sexta-feira, abril 27, 2007

RUY BELO


LITERATURA EXPLICATIVA


O pôr do sol em espinho não é o pôr do sol
nem mesmo o pôr do sol é bem o pôr do sol
É não morrermos mais é irmos de mãos dadas
com alguém ou com nós mesmos anos antes
é lermos leibniz conviver com os medicis
onze quilometros ao sul de florença
sobre restos de inquietação visível em bilhetes de eléctrico
Há quanto tempo se põe o sol em espinho?
Terão visto este sol os liberais no mar
ou antero junto da ermida?
O sol que aqui se põe onde nasce? A quem
passamos este sol? Quem se levanta onde nos deitamos?
O pôr do sol em espinho é termos sido felizes
é sentir como nosso o braço esquerdo
Ou melhor: é não haver mais nada mais ninguém
mulheres recortadas nas vidraças
oliveiras à chuva homens a trabalhar
coisas todas as coisas deixadas a si mesmas
Não mais restos de vozes solidão dos vidros
não mais os homens coisas que pensam coisas sozinhas
não mais o pôr do sol apenas pôr do sol

.
(in Homem de Palavra[s])

quarta-feira, abril 25, 2007

MANUEL ANTÓNIO PINA


[4 DE JULHO DE 1965]


segundo fontes geralmente bem

os altos interesses nacionais

foi recebido carinhisamen-

pretende para fins matrimoniais


entre os países menbros da otan

as suas provas de doutoramento

sua excelência o presidente da

a conferência do desarmamento


excelentíssimo senhor director

ardilosos amigos do alheio

nosso prezado colaborador

atrasos na entrega do correio


não perca esta excelente ocasião

da santa madre igreja faleceu

resposta em carta à administração

de casa dos seus pais desapareceu


(in Ainda Não é o Fim Nem o Princípio do Mundo Calma é Apenas Um Pouco Tarde, 1974)

***


O livro


E quando chegares à dura

pedra de mármore não digas: «Água, água»,

porque se encontraste o que procuravas

perdeste-o e não começou ainda a tua procura;

e se tiveres sede, insensato, bebe as tuas palavras

pois é tudo o que tens: literatura,

nem sequer mistério, nem sequer sentido,

apenas uma coisa hipócrita e escura, o livro.


Não tenhas contra ele o coração endurecido,

aquilo que podes saber está noutro sítio.

O que o livro diz é não dito,


como uma paisagem entrando pela janela de um quarto vazio.



(in Os Livros, Assírio & Alvim, 2003)

segunda-feira, abril 09, 2007

Big Brother, 3


De uma notícia publicada na última página do Jornal de Notícias de hoje, Extractos.




Há muito tempo que os cidadãos britânicos se habituaram a ser seguidos por câmaras de segurança. Mas, agora, as mesmas câmaras não só têm "olhos" como passam a ter "voz" e "ouvidos". O sistema faz parte dos novos planos para combater comportamentos anti-sociais em áreas de maior risco e está já em funcionamento na cidade de Middlesborough. (...) As novas câmeras estão equipadas com colunas ligadas a um sistema de controlo onde funcionários de cada município podem falar com os cidadãos sempre que alguém tenha um comportamento menos cívico. (...) Actualmente, o Reino Unido tem 4,2 milhões de câmeras em funcionamento nas ruas, o que representa aproximadamente uma câmera por cada 14 pessoas que vivem no país.

terça-feira, abril 03, 2007

GASTÃO CRUZ


METAL FUNDENTE


Gostava de explicar-te e de poder
eu próprio compreender
por que momentos houve em que perder-te
era metal fundente como o disse um poeta
entre nós e as palavras


Eu seria as palavras tu os corpos
fundentes de nós dois, pela separação
futura liquefeitos
Era de cada vez como se a vida
também fundisse e o seu metal escorresse
sobre a pele da perda talvez isso
explicasse como o chumbo
da ilusão derrete e nos liberta
até desse momento em que tememos
nada mais ter


Mas como poderia
eu amar-te e achar-te já de mais
sentir estando tu tão perto ainda
a onda
da ausência contornar-me



