quarta-feira, dezembro 27, 2006

O ESTADO DOS LIVROS: A EDIÇÃO EM 2006


O que há para dizer sobre a edição de livros no ano que está a terminar não é nada de substancialmente novo em relação ao que tem vindo a acontecer de há uns anos para cá. As tendências de uma literatura light de que o nome de Margarida Rebelo Pinto é apenas uma metonímia; uma outra literatura, que se está a tornar num género, também de caracteristicas light que anda em volta do sucesso de O Código d' Vinci a par com livros sobre sexo e romances de vedetas de televisão (por exemplo Fátima Lopes apresentadora do programa da manhã da SIC) enchem os escaparates das FNAC's e Bertrand's, num processo de democratização da leitura e da escrita com todas as consequências que isso implica, sendo a mais importante delas o relegar para as prateleiras dos livros realmente importantes, aqueles que foram escritos por autores (Duras, Beckett, Bernhard, Llansol, Rui Nunes, Tolentino de Mendonça, etc, exemplos ao acaso do que são autores).
Se por um lado a abertura de lojas como a FNAC tem vindo a democratizar a leitura, permitindo que um público mais vasto tenha acesso ao livro (daí a existência de editoras como a Oficina do Livro - este ano comprada por uma sociedade de investimentos financeiros de alto risco - que se baseam na publicação de livros de figuras públicas) por outro esta democratização torna o livro em mais um produto da indústria de conteúdos, da indústria cultural, onde é dessacralizado, ficando entregue à mesma lógica das telenovelas. Ou seja, assim como as televisões generalistas já não têm espaço para passar cinema de autor, também os grandes espaços de venda de livros, os mais frequentados, e algumas editoras começam a não ter espaço para os verdadeiros autores. Que os escaparates das Bertrand's e Fnac's são ocupados por lixo não era novidade, mas talvez o seja o facto de Armando Silva Carvaho e Maria Velho da Costa, autores que normalmente eram publicados pela Dom Quixote terem publicado o seu Livro do Meio na Caminho, enquanto a editora dirigida agora por Teresa Coelho publicava a denúncia, em estílo de vingança kitsh, do mundo mafioso do futebol por Carolina Salgado. Convenhamos que Eu, Carolina é um livro que em nada prestigia os pergaminhos de uma das principais editoras portuguesas (agora em mãos espanholas), embora para quem estivesse atento aos escaparates das livrarias nos últimos tempos não constitua uma surpresa.
Ficam, no entanto, os resistentes desta lógica mercantil do livro (que nem sequer é nova na história): editoras como a Assírio & Alvim, a Relógio d' Água, Cotovia, Quasi ou as mais "marginais" Frenesi, & etc, Fenda, Vendaval, Black Sun. E também as livrarias de que se destaca a reabertura da Ler Devagar em Lisboa ou, no Porto, para além da Leitura (em decadência) e Latina, a Utopia, a Pulga e a Poetria. Quanto ao livros publicados em 2006, serão objecto de um outro post.

sexta-feira, dezembro 15, 2006

Jorge Fallorca

LISBOA, 21 JUN 74

Um doido sorri-me do táxi. Poucos doidos em Lx. Uma cidade, um país, uma cidade-país, que não tem doidos, mesmo poucos, não interessa. Tá bem eu sei que em Lx. é tudo doido, ou melhor: louco, eu sei, mas refiro-me a doidos mesmo doidos, com quem se possa aprender alguma coisa...
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(in Sião)
*
Laranja

A estrada para o Caramulo acendia-se de laranjas.
A berma ladeava-se de cestas traiçoeiras, que desafiavam a atenção dos condutores e atiçavam discussões familiares.
A que lhes era alheio o sabor e o preço.
Pelo caminho ficavam as confidências das meninas.
Seios à dimensão de uma laranja, revelados em aulas improvisados pela curiosidade.
Os gomos adoçicavam-nos o tacto, sem que os dedos se quebrassem na expectativa.
Miller fez-me correr pomares à procura de das laranjas de Hieronymus.
Mas tudo quanto vi foram as cascas deixadas por Al-Mu'tamid, junto ao sabor uniformizado pela Europa.
Uma vez, o vento atirou-me uma azahar para dentro do chá em Tânger.
Finalmente, a flor de laranjeira sossegava-me a cabeça no regaço das estradas.
in Longe do Mundo, Frenesi, 2004, p. 25
Jorge Fallorca nasceu em 1949 (15 de Junho), em Mortágua. Poeta, tradutor, jornalista, radialista (na Rádio Comercial) e viajante, é autor de entre outros os seguintes livros: A luva in Love (1977) Alpendre (1988), Fruta da Época (2001), A cicatriz do Ar ( 2001) e Longe do Mundo (2004)

