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domingo, dezembro 31, 2023

LIVROS EM 2023

 

1, 2023 foi o ano em que o Ministério Público (MP) levou à demissão do governo de António Costa. Depois do ano ter começado com uma série de casos & casinhos que envolviam membros do governo, o golpe final foi dado em Novembro, quando a polícia entrou na residência oficial do primeiro-ministro e um comunicado do MP colocava Costa como suspeito. O primeiro-ministro demitiu-se nesse mesmo dia. Um mês antes, no Médio Oriente, o Hamas, num ataque terrorista, matava cerca de mil israelitas e fazia mais de 200 reféns. A resposta do governo de Benjamin Netanyahu foi uma acção de guerra que até agora fez mais vinte mil mortos palestinianos, na Faixa de Gaza, a maioria deles civis, e parece avançar com intenções de extermínio dos palestinianos.

Mas, no início do ano, algo de novo aparecia no reino da tecnologia em que estamos cada vez mais imersos: o Chat GPT. Concebido pela empresa OpenAi, o Chat GPT, e os modelos que lhe seguiram por parte da concorrência, o Chat Bing (Microsoft) e o Chat Bard (Google), permitem pela primeira vez uma interacção conversacional com um mecanismo de inteligência Artificial (IA). Embora já estivesse presente nos dispositivos electrónicos, nomeadamente nos smarphones, embora a investigação em IA tenha décadas, nunca a IA se apresentou assim perante os humanos: como um chatbot com o qual é possível “falar” (teclar), a quem é possível colocar questões, dúvidas ou pedir para criar algo. Tratando-se de um modelo de linguagem estatístico, o Chat GPT assume uma aura de uma entidade com uma sabedoria que não tem – ainda. A inteligência artificial apareceu como uma ameaça, a juntar a outras como a crise climática e as guerras (na Ucrânia e entre Israel e o Hamas), o que levou, paradoxalmente, alguns dos investigadores em IA a escreverem uma carta onde pediam uma desaceleração na investigação em IA. Vive-se assim entre o desejo que a IA resolva os problemas da humanidade, e o receio que se torne tão ou mais inteligente que os humanos. O certo é que ainda imberbe, a IA aparece como uma ameaça também ao mundo da criação literária. A greve dos argumentistas em Hollywood, que durou cerca de cinco meses, foi causada entre outros factores pela utilização da IA, num claro e primeiro efeito da IA no mundo da criação literária e artística. Os modelos como o Chat GPT têm já a capacidade de escreverem histórias infantis que podem rivalizar com as escritas por escritores humanos. Por altura do aparecimento do Chat GPT a Amazon foi inundada de livros para a infância. Vivemos, assim, num certo meio literário, já condicionado pela inteligência artificial. E o restante mundo editorial (tradutores, revisores, gráficos, etc) poderá ser afectado pela IA.

Num artigo publicado no El País, a escritora e activista Naomi Klein acusava a IA de “grande roubo” a todo o conhecimento humano, tendo o jornal The New York Times materializado essa opinião ao recentemente processar a Microsoft e a OpenAI por violação de direitos de autor. O filósofo José Gil, num ensaio publicado no Público (3-12-23) prevê um cenário distópico: “as obras de arte algoritmizadas serão saudadas como exemplos singulares de criação e engenho das máquinas inteligentes. Os romances, as traduções, os objectos de arte, as composições musicais resplenderão de originalidade inigualável. Produtos de uma enorme complexidade – nós seremos mais simples e pequenos, pobres e felizes.”  

 

2, De três importantes escritores e poetas se comemoraram em 2023 o centenário de nascimento: Eugénio de Andrade, Mário Cesariny e Natália Correia. Eugénio de Andrade (1923-2005), foi um dos principais poetas portugueses da segunda metade do século XX. A sua poesia imbuída de um Eros clássico, principalmente nas primeiras obras, teve ao longo de décadas uma excelente recepção entre os leitores. Treze anos depois do seu desaparecimento, importava averiguar o valor que esta poesia mantém no cânone – universitário, crítico, entre pares e junto dos leitores. Certo é que neste ano de centenário apenas um livro de Eugénio de Andrade foi publico – Aquela Nuvem e Outras (Porto Editora), um livro para crianças. Embora a Assírio & Alvim tenha vindo desde 2012 a publicar individualmente cada um dos livros de Eugénio de Andrade, e já tenha em 2017 publicado a poesia reunida do poeta que nasceu no Fundão e viveu no Porto, e em 2022 a prosa reunida, pouco se notou, a nível de iniciativas, o centenário do autor de As Mãos e os Frutos. Quer isto dizer que Eugénio de Andrade caiu num certo esquecimento, ou talvez num desgaste.

