segunda-feira, maio 15, 2006

Egito Gonçalves


NOTíCIAS DO BLOQUEIO

Aproveito a tua neutralidade,
o teu rosto oval, a tua beleza clara,
para enviar notícias do bloqueio
aos que no continente esperam ansiosos.

Tu lhes dirás do coração o que sofremos
nos dias que embranquecem os cabelos...
Tu lhes dirás a comoção e as palavras
que prendemos - contrabando - aos teus cabelos.

Tu lhes dirás o nosso ódio construido,
sustentando a defesa à nossa volta
- único acolchoado para a noite
florescida de fome e de tristezas.

Tua neutralidade passará
por sobre a barreira alfandegária
e a tua mala levará fotografias,
um mapa, duas cartas, uma lágrima...

Dirás como trabalhamos em silêncio,
como comemos em silêncio, bebemos
silêncio, nadamos e morremos
feridos de silêncio duro e violento.

Vai pois e noticia com um archote
aos que encontrares de fora das muralhas
o mundo em que nos vemos, poesia
massacrada e medos à ilharga.

Vai pois e conta nos jornais diários
ou escreve com ácido nas paredes
o que viste, o que sabes, o que eu disse
entre dois bombardeamentos já esperados.

Mas diz-lhes que se mantém indevassável
o segredo das torres que nos erguem,
e suspensa delas uma flor em lume
grita o seu nome incandescente e puro.

Diz-lhes que se resiste na cidade
desfigurada por feridas de granadas
e, enquanto a água e os viveres escasseiam,
aumenta a raiva
e a esperança reproduz-se.

(in Árvore, nº4, [1953])

quarta-feira, maio 03, 2006

Eugénio de Andrade


AS PALAVRAS INTERDITAS

Os navios existem, e existe o teu rosto
encostado ao rosto dos navios.
sem nenhum destino flutuam nas cidades,
partem no vento, regressam nos rios.
Na areia branca, onde o tempo começa,
uma criança passa de costas para o mar.
Anoitece. Não há dúvida, anoitece.
É preciso partir, é preciso ficar.
Os hospitais cobrem-se de cinza.
Ondas de sombra quebram nas esquinas.
Amo-te...E entram pela janela
as primeiras luzes das colinas.
As palavras que te envio são interditas
até, meu amor, pelo halo das searas;
se alguma regressasse, nem já reconhecia
o teu nome nas suas curvas claras.
Dói-me esta água, este ar que se respira.
dói-me esta solidão de pedra escura,
estas mãos nocturnas onde aperto
os meus dias quebrados na cintura.
E a noite cresce apaixonadamente.
Nas suas margens nuas, desoladas,
cada homem tem apenas para dar
um horizonte de cidades bombardeadas.
(de As Palavras Interditas)

domingo, abril 30, 2006

O HOMEM QUE CONFUNDIU UM CHARUTO COM UM FALO

(S. Freud por Andy Warhol)

DO SILVA E DOS POBRES


O Silva, afinal, regressou. Esteve com as tropas portuguesas, fez o discurso do 25 de Abril e esteve ontem na ovibeja, afinal não há amor como o primeiro. O problema foi mesmo o discurso da evocação (este ano foi evocação) do 25 de Abril. Não é que o Silva começou a falar de exclusão social? Ter-lhe-á dado alguma coisa? A direita, pavlovianamente aplaudiu; a esquerda também pavloviana não aplaudiu. Quem não gostou nada e ficou perplexo com tudo isto foi o Fernandes, o Zé Manel, director do Público. Nem a Helena Matos. A Matos, no Público de ontem, contornou o assunto com os carenciados, mas nota-se o incómodo no último paragrafo: "levamos todo o século XX a falar de pobres. (...). Talvez seja mais do que o momento de falarmos menos de pobreza e mais de como produzirmos riqueza". Pois. Hoje, no mesmo Público, uma tal Isabel Jonet, com ar de quem tem passado fome de caviar, do Banco Alimentar contra a Fome, afirma que "só o desenvolvimento económico pode ajudar a combater a pobreza". A ajudar isto tudo (há coisas que convém não passar impunes, não é ao Zé Manel?) temos uma tese de doutoramento (para alguma coisa servem afinal as teses universitárias) que conclui que o "Rendimento Mínimo não vence imobilismo social dos beneficiários". Será que este doutor já experimentou viver com 30 contos mensais?
O discurso de Silva foi demasiado inevitável e surpreendente ao mesmo tempo. Portugal é um dos países mais pobres da União Europeia, mas é sobretudo um dos países com mais pobres da União Europeia: 20 por cento da população. E nada disto mudou nas últimas décadas. Que esta situação salazarenta continue passados 32 anos depois do 25 de Abril sem que ninguém faça nada é escandaloso e revela que o fundamental do 25 de Abril está por cumprir. É que à esquerda os pobres - que são também pobres de espírito - não dão votos, e a direita, e também certa esquerda, querem conserva-los como espécie protegida. Atracção turistica.

