terça-feira, outubro 03, 2006

VOLVER: A IMANÊNCIA DAS MULHERES


O cinema de Pedro Almodovar vive dos extremos da sociedade espanhola. Extremos que existem, pelo menos, desde a guerra civil. Ao aproveitar esses extremos, essas margens sociais, como as freiras e os travestis, os drogados, os homossexuais, enfim gente que esta(va) em fractura, Almodovar tem conseguido contar algumas das histórias mais interessantes do cinema contemporâneo ao mesmo tempo que tem traçado um retrato sociológico (e satírico) da Espanha actual. A juntar a isto Almodovar é um cineasta que dialoga e procura o público (o contrário do nosso Manoel de Oliveira).
Em Volver, seu último filme em exibição, existe um certo distânciamento em relação aos filmes que o celebrizaram nos anos 80 e 90. Digamos que os extremos se atenuaram. Talvez por isso a história, e a forma como é filmado Volver, não seja tão intensa como como outras.
Volver é, no entanto, o filme mais feminino de Almodovar, o que implica que todo o elenco (com excepção de dois "figurantes") seja constituido por mulheres. Mulheres que vivem na Espanha profunda, cuidando dos mortos e dos vivos, matando para sobreviver ao desejo transgressor dos homens e assim constituindo uma lei (que já não é a lei do desejo) que remonta a Antigona; fazendo pela vida numa solidariedade que resulta da cumplicidade das relações (familiares) entre mulheres. Trata-se aqui de uma espécie de imanência particularmente feminina. Mas Volver também anúncia um regresso a essa Espanha profunda onde Almodovar passou a infância e onde o vento leste enlouquece por entre moinhos de vento - a sombra de Quixote, quinhentos anos depois, é a antitese destas mulheres.
Volver, real. Pedro Almodovar, com Penelope Cruz e Carmen Maura, 1996, 3 em 5

Sylvia Plath


BONDADE

A bondade plana perto da minha casa.
A dona Bondade, ela é tão simpática!
As jóias azuis e vermelhas dos seus anéis de fumo
Nas janelas, os espelhos
Enchem-se de sorrisos.

Que há mais real do que o gemido de uma criança?
O gemido de um coelho pode ser mais selvagem
Mas não tem alma.
O açuçar tudo cura, é o que diz a Bondade.
O açucar é um fluido necessário,

De cristais que são como um pequeno penso.
Ó bondade, bondade
A apanhar delicadamente os grânulos!
As minhas sedas japonesas, borboletas desesperadas,
Para fixar a qualquer momento, anestesiadas.

E lá vens tu, com uma chávena de chá
Numa auréola a vapor.
O jacto de sangue é poesia,
Nada o pode estancar.
Tu trazes-me dois filhos, duas rosas.

in Ariel, tradução de Maria Fernanda Borges, Relógio d' Água, 1996

domingo, outubro 01, 2006

José Tolentino Mendonça

O POEMA
O poema é um exercício de dissidência, uma profissão de incredulidade na omnipotência do visível, do estável, do apreendido. O poema é uma forma de apostasia. Não há poema verdadeiro que não torne o sujeito um foragido. O poema obriga a pernoitar na solidão dos bosques, em campos nevados, por orlas intactas. Que outra verdade existe no mundo para lá daquela que não pertence a este mundo? O poema não busca o inexprimível: não há piedoso que, na agitação da sua piedade, não o procure. O poema devolve o inexprimível. O poema não alcança aquela pureza que fascina o mundo. O poema abraça precisamente aquela impureza que o mundo repudia.

quarta-feira, setembro 13, 2006

A INFÂNCIA CONFISCADA

Desenho de Alejandra Pizarnik
Nunca como agora a infância foi tão vigiada, controlada, programada. É certo que aquilo a que hoje chamamos infância eram os primeiros seis anos de vida, pouco mais, até há pelo menos 100, 80 anos. Pelo menos seria assim para a grande maioria das crianças, as que não pretencenciam às classes abastadas e tinham que começar a trabalhar em tenra idade, sem frequentar a escola. A infância começou com o controlo da natalidade através dos métodos contraceptivos e do fim da calamitosa taxa de mortalidade infantil que andaria, ainda no início do século passado muito acima dos 50 por cento.
É nos últimos anos que a infância se tornou, cada vez mais, politizada, comercializada, mediatizada (tanto zada!). É certo que Freud, e seus seguidores, já tinham no começo do século passado utilizado a infância como matriz de todo o comportamento do homem pela vida fora. Mas é também com os psicanalistas, os pedo-psiquiatras, os psicologos e tantos outros técnicos que se vão ocupar - e viver, no sentido económico - da infância, que esta ganha o seu lugar na cidade. Hoje ao mesmo tempo que qualquer ameaça à infância é notícia de abertura de telejornal, geralmente protagonizada por essa figura por excelência da actualidade que é o pedófilo, as crianças, são controladas de todas as formas numa negação do espaço que configura a infância. É assim que o tempo de aulas é aumentado, a pressão para o chamado sucesso escolar compete com a pressão no trabalho dos adultos, aumentam as actividades extra curriculares, os ATL, etc. Tudo visa uma ocupação do espaço da infância, que entretanto foi alargado a nível etário: hoje alguém com 18 anos é considerado uma criança. Ao mesmo tempo a infância, com o seu alargamento etário, é considerada um lugar de inocência quando, por vezes se assiste à pratica das maiores crueldades por essas criancinhas (veja-se o caso Gisberta) que sem nenhuma condenação, e conscientes da sua inimputabilidade, não mostram a mais miúda culpa.
Por outro lado, e no que diz respeito á infância dos adultos, esta é objecto de todo um trabalho de reescrita por parte de psicoterapeutas e psicanalistas que culmina na criação de falsas memórias (veja-se a este respeito o trabalho de Elisabeth Loftus) ou no apagar da memória da infância.

domingo, setembro 10, 2006


9/11:O DIA EM QUE O MUNDO MUDOU?