Num sentido contrário podemos falar da obra poética, e não só, de Mário Cesariny. O nome de Cesariny liga-se umbilicalmente ao surrealismo português (juntamente com Alexandre O`Neill e António Maria Lisboa, mas também Mário-Henrique Leiria ou Manuel de Lima), de que foi o criador e teórico (veja-se Textos de Afirmação e de Combate do Movimento Surrealista). Mas a sua poesia maior pode ser resumida a quatro ou cinco poemas que estarão entre os melhores poemas da lírica portuguesa. Mário Cesariny praticou a insubmissão como forma de vida. E essa atitude terá levado a um propositado esquecimento da sua obra que foi recuperada no final da sua vida e nos últimos anos. Daí que ao Cesariny poeta se tenha recuperado o Cesariny artista plástico. A edição da antologia Poesia de Mário Cesariny, e do projecto datado de 1977 de uma heterodoxa antologia de poesia, cujo título Poetas do Amor, da Revolta e da Náusea (ambas organizadas por Fernando Cabral Martins para a Assírio & Alvim) é já em si sintomático da rebeldia de Cesariny, mas também do acolhimento que a sua obra tem tido.

No caso de Natália Correia, não podemos falar apenas de uma escritora e poeta. É, para além disso, a sua biografia que a vai impor como uma figura pública:  deputada à Assembleia da República pelo PSD e depois pelo PRD, mas também pelo programa televisivo Mátria, que Natália Correia se torna conhecida do grande público, já depois do 25 de Abril. Mas, num outro círculo, mais restrito, Natália Correia vai afirmar-se, ainda durante o Estado Novo, como anfitriã e dona de um bar em Lisboa – o Botequim – que procurava ser um espaço de liberdade dentro da ditadura. Na sua actividade de escrita foi romancista, dramaturga, poeta, ensaísta, diarista, organizadora de antologias. Uma dessas antologias, Antologia da Poesia Portuguesa Erótica e Satírica (1965, primeira edição) valeu-lhe uma condenação de três anos com pena suspensa; foi ainda processada por ser a responsável editorial do livro Novas Cartas Portuguesas (1973). A sua escrita andou pelos caminhos do surrealismo, e com Mário Cesariny partilhou além da rebeldia e insubmissão, a amizade e admiração.

 

3, No que respeita aos livros publicados em 2023, apresento uma lista abaixo, que é uma selecção, lacunar, do que foi publicado. A maior parte recebeu alguma atenção por parte da escassa crítica literária ainda existente (Expresso, Público, JL, pouco mais), outros livros foram ignorados por essa mesma crítica.

Da lista saliente-se, na poesia, uma nova edição da Poesia de Luiza Neto Jorge, revista e aumentada, que vai buscar poemas que a poeta não integrou na reunião da sua poesia em Os Sítios Sitiados (1973), mas estavam em outros livros anteriores; a edição pela primeira vez em português de um autor italo-argentino, Antonio Porchia, mestre no aforismo de forte tonalidade poética, ou no poema disfarçado de aforismo, que foi publicando ao longo dos anos na suas Vozes (Voces). A publicação da obra completa de um poeta mais conhecido como letrista de fados, Pedro Homem de Mello; e também das obras completas de dois autores muito distantes entre si, não só no tempo: o clássico Horácio, e o recente Roberto Bolaño. Ainda obras completas, ou completas até à data: Rita Taborda Duarte, Helga Moreira, Maria da Graça Varella Cid e Ernesto Sampaio, de quem a Maldoror e Língua Morta reuniram em cerca de 400 páginas os poemas e textos em prosa.

Na ficção, no ano que o Nobel da literatura foi para o romancista e dramaturgo norueguês Jon Fosse, os autores portugueses mais conceituados pouco ou nada publicaram (com excepção de Gonçalo M. Tavares, sempre prolifico). Destaque-se o trabalho editorial da E-Primatur que este ano publicou a tradução na integra de Gargântua & Pantagruel de François Rabelais.

No ensaio, destaque-se a reunião da obra ensaística sobre poesia de Joaquim Manuel Magalhães, num grosso volume de quase 1200 páginas, que colige os seus três livros de ensaios e acrescenta inéditos – pelo menos em livro –, assinado com o pseudónimo, ou heterónimo, de António Maria António Pedro. Joaquim Manuel Magalhães é sem dúvida um dos mais lúcidos leitores da poesia portuguesa, e não só. Ainda no ensaio sobre literatura Joana Matos Frias publicou Oscilações (Documenta) e Joana Emídio Marques Notícias do Bloqueio (Língua Morta). A Relógio d` Água publicou mais um ensaio do filósofo Byung Chul Han, desta vez sobre A Vida Contemplativa, mas nesta editora também se publicaram os Ensaios de Robert Musil, e um livro que denúncia os mecanismos tecnológicos de vigilância da ditadura chinesa: Estado de Vigilância de Josh Chin e Liza Lin. Também na linha da crítica das novas tecnologias ao serviço do poder, de Jonathan Crary a Antígona traduziu Terra Queimada – Da era digital ao mundo pós-capitalista. E, entre muitos outros livros destaque ainda para um clássico do pensamento anarquista, Que é a Propriedade? de Proudhon nas Edições 70.

