008

JORGE LUIS BORGES


Os Borges

Nada ou bem pouco sei dos meus maiores
Portugueses, os borges: vaga gente
Cumprindo em minha carne, obscuramente,
Seus hábitos, rigores e temores.
Ténues como se não tivessem sido
E alheios aos trâmites da arte,
Indecifravelmente fazem parte
Do tempo e da terra e do olvido.
Melhor assim. Cumprida a sua ideia,
São Portugal, são a famosa gente
Que forçou as muralhas do Oriente
E ao mar se deu e ao outro mar de areia.
São o rei que no místico deserto
Se perdeu e o que jura estar desperto.

in O Fazedor, Obras Completas II, ed. Teorema, 1998, Trad. Fernando Pinto do Amaral, p. 206

segunda-feira, fevereiro 04, 2008

PHILIP LARKIN


JANELAS ALTAS

Quando vejo um casal de miúdos
E percebo que ele a anda a foder e ela
Usa um diafragma ou toma a pílula
Sei que isto é o paraíso

Com que os velhos sonharam toda a vida -
Compromissos e gestos postos de lado
Que nem debulhadora fora de moda,
E toda a gente nova a descer pelo escorrega,

Interminavelmente, para a felicidade. Será
Que alguém olhou para mim, há quarenta anos,
E pensou: Isto é que vai ser boa vida;
Nada de Deus, ou de suores nocturnos,

Ou medo do inferno, ou ter de esconder
do padre aquilo em que se pensa. Ele
E a malta dele, c'um raio, hão-de ir todos pelo escorrega
Abaixo, livres que nem pássaros?
E de imediato,

Em vez de palavras, vêm-me à ideia janelas altas:
O vidro que acolhe o sol, e mais além
O ar azul e profundo, que não revela
Nada e está em lado nenhum e não tem fim.

Philip Larkin, Janelas Altas, Trad. de Rui Carvalho Homem, Cotovia, 2004, p.45

domingo, agosto 05, 2007

KONSTANDINOS KAVAFIS


AS JANELAS



Nestas salas escuras, onde vou passando

dias pesados, para cá e para lá ando

à descoberta das janelas. - Uma janela

quando abrir será uma consolação. -

Mas as janelas não se descobrem, ou não hei-de conseguir

descobri-las. E é melhor talvez não as descobrir.

Talvez a luz seja uma nova subjugação.

Quem sabe que novas coisas nos mostrará ela.



Konstandinos Kavafis, Poemas e Prosas, trad. de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis, Relógio d' Água, 1994, p.83

terça-feira, junho 05, 2007

Charles Baudelaire


O ESTRANGEIRO


- De quem gostas mais, diz lá, homem enigmático? de teu pai, da tua mãe, da tua irmã, ou de teu irmão?

- Não tenho pai, nem mãe, nem irmã, nem irmão.

- Dos teus amigos?

- Eis uma expressão cujo sentido até hoje ignorei.

- Da tua pátria?

- Não sei a latitude em que está situada.

- Da beleza?

- Amá-la-ia de boa vontade, divina e imortal.

- Do oiro?

- Odeio-o tanto como a vós Deus.

- Então que amas tu, singular estrangeiro?

- Amo as nuvens... as nuvens que passam... lá longe... as maravilhosas nuvens!


Charles Baudelaire, O Spleen de Paris -- pequenos poemas em prosa, Relógio d' Água, 1991

terça-feira, outubro 03, 2006

Sylvia Plath


BONDADE

A bondade plana perto da minha casa.
A dona Bondade, ela é tão simpática!
As jóias azuis e vermelhas dos seus anéis de fumo
Nas janelas, os espelhos
Enchem-se de sorrisos.

Que há mais real do que o gemido de uma criança?
O gemido de um coelho pode ser mais selvagem
Mas não tem alma.
O açuçar tudo cura, é o que diz a Bondade.
O açucar é um fluido necessário,

De cristais que são como um pequeno penso.
Ó bondade, bondade
A apanhar delicadamente os grânulos!
As minhas sedas japonesas, borboletas desesperadas,
Para fixar a qualquer momento, anestesiadas.

E lá vens tu, com uma chávena de chá
Numa auréola a vapor.
O jacto de sangue é poesia,
Nada o pode estancar.
Tu trazes-me dois filhos, duas rosas.

in Ariel, tradução de Maria Fernanda Borges, Relógio d' Água, 1996

sábado, agosto 19, 2006

Federico Garcia Lorca


BÚZIO

Trouxeram-me um búzio.

Dentro dele canta
um mar de mapa.
Meu coração
encheu-se de água
com peixinhos
de sombra e prata.

Trouxeram-me um búzio.

(in Antologia Poética, trad. de José Bento, Relógio d' Água, 1993, p.35)

Federico Garcia Lorca foi fuzilado a 19 de Agosto de 1936, pelos nacionalistas.