sábado, julho 05, 2008

NUNO JÚDICE


DEMOCRACIA

Fui dar com a democracia embalsamada, como
o cadáver do Lenine, a cheirar a formol e aguarrás,
numa cave da Europa. Despejavam-lhe por cima
unguentos e colónias, queimavam-lhe incensoe
haxixe, rezavam-lhe as obras completas do
Rousseau, do saint-just, do Vítor Hugo, e
o corpo não se mexia. Gritavam-lhe a liberdade,
a igualdade, a fraternidade, e a pobre morta
cheirava a cemitério, como se esperasse
autópsias que não vinham, relatórios, adêenes
que lhe dessem família e descendência. Esperei
que todos saíssem de ao pé dela, espreitei-lhe
o fundo de um olho, e vi que mexia. Peguei-lhe
na mão, pedi-lhe que acordasse, e vi-a tremer
os lábios, dizendo qualquer coisa. Um testamento?
a última verdade do mundo? «Que queres?»,
perguntei-lhe. E ela, quase viva: «Um cigarro!»

Nuno Júdice, A Matéria do Poemas, Dom Quixote, 2008, p. 45

segunda-feira, junho 23, 2008

OSKAR KOKOSCHKA / ANA TERESA PEREIRA



Os quadros que Oskar Kokoschka pintou em Polperro. Um mundo em movimento, nuvens, mar, rochas, casas, barcos de pesca e uma ou duas gaivotas em primeiro plano. O meu pai tinha um álbum de Kokoschka e eu já conhecia os quadros muito antes de os descobrir nas galerias.

Os invernos eram longos e eu passava-os a folhear álbuns de pintura, a ler livros policiais, a desenhar, a ouvir os pescadores contarem histórias de piratas. E a pensar em Lizzie.

(imagem de Oskar Kokoschka, Polperro II; texto de Ana Teresa Pereira, do seu último livro, O Fim de Lizzie, ed. Biblioteca de Editores Independentes, nº 34, 2008, p. 133)

quarta-feira, junho 18, 2008

E NÃO SE PODE DISSOLVER O POVO?



Os irlandeses, em referendo, na passada sexta-feira, votaram contra o Tratado de Lisboa. O referendo ao Tratado de Lisboa apenas se realizou na Irlanda porque a constituição irlandesa assim o obriga: nos restantes 26 países da União Europeia o Tratado tem sido – e deverá continuar a ser – rectificado pelos parlamentos de cada país. A questão que este não dos irlandeses coloca perante a “construção europeia” relaciona-se com a democraticidade dessa mesma construção. Senão vejamos: toda a construção do que é hoje a União Europeia tem sido feita à revelia dos cidadãos (o caso português é um bom exemplo: desde a adesão à então CEE, até este Tratado, aprovado pelo parlamento português, passando pela entrada no euro, nunca os portugueses foram ouvidos em referendo). Os políticos europeus e os eurocratas de Bruxelas desprezam e/ou temem o povo da Europa. No fundo desprezam a democracia, acham-se uma oligarquia de iluminados. Mas, paradoxo, a Europa não é um resultado da democracia e do fim da segunda guerra mundial? Não é, embora imperfeita, a democracia o melhor dos regimes? Para os políticos europeus, eleitos democraticamente, e perante as reacções ao resultado do referendo irlandês – como perante as atitudes anteriores do processo de construção europeia –, parece que eles desdenham da democracia. E, continuação do paradoxo, não foram eles eleitos democraticamente? Talvez por isso se achem no poder de um mandato que os faz ignorar a vontade popular – e de facto faz, durante os quatro anos de duração desse mandato.

segunda-feira, maio 26, 2008

ONDE ESTÃO OS MARCIANOS?


O horizonte de Marte, captado pela sonda Phoenix que hoje pousou no planeta chamado vermelho. E nem sombra de marcianos verdes...