 

 

POESIA

Mário Cesariny – Antologia (Assírio & Alvim, org. Fernando Cabral Martins)

Mário Cesariny – Poetas do Amor, da Revolta e da Náusea (Assírio & Alvim, org. Fernando Cabral Martins)

António Porchia – Vozes (Língua Morta, trad. Nuno Azevedo)

Luiza Neto Jorge – Poesia (ed. Revista e aumentada por Fernando Cabral Martins e Manuele Masini, Assírio & Alvim)

Adília Lopes – Choupos (Assírio & Alvim)

Pedro Homem de Mello – Poemas 1934-1961 (Assírio & Alvim, ed. Luís Manuel Gaspar)

Horácio – Poesia Completa (Quetzal, trad. Frederico Lourenço)

Roberto Bolaño – Poesia Completa (Quetzal, trad. Carlos Vaz Marquez)

Rosa Maria Martelo – Desenhar no Escuro (Averno)

Margarida Vale de Gato – Mulher ao Mar e Corsárias (Mariposa Azual)

Helga Moreira – A Arte de Perder (Tinta da China)

Amadeu Baptista – Danos Patrimoniais. Antologia pessoal 1982-2022 (Afrontamento)

Alberto Pimenta – They` II Never Be the Same (Edições Saguão)

Cesare Pavese – Trabalhar Cansa (Penguin Clássicos, trad. Vasco Gato)

Fernando Guerreiro – Metal de Fusão (Black Sun Editores / 100 Cabeças)

José Amaro Dionisio, Helder Moura Pereira. Fátima Maldonado, F. Cabral Martins – Imperfeição (não) edições

Rita Taborda Duarte – Não Desfazendo (Imprensa Nacional)

Ernesto Sampaio – Luz Central (Maldoror/Língua Morta)

Maria da Graça Varella Cid – Poesia Incompleta (Tigre de Papel)

 

FICÇÃO

François Rabelais – Gargântua & Pantagruel (E- Primatur)

Gustave Flaubert – A Tentação de Santo Antão (Minotauro)

William S. Burroughs – Almoço Nu (Minotauro)

Rui Nunes – Neve, Cão e Lava (Relógio D` Água)

Gonçalo M. Tavares – As Botas de Mussolini (Relógio d` Água)

Gonçalo M. Tavares – Breves Notas sobre o Oriente (Relógio d` Água)

Joseph Conrad – Plantador de Malata (Sistema Solar)

Hélia Correia – Certas Raízes (Relógio D` Água)

Horace Walpole – Contos Hieroglíficos (Antígona)

Monteiro Lobato – Reinações de Narizinho (Tinta da China)

 

NÃO – FICÇÃO

Joaquim Manuel Magalhães – Poesia Portuguesa Contemporânea (Bestiário)

Byung Chul Han – Vida Contemplativa (Relógio d´Água)

Jonathan Crary – Terra Queimada – Da era digital ao mundo pós-capitalista (Antígona)

Joana Matos Frias – Oscilações (Ducumenta)

Josh Chin e Liza Lin – Estado de Vigilância (Relógio d´Água)

Robert Musil – Ensaios (Relógio d´ Água)

Joana Emídio Marques – Notícias do Bloqueio (Língua Morta)

Salvador Dali – Diário de um Génio (Sr. Teste)

Ian F. Svenonius – Contra a Palavra Escrita (Chili com carne)

Maria Filomena Mónica – Os Livros da Minha Vida (Relógio d´Água)

António Castro Caeiro – O que é a Filosofia? (Tinta da China)

João Barrento – Aparas dos Dias (Companhia das Ilhas)

Furio Jesi - Cultura de Direita (Edições 70)

Simon Sebag Montefiore – Mundo (Crítica)

António Vieira – Entrevista (Companhia das Ilhas)

Diogo Ramada Curto – Um País em Bicos de Pés (Edições 70)

José Gil – Morte e Democracia (Relógio d´Água)

Camilo Pessanha – China e Macau (Livros de Bordo)

Alexandra Lucas Coelho – Libano, Labirinto (Caminho)

Michel Eltchaninoff – Lenine Foi à Lua (Zigurate)

Roberto Calasso – O Cunho do Editor (Edições 70)

P-J Proudhon – Que é a Propriedade? (Edições 70)

(Em cima, intervenção sobre fotograma com Mário Cesariny)

 

 

 

quarta-feira, setembro 30, 2020

Dick Haskins e o policial

 


O nome de António Andrade Albuquerque, ou mesmo o de Dick Haskins, nada dirá ao leitor mediana ou mesmo bem informado português. Sendo que Dick Haskins é o pseudónimo utilizado de António Andrade Albuquerque para a escrita de 21 romances policiais, na esteira de outros autores portugueses, que optaram pelo uso de um nome inglês para pseudónimo na assinatura autoral de um romance policial, como é o caso de Ross Pynn (José Roussado Pinto, 1926-1986), Dennis McShade (Dinis Machado, 1930-2008), Frank Gold (Luís da Silva Campos, 1942-2000) ou W. Strong-Ross (Francisco Valério Azevedo, 1888-1980). Mas destes nomes, entre outros, que fizeram o policial português o nome de Dick Haskins foi o que conseguiu uma internacionalização, rara mesmo na literatura "convencional" portuguesa. É assim que a partir de 1961, ainda a obra de António Andrade Albuquerque estava no início, começa a ser traduzido em Espanha e na América do Sul, países a que se seguem a Alemanha, Itália, França, Suécia, Holanda, Grã- Bretanha, Estados Unidos, México, África do Sul, Austrália ou Nova Zelândia, num total total de 30 países e milhões de exemplares vendidos. Na verdade, em número de países e em milhões de exemplares Andrade Albuquerque/Dick Haskins ombreia com autores como José Saramago ou António Lobo Antunes, e no entanto é (foi), em Portugal um autor desconhecido. Isto diz muito da forma como o policial tem sido tratado em Portugal - e não só - como um género menor da literatura, a par com a ficção-cientifica (embora sejam famosas coleções como a dos Livros do Brasil, ou da Editorial Caminho). O certo é que o policial evoluiu, tanto em língua inglesa com autoras como Patricia Highsmith ou Ruth Rendell, ou no caso português em autores como Francisco José Viegas, mais próximo do policial clássico, ou os primeiros livros de Ana Teresa Pereira, autora com um universo muito próprio que foge ao policial clássico, embora tenha publicado os seus primeiros livros na coleção policial da Caminho. E tanto Viegas como Ana Teresa Pereira são hoje autores de referência na literatura portuguesa, premiados com o Prémio de romance e novela da APE.