terça-feira, abril 25, 2006

sexta-feira, abril 21, 2006

Fernando Assis Pacheco


Peçam a grandiloquência a outros
acho-a pulha no estado actual da economia

(Variações em Sousa, 1987)

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EU VI UMA NOIVA SAIR DO AUTOMÓVEL
Ó noiva triste entre as noivas
que saem de casa pela manhã
partidas ao encontro da geada na relva,
noiva melancólica e sem palavras,
como te lamento assim vestida
de muitas folhas secas ao vento.
Sei que vais já morta, ferida no coração
por pedras e nevoeiros, por tarântulas.
Pequena caminhas sobre a leve seda
do teu manto, como as aves caminham
nos jardins molhados do Inverno;
sobes degrau a degrau, espada a espada
a tua última, arrebatada vertigem.
Rainha, agora, só de quebrados espelhos.
E da ternura exangue com que muda
celebrarás aos deuses malfazejos.
Aqui de longe envio com os olhos
um pequeno adeus, um punhado de terra.
(Cuidar dos Vivos, 1963)

sexta-feira, abril 07, 2006

SILVA DESAPARECEU?


Um mês depois da tomada de posse de Silva como Presidente da República, estranha-se a ausência deste. Vimos Sampaio numa corrida ao lado de Sócrates, mas Sampaio já não é presidente, é ex-presidente. Até tem o retrato pintado por Paula Rego. O presidente agora é Silva. Mas onde está Silva que não aparece? Nem um sound bite no Jornal Nacional, nem uma fotografia no 24 Horas, nem sequer um comentário de um assessor. É certo que houve a tomada de posse, com o Bush pai e todos os outros ex-chefes de estado e algumas suas altezas reais e o Soares a pirar-se antes do beija mão. Mas, e depois? Por onde anda e o que faz Silva? Vai todos os dias a Belém ou fica em casa de pantufas? Estará num bunker com medo de uma terceira guerra mundial? Ou terá sido raptado e o SIS está a encobrir tudo? Terá medo de aparecer por não conseguir realizar o milagre da multiplicação de euros? Todos ansiavam (enfim 50 virgula qualquer coisa por cento dos votantes) pela eleição de Silva e esperavam que com ele sempre que metessem a mão ao bolso saísse uma nota de 20 euros, num truque de prestidigitação que nem o Luís de Matos ousa tentar. Mas Silva está desaparecido e as poucas notas de 20 euros que entram nos bolsos depressa desaparecem, e os bolsos ficam vazios. Onde estará o Silva?

quarta-feira, abril 05, 2006

Sophia de Mello Breyner Andresen


Pranto pelo dia de hoje

Nunca choraremos bastante quando vemos
O gesto criadorser impedido
Nunca choraremos bastante quando vemos
Que quem ousa lutar é destruído
Por troças por insídias por venenos
E por outras maneiras que sabemos
Tão sábias tão subtis e tão peritas
Que nem podem sequer ser bem descritas

de Livro sexto, 1962

terça-feira, abril 04, 2006

Al Berto


dizem que a paixão o conheceu
mas hoje vive escondido nuns óculos escuros
senta-se no estremecer da noite enumera
o que lhe sobejou do adolescente rosto
turvo pela ligueira náusea da velhice

conhece a solidão de quem permanece acordado
quase sempre estendido ao lado do sono
pressente o suave esvoaçar da idade
ergue-se para o espelho
que lhe devolve um sorrisotamanho do medo

dizem que vive na transparência do sonho
à beira-mar envelheceu vagarosamente
sem que nenhuma ternura nenhuma alegria
nenhum ofício cantante
o tenha convencido a permanecer entre os vivos

(de Uma Existência de Papel, 1985)