terça-feira, maio 20, 2008

OLIVIER ROLIN



A opinião pública ... As próprias sonoridades da expressão transportavam evocações desagradáveis, águas mornas, odores a cebola, instalação... algo de desbotado e burguês. Quando deixara a França, há uma vintena de anos, não havia «opinião pública», tínhamos opiniões - cortantes, por vezes, mas eram, parece-me, actos que implicavam o espírito, e frequentemente o corpo também. (...). Não nadávamos na espécie de placenta maioritária que agora via alimentando uma multidão mole, uma imensa gelatina de fetos intelectuais. Tirávamos força e orgulho de ser minoritários, de caminhar atrás das bandeiras dos grandes réprobos. A solidão não era uma vergonha.(...). [O]s meus olhos, os meus ouvidos, que um exílio prolongado tinham tornado ingénuos, não viam nem ouviam agora senão banalidades de percentagens e de gestão - de negócios, de economia, de carreira, de texto, de sentimentos. Submetíamos as questões mais graves, as mais cívicas - a pena de morte, a sobrevivência ou extinção de um povo -, não à arbitragem das ideias, nem mesmo aos artíficios da eloquência, mas sim às flutuações de sinusóides projectadas por máquinas. Já não reconhecia nesse país, onde se pretendia agora julgar as causas humanas através de estatísticas que se geram umas às outras, onde a vida e a morte, o bem e o mal, a honra e a infâmia se calculavam em parcelas do mercado, a nação a que havíamos chamado, noutros tempos, grande, e onde de qualquer modo o espírito não tinha entregado todos os seus poderes às caixas registadoras dos comerciantes.


Olivier Rolin, Porto-Sudão, Edições Asa, Trad. de João Duarte Rodrigues, 1995, pp. 22, 23

domingo, maio 11, 2008

JEAN-JACQUES ROUSSEAU E OS LIVROS


Uma mulher chamada Tribu, que era famosa pelo aluguer de livros, fornecia-mos de todos os tipos. Bom e mau, tudo era admitido; eu nunca escolhia e devorava tudo com a mesma avidez. Lia no escritório, lia na rua, quando me mandavam a algum lado, lia na casa de banho, horas inteiras, esquecendo-me de tudo; não fazia mais do que ler, e tanto lia que a cabeça me andava à roda. O meu patrão vigiava-me, apanhava-me, sovava-me e apoderava-se dos livros. Quantos volumes foram destruídos, queimados ou atirados pela janela! Quantas obras ficaram incompletas na loja da Tribu! Quando não dispunha de outra coisa, pagava-os com camisas, gravatas, e roupas e todos os domingos, sem falhar um, entregava-lhe os três soldos que me davam como gorjeta.


Jean-Jacques Rousseau, Confissões, Livro Primeiro.

sexta-feira, maio 09, 2008

DIAMANDA GALÁS: A VOZ DE ORFEU


Ontem, Diamanda Galás voltou à Casa da Música, no Porto. Uma figura vestida de preto ao piano gritava, modulava o grito, como o oleiro modula o barro. A voz/grito de Diamanda Galás parece ter feito o percurso de Orfeu: ela foi ao inferno e voltou. O inferno de Diamanda Galás é a sida, ou o genocídio de um milhão de arménios pela Turquia. É a denúncia de factos como estes que torna a música de Diamanda Galás politizada. O som da sua voz, única, ampliado pelo sistema sonoro, fica a ressoar dentro do ouvido. Penetra o ouvido. É um acto físico entre Diamanda e os espectadores. Quando as palavras são importantes, elas são de Pasolini, Baudelaire ou Lorca, ou fazem uma revisitação muito própria de canções da música pop ou de cantores como Edith Piaf ou Johnny Cash, como acontece neste seu último disco, "Guilty, Guilty, Guilty", uma "compição de trágicas e homicidas canções de amor".

quinta-feira, maio 01, 2008

DIA DO TRABALHADOR


Um dos maiores triunfos dos situacionistas foi ver reaparecer nas paredes, em 1968, durante a greve geral selvagem, a palavra de ordem dada por Debord em 1952: «Ne travaillez jamais» [«Não trabalhem nunca»]. À crítica de não levarem em conta a realidade do trabalho, respondem [os situacionistas] que «quase nunca trataram de outro problema que não o do trabalho na nossa época: as suas condições, as suas contradições, os seus resultados» (IS, 10/67). Nunca produziram análises detalhadas sobre o mundo do trabalho e sobre as lutas operárias como fez Socialisme ou Barberie, mas observaram que o conjunto das actividades sociais, em particular o consumo dos lazeres, obedece a uma extensão da lógica do trabalho. O lugar de onde a sociedade extrai o seu sentido e a sua justificação, e que determina a identidade dos´indivíduos, está em vias de se transferir do trabalho para os chamados «lazeres».