António Andrade Albuquerque nasceu em Lisboa, a 11 de Novembro de 1929. Frequentou o liceu Passos Manuel, onde teve como professor o historiador de literatura António José Saraiva, que via no seu aluno um futuro escritor. Mas acabou por ir parar ao curso de medicina, o qual não terminou para se entregar à escrita. Escreveu 21 policiais. Entre o fim da década de 1970 e inicio de 1980, a RTP produziu uma série de 12 episódios baseados nos seus policias. Em 2008 foi galardoado com a medalha de honra da SPA. Vivia em Peniche. Faleceu em 2018, aos 88 anos. Neste momento não é possível encontrar exemplares de livros do autor nas livrarias portuguesas.


   

quarta-feira, julho 31, 2019

Lídia Jorge

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CAI A CHUVA NO PORTAL

Cai a chuva no portal, está caindo 
Entre nós e o mundo, essa cortina 
Não a corras, não a rasgues, está caindo 
Fina chuva no portal da nossa vida. 
Gotas caem separando-nos do mundo 
Para vivermos em paz a nossa vida. 
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Cai a chuva no portal, está caindo 
Entre nós e o mundo, essa toalha 
Ela nos cobre, não a rasgues, está caindo 
Chuva fina no portal da nossa casa. 
Por um dia todos longe e nós dormindo 


Lídia Jorge é desde O Dia dos Prodígios (1980) autora de mais de uma dezena de romances, e alguns livros de contos, volumes, onde tem ficcionado a realidade histórica portuguesa do pós 25 de Abril. A autora, nascida em Boliqueime em 1946, estreou-se na poesia, recentemente, com Livro das Tréguas (D. Quixote).

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quinta-feira, janeiro 31, 2019

CENSURA E PEDAGOGIA


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1, Estava uma turma de Português do 12º ano, a ouvir uma medíocre versão dita por alguém no you tube do poema "Ode Triunfal" de Álvaro de Campos-Fernando Pessoa, quando alguém repara que ao texto impresso no manual da Porto Editora faltam três versos. Fantásticos estes alunos que mereciam um 20 por tal descoberta: a de que o manual da Porto Editora, de autoria de Noémia Jorge, Cecília Aguiar e Miguel Magalhães censurava três versos de um dos poemas mais importantes do modernismo português. Falavam esses versos de putas e de pedofilia: “automóveis apinhados de pândegos e de putas” (verso 153) e “E cujas filhas aos oito anos – e eu acho isto belo e amo-o! – Masturbam homens de aspecto decente nos vãos de escada.” O verso 153 não se percebe muito bem o porquê da censura – será que tem que ver com esta predominância de movimentos feministas? Quanto aos outros dois versos, percebe-se que hoje sejam mais censuráveis que há cerca de 100 anos quando foram publicados em Orpheu. Se Pessoa fosse vivo, e por algum azar um jornalista ou delegado do MP lhe caísse em cima (passe a metáfora), qual não seria a reacção da turbamalta? Ainda bem que a poesia é coisa de duas centenas de pessoas, como já o era no tempo de Pessoa-Campos. Mas, mesmo assim, poder-se-á dar razão aos autores do manual em ter censurado estes 2 versos, não vá qualquer furor adolescente lê-los em sagrada família, com um membro a exigir digitalmente a pena de morte para o poeta, enquanto o outro defende a tortura do membro viril cortado em fatias (um aparte para dizer que nada disto é da minha imaginação, antes reproduzo dois comentários ouvidos num café depois da passagem de uma reportagem da TVI sobre pedofilia).