terça-feira, maio 20, 2008

OLIVIER ROLIN



A opinião pública ... As próprias sonoridades da expressão transportavam evocações desagradáveis, águas mornas, odores a cebola, instalação... algo de desbotado e burguês. Quando deixara a França, há uma vintena de anos, não havia «opinião pública», tínhamos opiniões - cortantes, por vezes, mas eram, parece-me, actos que implicavam o espírito, e frequentemente o corpo também. (...). Não nadávamos na espécie de placenta maioritária que agora via alimentando uma multidão mole, uma imensa gelatina de fetos intelectuais. Tirávamos força e orgulho de ser minoritários, de caminhar atrás das bandeiras dos grandes réprobos. A solidão não era uma vergonha.(...). [O]s meus olhos, os meus ouvidos, que um exílio prolongado tinham tornado ingénuos, não viam nem ouviam agora senão banalidades de percentagens e de gestão - de negócios, de economia, de carreira, de texto, de sentimentos. Submetíamos as questões mais graves, as mais cívicas - a pena de morte, a sobrevivência ou extinção de um povo -, não à arbitragem das ideias, nem mesmo aos artíficios da eloquência, mas sim às flutuações de sinusóides projectadas por máquinas. Já não reconhecia nesse país, onde se pretendia agora julgar as causas humanas através de estatísticas que se geram umas às outras, onde a vida e a morte, o bem e o mal, a honra e a infâmia se calculavam em parcelas do mercado, a nação a que havíamos chamado, noutros tempos, grande, e onde de qualquer modo o espírito não tinha entregado todos os seus poderes às caixas registadoras dos comerciantes.


Olivier Rolin, Porto-Sudão, Edições Asa, Trad. de João Duarte Rodrigues, 1995, pp. 22, 23

domingo, maio 11, 2008

JEAN-JACQUES ROUSSEAU E OS LIVROS


Uma mulher chamada Tribu, que era famosa pelo aluguer de livros, fornecia-mos de todos os tipos. Bom e mau, tudo era admitido; eu nunca escolhia e devorava tudo com a mesma avidez. Lia no escritório, lia na rua, quando me mandavam a algum lado, lia na casa de banho, horas inteiras, esquecendo-me de tudo; não fazia mais do que ler, e tanto lia que a cabeça me andava à roda. O meu patrão vigiava-me, apanhava-me, sovava-me e apoderava-se dos livros. Quantos volumes foram destruídos, queimados ou atirados pela janela! Quantas obras ficaram incompletas na loja da Tribu! Quando não dispunha de outra coisa, pagava-os com camisas, gravatas, e roupas e todos os domingos, sem falhar um, entregava-lhe os três soldos que me davam como gorjeta.


Jean-Jacques Rousseau, Confissões, Livro Primeiro.

sexta-feira, maio 09, 2008

DIAMANDA GALÁS: A VOZ DE ORFEU


Ontem, Diamanda Galás voltou à Casa da Música, no Porto. Uma figura vestida de preto ao piano gritava, modulava o grito, como o oleiro modula o barro. A voz/grito de Diamanda Galás parece ter feito o percurso de Orfeu: ela foi ao inferno e voltou. O inferno de Diamanda Galás é a sida, ou o genocídio de um milhão de arménios pela Turquia. É a denúncia de factos como estes que torna a música de Diamanda Galás politizada. O som da sua voz, única, ampliado pelo sistema sonoro, fica a ressoar dentro do ouvido. Penetra o ouvido. É um acto físico entre Diamanda e os espectadores. Quando as palavras são importantes, elas são de Pasolini, Baudelaire ou Lorca, ou fazem uma revisitação muito própria de canções da música pop ou de cantores como Edith Piaf ou Johnny Cash, como acontece neste seu último disco, "Guilty, Guilty, Guilty", uma "compição de trágicas e homicidas canções de amor".

quinta-feira, maio 01, 2008

DIA DO TRABALHADOR


Um dos maiores triunfos dos situacionistas foi ver reaparecer nas paredes, em 1968, durante a greve geral selvagem, a palavra de ordem dada por Debord em 1952: «Ne travaillez jamais» [«Não trabalhem nunca»]. À crítica de não levarem em conta a realidade do trabalho, respondem [os situacionistas] que «quase nunca trataram de outro problema que não o do trabalho na nossa época: as suas condições, as suas contradições, os seus resultados» (IS, 10/67). Nunca produziram análises detalhadas sobre o mundo do trabalho e sobre as lutas operárias como fez Socialisme ou Barberie, mas observaram que o conjunto das actividades sociais, em particular o consumo dos lazeres, obedece a uma extensão da lógica do trabalho. O lugar de onde a sociedade extrai o seu sentido e a sua justificação, e que determina a identidade dos´indivíduos, está em vias de se transferir do trabalho para os chamados «lazeres».

Anselm Jappe, Guy Debord, Antigona, 2008, p. 120