segunda-feira, julho 30, 2007

INGMAR BERGMAN (1918-2007)
















PHILIP K. DICK


Os patos e o vagabundo no parque desapareceram nesse instante. Nada restou deles. O intervalo com os seus furos tinha passado depressa.

-Não são reais - disse Sarah. - Pois não? Por isso, como é que...

-Tu não és real - disse-lhe ele. - És um coeficiente de estímulos da minha fita de realidade. Um furo que pode ser ignorado. Será que também existes noutra fita de realidade, ou numa realidade objectiva?

Não sabia; não tinha maneira de saber. Era possível que Sarah também não soubesse. Talvez existisse em mil fitas de realidade; talvez existisse em todas as fitas de realidade alguma vez produzidas.

-Se eu cortar a fita - disse - passarás a estar em todo o lado em lado nenhum. como o resto do universo. Pelo menos no que a mim diz respeito.

Sarah gaguejou:

-Eu sou real.

-Quero conhecer-te completamente - disse Poole. (...)


"A formiga elétrica", in Ficções, nº15, 2007, p. 122

sábado, julho 28, 2007

EVA RUIVO

UM RECADO POR BAIXO DA PORTA

«We are the stuff
As dreams are made of, and our little life
Is rounded with a sleep»
Shakespeare. The Tempest

Parece que estou metida num vídeo
pornográfico, as ramagens batidas pelo suor e o rumor
de vozes agrícolas, regos abertos a cruzar as únicas
sílabas que a colheita, mãos de cortiça, deixou
varejadas. Dói: o sol nos muros, corpo inculto
versado na dor. Depois, certos dias obrigados
a festa, colchas no parapeito, jarras cheias
de calendário para encobrir o remorso;
a vida na província
são obscenas imagens de fuga

Acordei, tinham passado por cima de mim
aldeias inteiras, vivalma, sequer um alguidar
com água para a mula, pele e osso, ou música
o acordeão a insuflar a tenda.

in Hifen- Cadernos de Poesia, nº 10, 1997, p.19
Eva Ruivo nasceu em 1963 (Lisboa). Publicou Rosa de Jericó, Frenesi, 1994

quarta-feira, julho 18, 2007

HELDER MOURA PEREIRA

Dorme calma depois de ler
as mil e uma noites.
O dia cansou-a em curtas
viagens e hábitos
de companhia, no seu segredo
há uma espera de meses,
ainda não decidiu
a sua vida, só parece
parar um pouco a olhar
o rio. Raras vezes crê
no que lhe digo, uma turva
linguagem do feminino
força o seu corpo.
Os seus gestos ficarão
nesta casa?

in De novo as sombras e as calmas, Contexto, 1990

quinta-feira, junho 28, 2007

AGAMBEN EM SERRALVES


Giorgio Agamben esteve ontem em Serralves, para proferir uma conferência intítulada "Arte, inoperância, Política", a última do ciclo Crítica do Contemporâneo. E hoje vai estar outra vez para dialogar com o músico Stefano Scodanibbio. A obra do filosófo italiano pode ser vista sob dois pontos de vista: livros de carácter ensaístico como Ideia de Prosa ou Profanações (Livros Cotovia), em que o pensamento da Agamben é condensado em pequenos textos, por vezes um tanto herméticos, quase fábulas filosóficas e, livros que têm abordado uma das teses mais polémicas deste pensador, ou seja, a que compara a vida nos actuais Estados e cidades à vida nos campos de concentração nazi. Está neste caso a série de livros que tem por título Homo Sacer, de que em português apenas está editado o primeiro, O Poder Soberano e a Vida Nua (Presença). Ontem, em Serralves, Agamben abordou essencialmente o conceito de inoperância e inoperacionalidade. Para operacionalizar este conceito (será isto um paradoxo?) o autor de A Comunidade que Vem (Presença) foi buscar conceitos teológicos e, também, económicos. A conferência de Giorgio Agamben pareceu ser um resumo de algo que provalvelmente aparecerá em livro mais estruturado. Mas a ideia que me pareceu estar por detrás do conceito de inoperância, não parece ser nova: na sua essência andará próxima do Direito à Preguiça (Paul Lafargue) ou da inscrição situacionista "ne travaillez jamais".