2, Este caricato episódio, poderia servir para a discussão do programa de literatura portuguesa nas escolas. Ainda há alguns meses, se discutia sobre a importância d’ Os Maias nos currículos e da necessidade da sua leitura integral. Assim como Os Maias, o programa de português inclui uma série de obras que sendo clássicos da literatura portuguesa, nada dizem aos estudantes do básico e secundário. A maior parte dos alunos limita-se a estudar os apontamentos das aulas ou a ler os resumos que – ainda creio existirem – da Europa-América, ou então a enveredar por um caminho mais perigoso: o da wikipédia. Quanto aos alunos que vivem na ilusão de  trabalhar para ter médias que lhes permitam o acesso a um curso que lhes vai garantir o futuro – como se isso existisse hoje –, talvez por obrigação tentem ler as obras do programa. Mas sejamos claros: nada disto serve a literatura. A Escola não tem uma poção mágica que faça os alunos ter prazer por ler. Pelo contrário, a escola é a primeira instituição repressora do sujeito. E nessa repressão está o gosto pela leitura – não só pela literatura, mas por toda a espécie de texto, da filosofia à divulgação de biologia ou física. Quando existe algum gosto pela leitura do texto literário em adolescentes, ele não se compadece com um cânone que vai do Cancioneiro, passando por Gil Vicente, Camões, Almeida Garrett, Alexandre Herculano, Camilo, e a obrigatoriedade de ler Eça (Os Maias substituídos por A Ilustre Casa de Ramirez) e Saramago (Memorial do Convento substituído por O Ano da Morte de Ricardo Reis). Todo este cânone é em si discutível, feito de textos mortos, no sentido que apresentam uma mentalidade que nada tem a ver com os nossos dias, ignorando os autores contemporâneos, e mesmo em alguns casos depreciando autores como Camilo Castelo Branco em favor de Eça de Queirós, algo a que não é indiferente o pobre centralismo lexical lisboeta. Mas ainda sobre este programa, deve-se dizer que ele é tão só História da Literatura, que ignora os grandes escritores e poetas que o século XX – e alguns já de inícios deste século – nos deu e dá. Se querem que adolescentes se interessem pela literatura, porque não começar por apresentar textos de Adília Lopes, Alberto Pimenta, ou mesmo Rui Manuel Amaral ou A. Dasilva O. de quem o “clássico” Peidinhos circulava há anos em fotocópias entre alunos? E aqui voltamos à censura, à hierárquica posição pedagógica, que mesmo entre os clássicos censura Bocage. Esta escola é demasiado estúpida, anquilosada, feita na generalidade de professores medíocres, ensinando que a alegria é um engano do corpo (o que até condiz com certa poesia que se faz, essa que tal como a escola, fecha as janelas a obras demasiado solares como as de Sophia ou Eugénio de Andrade). Resumindo a questão: ao impor um cânone que nada diz aos alunos do básico e secundário, a escola opta por liquidar qualquer interesse que os alunos pudessem ter pelo texto literário (com algumas e minoritárias excepções); em contrapartida, pode (a escola) imaginar que obriga os alunos a ter conhecimento de um cânone literário. Ou seja, opta-se por liquidar potenciais leitores, por liquidar o prazer da leitura (não estivesse ele já a ser liquidado por uma sociedade digital e iconográfica), em nome de uma memória do passado soterrada depois do último exame. Ou, como escreveu Joaquim Manuel Magalhães, “Que sentido houve para o que aprendeste? / Peidos com cheiro a rosa, foi o que foi.” (Os Dias, Pequenos Charcos; Presença, 1981).

quinta-feira, novembro 30, 2017

O PRÉMIO DE ANA TERESA PEREIRA

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A obra de Ana teresa Pereira é singular na literatura portuguesa. E na literatura de língua portuguesa. Talvez por isso o júri do prémio Oceanos (que se destina a obras de literatura portuguesa e brasileira, com um júri maioritariamente brasileiro) foi este ano para Ana Teresa Pereira pelo seu livro Karen. O prémio é justo mas pode causar admiração se tivermos em conta que Ana Teresa Pereira ainda não está publicada no Brasil. Depois de já ter vencido o grande prémio de romance e novela da APE, este é mais um prémio de consagração numa obra, ou “obra-mundo” como lhe chamou o ensaísta Fernando Guerreiro, de uma extraordinária idiossincrasia.
Começando em 1989, na então colecção de bolso da Caminho, com o já aparente policial Matar a imagem, Ana Teresa Pereira vem seguindo um percurso em que os seus romances e novelas são marcados por uma escrita obsessiva, como se estivesse sempre a escrever o mesmo livro (a exemplo de uma Duras), marcado por uma profícua relação com outras artes: pintura, cinema, teatro e obviamente uma forte intertextualidade com autores clássicos do policial, mas também outros como Rilke ou Iris Murdoch. Ao já referido não é alheia uma relação com a filosofia e principalmente com a psicanálise (vejam-se os livros Num Lugar Solitário e Rosas Mortas). Há um tema central em Ana Teresa Pereira, como bem viu num ensaio sobre a sua obra Rui Magalhães: o medo. O Labirinto do Medo. É disso que se tece certa literatura, mas em Ana Teresa Pereira ganha outras dimensões ontológicas. Escrita em português, a obra da autora de Karen, quase nenhuma (ou mesmo nenhuma) relação mantém com a literatura portuguesa. O Mundo de Ana Teresa Pereira é predominantemente anglo-saxónico, com títulos, nomes de personagens e locais de acção referindo-se à Inglaterra. Mas nada disto impede que a escrita da autora madeirense seja das mais criativas da actual literatura portuguesa.
Agora os brasileiros vão poder descobrir Ana Teresa Pereira, e um dia esta obra – já longa – poderá chegar ao mundo de língua inglesa.