Anselm Jappe, Guy Debord, Antigona, 2008, p. 120

segunda-feira, abril 28, 2008

MERIDITH MONK


Meridith Monk esteve no passado sábado em Lisboa, onde deu um concerto. Aqui fica um excerto do seu "grito" e outro excerto da crítica de João Bonifácio no Público de hoje.
O trabalho de Meredith Monk centra-se essencialmente no significado primordial da linguagem. Se antes de os homens "aprenderem" uma linguagem falada comunicavam por sons (que serviam de aviso, chamada, etc.), Monk faz numa "canção" o caminho oposto: parte de uma palavra para chegar a um som. Pega numa palavra, divide-a silabicamente, repete um fonema e torce-o e retorce-o em termos de amplitude vocal e extensão, tornando-a dúctil, como se se tratasse de uma criança a experimentar palavras, ainda antes de perceber que uma palavra é uma representação e que por baixo de uma palavra há uma emoção.

quarta-feira, abril 16, 2008

AS MULHERES E O PODER


Aristófanes, dramaturgo grego, escreveu uma comédia intitulada Lisístrata (411 a. C.) onde as mulheres fazem greve de sexo para que os maridos ponham fim à Guerra do Peloponeso. Quase dois mil e quinhentos anos depois as mulheres têm acesso à instituição militar; podem servir a pátria em combate, lado a lado com os homens. Para muitas (os) trata-se de algo de bom: o reconhecimento de uma igualdade de género. Mas a guerra é algo de mau.
Em Espanha, o novo governo de Zapatero tem como ministra da defesa uma mulher, Carme Chacón, professora de direito constitucional. Por cá, Sócrates nunca pensaria em dar a pasta da defesa a uma mulher, e no entanto o PS tem uma especialista em defesa, Maria Carrilho.
A questão pode ser colocada nestes termos: é possível que ao conquistar o poder as mulheres o transformem em algo diferente, para melhor, em relação ao que é o poder exercido pelos homens? Creio que a resposta é negativa, não só pelos exemplos – Margareth Thatcher, Condoleezza Rice – mas porque o poder (político, económico) é em si algo de negativo, algo que visa submeter o outro.

quinta-feira, abril 03, 2008

Ana Paula Inácio


Este poema tem como hipotexto
o Florbela Espanca espanca de Adília Lopes
e o Livro de Mágoas da Florbela
não me interessa quanto valem
na cotação da bolsa literária -
ainda não gozei nenhuma e
bolsa que me interesse
só mesmo a do canguru
mas tu não és minha mãe
nem meu pai, ou tia, ou
irmão, pseudo-Electra -
nem do seu mainstream.
Este poema é dedicado
à minha amiga Mónica
que faz ioga aos sábados de manhã,
cabeleireiro e depilação 2 vezes por mês
(cf. poema anterior)
luta contra uma auto-estima precária
mas sabe o que quer
quando lourifica o cabelo
como 43, 33 % das mulheres
com idade > 40 anos,
licenciadas,
em Portugal,
no ano de 2004:

«falar, falar, falar
a este àquele
a toda a gente
e não falar a ninguém»

«Bom dia, meu amor» ou
«Bonjour, tristesse»
como dizia Françoise Sagan
ao seu amante
trocado
por falsos versos.


Ana Paula Inácio nasceu no Porto em 1966. Publicou dois livros de poesia, As Vinhas do Meu Pai (Quasi, 2000) e Vago Pressentimento Azul por Cima (Ilhas, 2000), e um de contos, Os Invisíveis (Quasi, 2002). O poema aqui publicado faz parte do número 9 da revista Telhados de Vidro (Novembro de 2007).

terça-feira, abril 01, 2008

A MÁ EDUCAÇÃO (TECNOLÓGICA)


O episódio do telemóvel na Escola Carolina Michaelis demonstra que para que algo exista, tenha relevância mediática, são necessárias imagens. As palavras, a palavra que acompanhava a honra de um homem (ou mulher), a palavra como narrativa, perdeu todo o seu valor. Se aquela disputa por um telemóvel ente professora e aluna não fosse filmada por outro telemóvel e depois colocada no you tube, este acto de violência seria um dos muitos calados nas escolas portuguesas. Desta situação, com a sua consequente cobertura mediática, podemos tirar uma lição sobre a importância que as novas tecnologias desempenham na sociedade actual, uma sociedade em permanente conexão, onde os meios tecnológicos acabam por ser extensões do corpo dos indivíduos. Nesse sentido, este caso parece ser um case study não tanto sobre a violência escolar mas sobre a forma como funcionam hoje os média e a sua relação com a sociedade.
Quanto à situação em si, a “agressão” da aluna à professora, ela demonstra, para além da inversão de papéis, num local extremamente violento como uma escola, uma total incapacidade por parte da docente de lidar com a situação. A aluna devia ter sido expulsa da aula.