Por todo o lado, nesta altura em que se assinala o 5º aniversário do 11 de Setembro de 2001, os média falam do "dia em que o mundo mudou". Será que o ataque às torres gémeas mudou o mundo? No essencial o mundo permanece o mesmo, embora vá mudando um pouco todos os dias - faz parte da condição do mundo mudar lentamente - e se o mundo mudou em catástrofes foi mais nas catástrofes naturais que nas provocadas pelo homem. No entanto, nestas últimas temos os exemplos de Hiroshima e Nagasáqui transformadas pelos americanos de um momento para o outro. Aí a vida nunca mais foi o que era. De Nova Iorque apenas desapareceram dois dos seus maiores símbolos.
É certo que as tragédias crescem na medida em que se tornam colectivas, ou se colectivizam pelo número de vitimas, e pelo efeito de proximidade: o que aconteceu em Balí não teve a mesma reprecursão do que aconteceu em Londres. É uma regra do jornalismo e não só: primeiro os mais próximos, os outros...
O ataque ao WTC, o centro (símbolico) do capitalismo, teve um outro efeito: a criação de espetacularidade que fez com que um acontecimento real fosse, na altura, visto pela televisão, como se tratando de uma ficção. Para além de tudo o 11 de Setembro foi um desses raros acontecimentos globais onde - e aqui ao contrário da encenação radiofónica da guerra das estrelas por Orson Welles - a ficção e a realidade se confundiram.
Mas o 11 de Setembro foi, a nível político, o acontecimento que permitiu a George W. Bush iníciar a sua cruzada bélica. Daí as teorias da conspiração: o 11 de Setembro teria sido fabricado pelo governo americano. Importa destacar do 11 de Setembro e dos ataques que se seguiram assinados pela Al-Qaida, ou mesmo dos ataques falhados como o deste verão, que o verdadeiro ataque à forma de vida e liberdade do Ocidente tem sido praticado pelos seus governos quando, em nome da segurança, põem as liberdades e direitos dos cidadãos em risco. Abdicar das liberdades que as sociedades ocidentais construiram durante séculos em nome da "guerra ao terrorismo" seria dar a vitória ao fundamentalismo terrorista islâmico.

quarta-feira, setembro 06, 2006

O FIM DA INDEPEDÊNCIA

O Independente acabou, já foi há uma semana (ou melhor terá sido há uns anos atrás quando Inês Serra Lopes tomou conta do jornal) e este post vai atrasado, depois de muitos posts e artigos de jornal sobre o finado jornal. O certo é que de alguns comentários que li parecem sobresair dois ou três aspectos: a satisfação pelo fim do jornal por parte de personalidades que foram atacadas pelo jornal (Eduardo Prado Coelho, Macário Correia, etc), a crítica pessoal aos seus fundadores e directores (Miguel Esteves Cardoso e Paulo Portas) e por causa de Portas, a leitura redutora d' O Independente como um projecto político. Todas estas leituras esquecem o que mais importa no caso d' O Independente: o quanto o projecto editorial do jornal foi, sem fazer escola, uma lufada de ar fresco na Imprensa portuguesa. Dito de outro modo, e muito haveria e haverá a dizer sobre O Independente, o jornal de MEC e PP, nos seus tempos áureos, foi uma proposta a nível estético conjugado com um atitude insubordinação únicas na imprensa portuguesa dos últimos 20 anos. O jornalismo de O Independente, embora tenha deixado muitas vezes de lado a ética foi o contrário do que é o actual jornalismo: o mais subserviente possível. Algo que na altura, sem blogosfera, só podia ser feito num jornal ou numa rádio pirata. Entre o muito que passou por O Independente, desde escritores e poetas como M. S. Lourenço, João Miguel Fernandes Jorge, Joaquim Manuel Magalhães (que pôde publicar parte dos poemas de Alta Noite em Alta Fraga ) destaco o papel reservado para a fotografia.

domingo, agosto 27, 2006

sábado, agosto 19, 2006

Federico Garcia Lorca


BÚZIO

Trouxeram-me um búzio.

Dentro dele canta
um mar de mapa.
Meu coração
encheu-se de água
com peixinhos
de sombra e prata.

Trouxeram-me um búzio.

(in Antologia Poética, trad. de José Bento, Relógio d' Água, 1993, p.35)

Federico Garcia Lorca foi fuzilado a 19 de Agosto de 1936, pelos nacionalistas.

quinta-feira, agosto 17, 2006

R. LINO

hoje, as cidades


hoje, as cidades
ficaram um pouco mais longe
e eu não sei porquê
só sei que ficaram mais longe
as cidades
à beira-mar, havendo por todo o globo
as duas vidas:
eleanor damortis animada de festas e de estios
ou a rapariga que vive
a mil e quinhentos paus por mês
não sabendo no armário
outros sítios de ser festa ou esperar.
(do outro lado da ribeira o velho cão
guarda o corpo como algas
e compotas de frio às seis da tarde...)
a rapariga do armário
mata-se na cidade
do outro lado de ser diferente o mesmo tempo.
(in Atlas Paralelo, IN-CM/Gota de Água, col. Plural, 1984, p.48)
R. Lino nasceu em Évora a 12 de janeiro de 1952. Publicou nos anos 80 os seguintes livros: Palavras do Imperador Hadriano (1984), Atlas Paralelo (1984), Paisagens de Além Tejo (1986) e Daquíra (1988).