O terceiro prémio atribuído pelo júri (que integrava o crítico literário português António Guerreiro) foi atribuído ao livro Golpe de Teatro do poeta Helder Moura Pereira e o quarto lugar à escritora e poetisa Maria Teresa Horta pelo livro Anunciações.   

segunda-feira, julho 31, 2017

AS MIL E UMA NOITES – UMA HOMENAGEM À LITERATURA

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Em 1704 o orientalista francês Antoine Galland publica pela primeira vez no ocidente uma tradução d’ As Mil e Uma Noites, dando a conhecer aos leitores da época e futuros um vasto conjunto de contos (282) de origem persa, indiana e árabe. Desde o século IX que era conhecida, em árabe, a recolha de histórias provenientes da folclore de várias culturas do oriente. Antoine Galland na sua versão terá censurado alguns contos, e acrescentado mais alguns, sem grande fidelidade ao original. De certa forma, até hoje, As Mil e Uma Noites são um livro palimpsesto.

Mas, apesar das múltiplas versões d’ As Mil e uma Noites, importa a sua história que é uma grande homenagem à literatura, à arte de contar histórias (ou estórias). Vejamos: no início d' As Mil e Uma Noites, temos o rei Xarir, da Pérsia, que descobre que a sua mulher o engana com um escravo. Inicia-se uma furiosa vingança de Xarir, que decapita os amantes. Mas o rei persa vai muito mais longe na sua vingança: todas as noites casava com uma virgem, que depois da noite de núpcias, entregava ao seu vizir para ser degolada. Xerazade, precisamente a filha do vizir, engendra uma artimanha para acabar com esta carnificina – propõem-se entregar-se ao rei Xarir. E assim acontece. Mas Xerazade, que tinha pedido que fosse acompanhada da sua irmã Dinarzade, quando acorda da noite de núpcias é interpelada pela sua irmã mais nova para que conte uma história. Eis que o rei se interessa pela história que Xerazade conta a ponto de não mandar degolar Xerazade, interrompendo o seu atroz morticínio, porque quer saber o final da história que, entretanto, Xerazade interrompera. A interrupção é a chave do sucesso da artimanha de Xerazade, o método que lhe salva a vida.

É pois pela arte de contar histórias que Xerazade se salva e termina com a vingança do rei Xarir. Eis a suprema homenagem à literatura – neste caso à literatura oral e por extensão a outras formas de ficção, pois como escreveu o poeta T. S. Eliot “Humankind cannot bear very much reality.”

As Mil e Uma Noites e em particular a personagem Xerazade mostram-nos o poder da literatura, um poder político capaz de suspender as atrocidades humanas. Xerazade é uma dessas personagens femininas para quem, como acontece com Antígona, a injustiça e o despotismo são intoleráveis. Mas As Mil e Uma Noites nada têm da trágico; pelo contrário, o que neste encadeamento de narrativas abunda é o maravilhoso, o erotismo, uma compulsão por contar e ouvir histórias que suspende e anula os actos despóticos, o mal. Estas “noites” são solares. As Mil e Uma Noites convocam a literatura, o contar histórias, para uma ética/estética do imaginário, da envolvência com a ficção que interrompe a crueza e crueldade do real. Talvez por isso tenhamos necessidade de sonhar, de organizar o que vivemos durante o dia numa narrativa fantástica, surrealizante, desconexa, mas de qualquer forma a narrativa que o nosso inconsciente nos conta, essa estranha Xerazade que nos habita.
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Em Portugal existem várias edições d’ As Mil e Uma Noites. Editoras como a Civilização, a Estampa, as Publicações Europa-América, Amigos do Livro, Bertrand, Minerva (com tradução do poeta Cabral do Nascimento), Círculo de Leitores, a Parceria António Maria Pereira (que deve ter sido uma das primeiras, senão a primeira editora a publicar, em 1909, a obra organiza por Antoine Galland) mostram o interesse por esta obra que é uma das maiores da literatura universal. Mas dentre todas estas edições, uma se destaca: a que foi publicada pelos Estúdios Cor, em seis volumes, entre 1958 e 1962. Essa edição, hoje uma raridade vendida a preços bastante altos, conta com traduções de alguns dos nossos melhores escritores do século passado: Aquilino Ribeiro, Carlos de Oliveira, David Mourão-Ferreira, Domingos Monteiro, Irene Lisboa, João Gaspar Simões, José Gomes Ferreira, José Rodrigues Miguéis, Jorge de Sena, José Saramago, Urbano Tavares Rodrigues. A acrescentar a estes escritores/tradutores há todo um grupo dos melhores ilustradores da época.