O céu em certos dias produzia
o efeito dum espelho em que voltávamos
inversos
ao verão que tu julgaras
então igual à vida e era apenas
a infância perdida sobre o mar



de Rua de Portugal, Assírio & Alvim, 2002

domingo, março 25, 2007

O FANTASMA SAIU PELO TUBO CATÓDICO


O fantasma saiu pelo tubo catódico. Salazar venceu o pseudo reality show "Os Grandes Portugueses", que a RTP-1 organizou. A vitória de Salazar, com mais de 41 por cento dos votos, à frente de Cunhal com 19 por cento dos votos, é reveladora de um país que, passados quase quarenta anos sobre a morte do ditador ainda vive com o seu espectro. É o país dos doutores, do poder pelo poder, do cinzentismo, da mediocridade, do capitalismo das OPA's, mas também o país da política dos patos bravos que querem abandonar o interior às urtigas em favor das vias rápidas e condomínios fechados ou abertos. O país do ódio aos campos, dos engarrafamentos para o trabalho e para casa, o país que necessita de um ou dois ditadores -- o segundo lugar de Cunhal é bastante significativo. É claro que é um reality show estúpido, feito com mortos, mas não deixa de ser um indicador significativo da nossa realidade. De como qualquer resquicio do 25 de Abril está enterrado.

sábado, março 17, 2007

PEDOJORNALISMO


De há uns tempos para cá - anos ou mesmo décadas - as crianças começaram a ocupar um lugar no espaço público que jamais tiveram. A baixa de natalidade e de mortalidade infantil, são factores para que se criem em volta das crianças disputas legais, raptos, exercicios de poder por parte de assistentes sociais, medo exagerado em volta da figura do pedófilo, e claro, a mediatização de tudo isto. O caso da bebé raptada há um ano em Penafiel, e agora descoberta pela PJ é mais uma mancha no jornalismo a que mesmo o dito jornalismo de referência não escapou. Durante dias, esta criança de um ano, tem sido tema de abertura de telejornais (incluindo o serviço público), primeira página de jornais (incluindo o "novo" Público). Qual a fronteira, nesta história, entre jornalismo tablóide e jornalismo de referência? Não se vê, porque todos os orgãos de comunicação social alinham pelo mesmo diapasão. Ontem havia festa na aldeia onde a mãe biológica recebeu a sua filha. Um repórter descrevia as solicitações por parte dos populares para ver a criança; o pivô da TVI entrevistava uma pedopsiquiatra questionando-a sobre a mediatização do caso... Talvez os jornalistas não tenham espelho, mas têm monitores.

quarta-feira, março 07, 2007

JEAN BAUDRILLARD (1929-2007)


O esquecimento da exterminação faz parte da exterminação, pois o é também da memória, da história, do social, etc. Esse esquecimento é tão essencial como o acontecimento, de qualquer modo impossível de encontrar para nós, inacessível na sua verdade. Esse esquecimento é ainda demasiado perigoso, é preciso apagá-lo por uma memória artificial (hoje em dia, por toda a parte, são as memórias artificiais que apagam a memória dos homens, que apagam os homens da sua própria memória). Esta memória artificial será a reencenação da exterminação -- mas tarde, demasiado tarde para poder fazer verdadeiras ondas e incomodar profundamente alguma coisa e, sobretudo, sobretudo através de um medium ele próprio frio, irradiando o esquecimento, a discusão e a exterminação de uma maneira ainda mais sistemática, se é possível, que os verdadeiros campos de concentração. A televisão. Verdadeira solução final para a historicidade de todo o acontecimento. Fazem-se passar os judeus já não pelo forno crematório ou pela câmara de gáz, mas pela banda sonora e pela banda-imagem, pelo ecrã catódico e pelo microprocessador. O esquecimento, o aniquilamento alcança assim, por fim, a sua dimensão estética -- cumpre-se no retro, aqui enfim elevado à dimensão de massas.


"Holocausto", in Simulacros e Simulação, Relógio d' Água, 1991, p.67