terça-feira, novembro 28, 2006

poema

Os pássaros de Londres
cantam todo o inverno
como se o frio fosse
o maior aconchego
nos parques arrancados
ao trânsito automóvel
nas ruas de neve negra
sob um céu sempre duro
os pássaros de Londres
falam do esplendor
com que se ergue o estio
e a lua se derrama
por praças tão sem cor
que parecem de pano
em jardins germinando
sob mantos de gêlo
como se de gêlo fora
o linho mais bordado
ou em casas como aquela
onde Rimbaud comeu
e dormiu e estendeu
a vida desesperada
estreita faixa amarela
espécie de paralela
entre o tudo e o nada
os pássaros de Londres
quando termina o dia
e o sol consegue um pouco
abraçar a cidade
à luz razante e forte
que dura dois minutos
nas árvores que surgem
subitamente imensas
no ouro negro e verde
que é sua densidade
ou nos muros sem fim
dos bairros deserdados
onde não sabes não
se vida rogo amor
algum dia erguerão
do pavimento cínzeo
algum claro limite
os pássaros de Londres
cumprem o seu dever
de cidadãos britânicos
que nunca nunca viram
os céus mediterrânicos

Mário Cesariny, Pena Capital, Assírio & Alvim, 1982

domingo, novembro 26, 2006

MÁRIO CESARINY (1923-2006)




O QUE NÃO SE CHAMAVA ASSIM

Entre nós e as palavras há metal fundente

A revolução surrealista falhou há muito, aliás conotar Cesariny com o surrealismo bretoniano será um erro. Se de alguém Mário Cesariny (de Vasconcelos) estava próximo era de Antonin Artaud. Mas isso são outras contas. Contas do rosário da história da literatura, das minudências comparativistas. Acabam sempre por ser simples papéis ao vento perante o peso de uma obra poética onde habitam alguns dos maiores poemas da poesia portuguesa do século XX, e alguns dos principais versos dessa mesma poesia deveriam ser gravados a "metal fundente" por cima das porcas imagens dos placards publicitários.

Cesariny foi pouco amado e muito rotulado. Pelos literatos, e pela polícia por quem foi perseguido e tratado como uma puta. Surrealista e homossexual foram os rótulos de que os sistemas literários e político-políciais se serviram para arrumar a sua obra. Deixou-nos um aviso: eu vou nascer feliz numa cidade futura.