O jornal Expresso resolveu editar em sete volumes O Livro das Mil e Uma Noites, distribuído gratuitamente (isto é, sem que o leitor pague mais que o preço do semanário). Esta edição, no entanto, e apesar de alguma qualidade gráfica, reveste-se de um desrespeito para com os leitores do jornal. Em primeiro lugar não estamos perante a obra integral, mas uma selecção ou antologia (As Mil e Uma Noites na versão de Antoine Galland têm cerca 1600 páginas; cada volume da edição do Expresso tem 110 páginas o que equivale na totalidade dos sete volumes a 770 páginas, ou seja a menos de metade da obra integral). A não edição da obra integral de Antoine Galland (já não me refiro a outros organizadores posteriores como Richard Burton) seria completamente natural e aceitável se fosse indicado que se tratava de uma selecção ou antologia. Mas não, em nenhum lugar, nem mesmo num prefácio introdutório à obra em geral isso é dito. Portanto, o Expresso mete no saco gato por lebre. O leitor que não procure informação sobre a obra, e ler os sete volumes, julga que leu na íntegra As Mil e Uma Noites quando leu apenas uma selecção de contos d’ As Mil e Uma Noites. Numa altura em que o jornalismo está em crise, este comportamento não abona nada a favor do Expresso e grupo Impresa – porque se o Expresso engana os leitores quanto a uma obra literária que distribui, também enganará os seus leitores nas peças jornalísticas que apresenta. Para além do já referido, esta selecção d’ As Mil e Uma Noites, tem, estranhamente, como assinatura de tradução Alêtheia Editores. Os volumes são editados em parceria com esta editora da ex-militante comunista Zita Seabra, mas mesmo quando se trata de uma tradução colectiva os nomes dos tradutores devem aparecer. É algo estranho e desprestigiante da edição, que a formação da editora como alto cargo do PCP não serve de desculpa. Antes, esta assinatura colectiva parece configurar uma lógica neoliberal a que Zita Seabra aderiu nas últimas décadas.

sexta-feira, setembro 30, 2016

TEXTOS E PRETEXTOS - LITERATURA E FUTEBOL

Ao número 20 a revista Textos e Pretextos (do Centro de Estudos Comparatistas da FLUL) abordou a temática da literatura e do futebol. A revista conta com ensaios de António Sá Moura, Norberto do Vale Cardoso e Nuno Domingos; textos (depoimentos, pequenas ficções, crónicas) de Álvaro Magalhães, Eric Nepomuceno, Gonçalo M. Tavares, Inês Fonseca Santos, João Assis Pacheco, Jorge Almeida e Nuno Amado, Rui Miguel Tovar e Ruy Castro. A terminar uma entrevista ao escritor brasileiro Nelson Rodrigues e uma bibliografia sobre literatura e futebol.

terça-feira, maio 31, 2016

AND THE CAMÕES GOES TO... RADUAN NASSAR

 
    A obra de Raduan Nassar, o vencedor do Prémio Camões 2016, é mínima: apenas três pequenos livros, Lavoura Arcaica (1975), Um Copo de Cólera (1978) e Menina a Caminho (1997), todas as obras editadas em Portugal pela Relógio d´Água e Cotovia. No entanto, para uma obra em prosa sobreviver ao tempo e o seu autor ser considerado um dos maiores escritores brasileiros, ombreando com nomes como Guimarães Rosa e Clarice Lispector, temos que estar perante uma prosa fortíssima. 
    Foi isso mesmo que entendeu o júri deste ano do Prémio Camões constituído por Miguel Honrado (secretário de estado da Cultura), Paula Morão e Pedro Mexia (por Portugal), Flora Sussekind e Sérgio Alcides do Amaral (pelo Brasil), Lourenço do Rosário (Moçambique) e Inocência Mata (São Tomé).
    Raduan Nassar nasceu em 1935, em Pindorama (S. Paulo), filho de pais de origem libanesa. Após frequentar vários cursos universitários, sem concluir nenhum, começou a interessar-se pela literatura e pela agricultura - chegou a presidir à Associação Brasileira de Criadores de Coelhos. Nos anos 1970 publica os dois livros fundamentais da sua escassa obra, depois abandona a literatura para se dedicar em exclusivo à agricultura. 
    Recentemente Raduan Nassar apareceu em público para apoiar a destituída presidente do Brasil, Dilma Roussef.

terça-feira, abril 26, 2016

MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO



Há entre Mário de Sá-Carneiro e Fernando Pessoa mais que uma amizade. Sá-Carneiro poderá ter sido prejudicado por essa pequena multidão de gente que habitava a mente e o génio de Pessoa. Demasiado ofuscante para toda a poesia que viria depois, Mário de Sá-Carneiro terá sido a primeira “vítima” de Pessoa. Sá-Carneiro foi quase um heterónimo de Pessoa. Mas, por outro lado, Pessoa foi o duplo de Sá-Carneiro, a alteridade em que se funda a poesia moderna, pelo menos desde Rimbaud (o outro, “Aqueloutro”).
E, no entanto, há um caso Mário de Sá-Carneiro na literatura portuguesa que tem sido sombreado pela imensa complexidade – em todos os sentidos – do caso Pessoa. E Sá-Carneiro, de mais breve vida, de obra publicada em vida e com poucos inéditos, não deixa de ser um caso único na unicidade da sua obra a que se liga um ou outro biografema, quando não se tenta fazer uma interpretação da obra pela biografia ou vice-versa. A orfandade materna, o dinheiro, os cafés, Paris… e o suicídio, a 26 de Abril de 1916, que parece ter sido uma encenação para um espectador – João Araújo.
Mas para além de tudo isto, há uma obra de extrema riqueza, quer a nível poético quer ficcional. É essa obra, escassa, que tem vindo a ser descurada, talvez em proveito de um mito que o jovem suicida alimenta. Ou, simplesmente a literatura de Mário de Sá-Carneiro, hoje, cem anos após o seu suicídio, ainda não foi entendida. Como defendem vários especialistas na obra do “esfinge gorda” na edição de hoje do Público (pp. 24-25), terá sido Sá-Carneiro a abrir caminhos para a obra pessoana. Repare-se num poema como Manucure (datado de Maio de 1915), “semifuturista” mas algo de único na literatura portuguesa, na sua ligação às vanguardas de princípios de século. E algo de único também entre o barroco e a poesia experimental. É claro que a literatura, nem a sociedade, portuguesa estava preparada para ter um Mário de Sá-Carneiro – e provavelmente ainda não está. Mário de Sá-Carneiro sabia que escrevia para o futuro, o que espanta é como esse futuro tem andado alheado desta escrita. Será porque ainda não a compreendeu? 