sábado, junho 23, 2007

Roland Barthes


O poder está presente nos mecanismos mais subtis da comunicação social: não apenas no Estado, nas classes, nos grupos, mas ainda, nas modas, nas opiniões correntes, nos espectáculos, jogos, desportos, informações, nas relações familiares e privadas e até nas forças libertadoras que tentam contestá-lo: chamo discursso de poder a todo o discursso que engendra a culpa e, por conseguinte, a culpabilidade daquele que o ouve"

(...)

"Jakobson demonstrou que um idioma se define menos por aquilo que permite dizer do que por aquilo que obriga a dizer. Em francês sou obrigado a definir-me como sujeito antes de enunciar a acção que a partir desse momento será apenas o meu atributo: o que faço é apenas a consequência e a consecussão do que sou; do mesmo modo sou sempre obrigado a escolher entre o masculino e o feminino, o neutro e o misto são-me interditos; sou ainda obrigado a marcar a minha relação com outém recorrendo ao tu ou ao vós: é-me recusada qualquer indecisão afectiva ou social. Assim, devido à sua própria estrutura, a língua implica uma relação fatal de alienação. Falar, e com mais razão ainda discorrer, não é comunicar, como muitas vezes se diz, mas sim subjugar: toda a língua é uma regência generalizada"

(...)

"A língua como performance de toda a linguagem não é nem reaccionária nem nem progressista; ela é pura e simplesmente fascista; porque o fascismo não consiste em impedir de dizer, mas em obrigar a dizer."

Roland Barthes, Lição, edições 70, 1979, pp. 14, 15 e 16

sábado, junho 16, 2007

AGUSTIN GARCíA CALVO


A NECESSIDADE DA PRODUÇÃO E A PRODUÇÃO ESSENCIAL DOS SUJEITOS

Porém, do que se trata com tudo isto é da mais elementar das necessidades de que a Ordem padece, e de que nos faz padecer a todos: a de produzir. Pois, por um lado, só a obrigação de produzirconsiste na relação do produtor com o produto, no sentido em que um produza o outro. Um aspecto mais profundo do processo reside no seguinte facto: é o produto que faz o produtor ser o que é. E se pode ser importante que o operário continue a produzir automóveis, ou o professor matérias de ensino, mais importante ainda, sem dúvida, é que o automóvel ou as lições definam o operário como operário e o professor como professor, respectivamente. De tal forma que até mesmo actividades aparentemente vazias de produto, como as de delirar, mendigar, gritar, «o poder para o povo», dormir debaixo das pontes ou empregar determinadas técnicas de foda, podem não obstante constituir um produto com valor no Mercado, e aceitável, para o Senhor, como paga, a fim de Ele deixar este ou aquele continuando vivendo, na medida em que assim possam constituir esse produto essencial para a marcha e subsistência do Estado que se chama a Pessoa.


Aguntin García Calvo, Comunicado Urgente Contra o Desperdício, Fora do Texto, 1990, pp.29-30

sexta-feira, junho 15, 2007

Richard Rorty (04.10.1931 - 08.06.2007)


Conseguir que alguém negue a sua crença sem qualquer razão é um primeiro passo para tornar essa pessoa incapaz de ter um eu por se tornar incapaz de tecer uma teia coerente de crença e desejo. É algo que torna essa pessoa irracional num sentido bastante preciso: a pessoa é incapaz de apresentar uma razão para a sua crença que se articule com as suas outras crenças. Torna-se irracional não no sentido de ter perdido o contacto com a realidade, mas sim no sentido de já não conseguir racionalizar -- de já não se justificar perante si próprio.


Richard Rorty, Contingência, Ironia e Solidariedade, Presença, 1994, p. 223