domingo, novembro 19, 2006

A AGONIA DO JORNALISMO


A SIC transmitiu em 2001 algo a que chamou reportagem e que na altura foi inserido num espaço informativo. Consistia essa alegada reportagem em fechar um toxicodependente, de nome Pedro, num apartamento onde estavam colacadas câmaras que filmaram a ressaca a que o "jornalista" João Ferreira chamou Agonia. Deste vómito jornalístico fazia parte o psiquiatra Goulão, especialista em tratamento de toxicodependentes, que na boa tradição do sadismo psiquiatrico se responsabilizou (?) por este tratamento de choque. É necessário dizer que em 2001 a televisão portuguesa estava a enfrentar a tv realidade com o Big Brother, grande sucesso de audências da TVI, que liquidou a liderança da SIC. O programa, na altura foi transmitido em horário nobre, em plena concorrência com o Big Brother da TVI. Toda a gente ficou muito sensibilizada e emocionada com esta "grande reportagem", a começar pelo presidente da república de então, Sampaio, que recebeu Pedro, Goulão e Ferreira. Mais tarde, aproveitando o sucesso da "reportagem", João Ferreira escreveu um livro, Agonia: Uma Lição de Vida, editado por essa fábrica de lixo literário de tudo quanto é gente que aparece na televisão que é a Oficina do Livro. Adiante. Ontem a SIC estreou um programa de título Perdidos e Achados que, apresentado pela jornalista Sofia Pinto Coelho, pretende ir repescar reportagens e notícias transmitidas pela SIC e saber o que é feito desses casos. Sem vergonha, os responsáveis pela informação da SIC escolheram precisamente essa alegada reportagem para primeira emissão. Tratava-se agora de saber o que tinha acontecido à vida de Pedro, seis anos depois de ter sido submetido a um ultrajante tratamento médico-mediático (a TVI estreou sexta-feira um outro reality-show médico, Dr. Preciso de ajuda, para mudar o aspecto físico das concorrentes que não podem pagar cirurgias plásticas). Vários tem sido os atropelos, em cerca de 15 anos de televisão privada, à deontologia e ética do jornalismo televisivo, mas esta "reportagem", agora repescada, terá sido das maiores fraudes jornalisticas. E fraude porquê? Porque não se tratava de uma reportagem mas sim de um programa concorrente do Big Brother com o descaramento de se entítular de jornalismo. Se no canal que foi de inspiração cristã, 12 pessoas alienavam a sua privacidade em busca de fama e dinheiro, na SIC o dr. Goulão e o sr. Ferreira inauguravam um novo tipo de tratamento da toxicodependência: um jovem, só, num apartamento ressacava, sem ajuda médica, mas com o olho do Big Brother, ou seja, neste caso os televoyeuristas que assistiam a uma cerimonia de exorcismo dessa coisa que nem psiquiatras nem jornalistas querem explicar que é a dependência de qualquer substância (seja o vinho, o tabaco, a heroína ou um psicofármaco) e que no caso das drogas ilegais é diabolizada. Não duvido que Pedro tenha deixado as drogas, mas questiono: se este "tratamento" foi tão eficaz porque não o repetir? E, afinal, como estão a ser tratadas as outras dezenas ou centenas de toxicodependentes em Portugal? O que pensam os médicos, os toxicodependentes, a população em geral? E a troca de seringas nas prisões? E o tráfico de droga? São estas, pelo menos algumas das questões que um jornalista deve tentar responder numa reportagem sobre a droga.

sábado, novembro 11, 2006

PASOLINI #1: Sobre o 25 de Abril

Foto de Eduardo Gageiro
[...] Há no entanto casos como o de Portugal, que tinha de deixar de ser uma nação severa, somítica, arcaica: resumindo, tinha de ser lançada no grande universo do consumo. Assim, provavelmente a América obrigou Spínola e Caetano a entenderem-se. Dos dois o pior fascista «real» é Spínola (que aliás me dizem ter combatido outrora com uma formação portuguesa ao lado das SS) porque considero pior o totalitarismo do capitalismo de consumo do que o totalitarismo do velho poder. De facto - que coincidência! - o totalitarismo do velho poder não conseguiu sequer beliscar o povo português: demonstra-o o 1º de Maio. O povo português festejou o mundo do Trabalho - ao cabo de quarenta anos sem o fazer - com uma frescura, um entusiasmo e uma sinceridade absolutamente intactas, como se a última vez tivesse sido ontem. É de prever contudo que cinco anos de «fascismo consumista» irão mudar radicalmente as coisas: começará também o aburguesamento sistemático do povo português, e já não haverá espaço nem ânimo para as ingénuas esperanças revolucionárias.
Pier Paolo Pasolini, Escritos Corsários, Cartas Luteranas: uma antologia, Assírio & Alvim, 2006, p. 56. Orig. entrevista ao Il Mondo, 11 de Junho de 1974.

quinta-feira, novembro 09, 2006

Artur Schopenhauer


O Estado não é mais do que o açaimo cujo fim é tornar inofensivo esse animal carnívoro que é o homem, e dar-lhe o aspecto de um hervívoro.
*
O nosso mundo civilizado não passa duma grande palhaçada. Encontram-se aí cavaleiros, frades, soldados, doutores, advogados, padres, filósofos, e que mais? Não são, porém o que representam: são simples máscaras sob as quais se ocultam geralmente especuladores de dinheiro. Um ostenta a máscara da justiça e do direito com o auxílio dum advogado, para melhor prejudicar o seu semelhante; outro, com o mesmo fim, escolheu a máscara do bem público e do patriotismo; um terceiro o da religião, da fé imaculada. Para toda a espécie de desígnios secretos, mais um se ocultou sob a máscara da filosofia, etc.[...]. Quase sempre, não há, como já disse, senão puros industriais, comerciantes, especuladores debaixo dessas máscaras. Sob este ponto de vista a única classe honesta é a dos negociantes, porque se apresentam como são e passeiam de rosto descoberto: por isso os colocaram no ponto inferior da escala.

terça-feira, novembro 07, 2006