quarta-feira, agosto 31, 2011

JOÃO URBANO





Introduziu, no regresso a Lisboa, uma cassete no rádio-gravador a ver se punha no ar um som de jeito. A cassete nem ia para a frente nem para trás. Parou numa estação de serviço para reabastecer. Aquele era um lugar de passagem, um não-lugar quase desolado, apesar do brilho dos néones. Quando se fez de novo à estrada o gravador pôs-se a funcionar sem porquê e derramou tons crus de guitarra, um baixo rápido a saturar, uma batida quase desconexa e uma fina cobertura de vozes andróginas e vaporosas. Pouco depois percutia um dos temas de Closer dos Joy Division. A precipitação das batidas, um tamborilar em pequenas quedas de água, a guitarra plangente de caos e This is the way, step inside a sair das goelas ternas de Ian Curtis, tudo num estrugido demorado, em câmara lenta, o que o transportou para um estado raro de turbulência. Porra, vivia no melhor dos mundos.

João Urbano, Romance Sujo, UR, 2010, pp. 103-104

quinta-feira, dezembro 30, 2010

LIVROS EM 2010.


UMA LISTA*

- Nudez, Giorgio Agamben, Relógio d’ Água
- Inverness, Ana Teresa Pereira, Relógio d’ Água
- Que se diga que vi como a faca corta, Miguel Cardoso, Mariposa Azual
- O Nascimento da Filosofia, Giorgio Colli, Edições 70
- A Poesia Ensina a Cair, Eduardo Prado Coelho
- Matteo Perdeu o Emprego, Gonçalo M. Tavares, Porto Editora
- Mulher ao Mar, Margarida Vale de Gato, Mariposa Azual
- Viva México, Alexandra Lucas Coelho, Tinta da China
- Poemas com Cinema, Org. de Joana Matos Frias, Luís Miguel Queirós e Rosa Maria Martelo, Assírio & Alvim

* Esta lista corresponde a livros que li em 2010, editados neste mesmo ano, em Portugal.

UMA SÍNTESE

No ano em que morreu José Saramago, Gonçalo M. Tavares consolidou-se como um “valor” da literatura portuguesa – premiado em França, publicou três livros: Uma Viagem à Índia, Eliot e as Conferências (ambos editados pela Caminho) e Matteo Perdeu o Emprego (vergonhosamente editado pela Porto Editora que, numa lógica de merceeiro estúpido, colou nas capas um autocolante a prometer prémios aos leitores que ligassem para um número de valor acrescentado). Trata-se de uma crescente mercantilização do objecto livro que a consolidação de uma lógica de grupos (Leya, Porto Editora, Fnac) equipara a gadgets como telemóveis, tablets, computadores, plasmas, etc, - veja-se os “catálogos” de sugestões elaborados pela Fnac, Leitura-Bulhosa, Bertrand. Nem as livrarias “alternativas” conseguem escapar a esta lógica de mercantilização do livro (a Livraria Latina, do Porto, foi comprada pelo grupo Coimbra Editora e Leya, ficando com o nome mais ridículo que jamais uma livraria terá tido em Portugal: "Leya na CE Latina").
No entanto continuam a existir espaços de resistência. Para além de mais de duas dezenas de boas livrarias “alternativas” espalhadas pelo país, os leitores muito têm a agradecer a editoras como a Assírio & Alvim, a Relógio d’ Água e muitas outras.
A Mariposa Azual é uma destas editoras. Este ano deu a conhecer duas revelações da poesia portuguesa: Margarida Vale de Gato, com Mulher ao Mar, e Miguel Cardoso com Que se diga que vi como a faca corta, título que aponta para um diálogo com Herberto Helder e não só.
É no campo de batalha da poesia que algo de “bombástico” aconteceu: a publicação de Um Toldo Vermelho por Joaquim Manuel Magalhães, livro que faz a excisão e reescrita de toda a poesia do autor de Dois Crepúsculos. E essa reescrita é de tal forma radical que anula por completo o programa poético que J. M. Magalhães esboçou no poema “Princípio” de Os Dias, Pequenos Charcos (1981): o “voltar ao real”. No campo e contra-campo de batalha que tem sido a poesia portuguesa da última década, algo mudou com o livro de Joaquim Manuel Magalhães: um dos grupos perdeu o seu “pai” tutelar (enlouquecido? Farto de ser ama de leite seco?). Certo é que desde 2008 que a poesia portuguesa se tem vindo a renovar – com o livro de Herberto A Faca não Corta o Fogo, com os livros de Miguel-Manso e este ano com Margarida Vale de Gato e Miguel Cardoso.