sábado, outubro 11, 2008

J.-M. G. LE CLÉZIO: O NOBEL PARA UM "ÍNDIO BRANCO"


Não sei muito bem como é possível, mas a verdade é esta: sou um índio. Não o sabia antes de ter encontrado os Índios, no México e no Panamá. Sei-o agora. Não sou talvez um índio muito bom. Não sei cultivar o milho nem afeiçoar uma piroga. O peiote, o mescal ou a chicha mastigada sobre mim não exercem grande efeito. Mas quanto ao resto, quanto à maneira de andar, de falar, de amar ou de ter medo, posso dizer o seguinte: quando encontrei esses povos índios, eu, que não julgava por aí além ter família, senti-me como se de repente tivesse conhecido milhares de pais, de irmãos e de esposas.

J.M.G. Le Clézio, Índio Branco, trad. de Júlio Henriques, Fenda, 1989, p.7

domingo, outubro 05, 2008

DANIEL MAIA-PINTO RODRIGUES


É manhã
abro a porta da cozinha
a das traseiras da casa de campo.
Encaro a manhã.
O caseiro diz bom-dia
um cão aproxima-se de mim
e do pão com manteiga.
Desço de pé as escadas.
As escadas são de pedra.
Considero a manhã quente.
Não há nuvens
e o sol está lá em cima
no céu.
É domingo.
e uns tantos gatos amarelos
brincam com as ervas altas.
Considero a manhã quente
tiro a camisola
olhando de relance para um bando de pombos
sento-me
quase me deito num banco de madeira
distante já da casa.
Não vou ler agora este livro de poemas.
Uma voz suada pelo calor
chamou o meu nome
mas agora eu não vou responder.

Daniel Maia-Pinto Rodrigues,O Valete do Sétimo Naipe, Editora Corpos, 2ª ed., 2005, p. 43.

domingo, setembro 28, 2008

MACHADO DE ASSIS


Há 100 anos morria o escritor brasileiro Machado de Assis (1939-1908). Autor de inúmeros contos, poemas, crónicas, peças de teatro e de romances como Dom Casmurro, Memórias Póstumas de Brás Cubas e Quincas Borba, Joaquim Maria Machado de Assis foi considerado pelo crítico norte-americano Harold Bloom como o maior escritor afro-descendente de todo o mundo e um dos cem mais da História da literatura de todos os tempos. Esta afirmação do autor de O Cânone Ocidental, apesar de valer o que vale na sua subjectividade, coloca em K. O. Eça de Queiroz (ou Camilo Castelo Branco) numa disputa sobre o maior autor de língua portuguesa do século XIX. Autodidacta, mestiço, membro da Academia Brasileira de Letras, Machado de Assis foi além da ironia e humor em romances e contos: utilizou a sua obra literária como uma forma surpreendente de reflexão filosófica na linha de um Diderot. Um exemplo disso é o conto (ou novela) O Alienista (1882), uma crítica à psiquiatria e ao positivismo da época, quase um século antes do movimento anti-psiquiatria e das obras de Foucault, Deleuze e Thomas Szasz. Do final de O Alienista fica um pequeno excerto:



Mas o ilustre médico, com os olhos acesos da convicção científica, trancou os ouvidos à saudade da mulher, e brandamente a repeliu. Fechada a porta da Casa Verde, entregou-se ao estudo e cura de si mesmo. (...). Alguns chegam ao ponto de conjecturar que nunca houve outro louco, além dele, em Itaguaí.

sexta-feira, setembro 26, 2008

GEORGE ORWELL (A QUINTA DOS ANIMAIS)




Era agora evidente o que sucedera aos rostos dos porcos. Os animais diante da janela olhavam dos porcos para os homens, dos homens para os porcos, e novamente dos porcos para os homens: mas era já impossível distingui-los uns dos outros.


George Orwell, A Quinta dos Animais, trad. Paulo Faria, Antígona, 2008, p. 132

terça-feira, setembro 09, 2008

CESARE PAVESE


O INSTINTO

O homem velho, desenganado de tudo,
da soleira da porta, sob o sol cálido,
observa o cão e a cadela a satisfazerem o instinto.

Sobre a sua boca desdentada perseguem-se as moscas.
A sua mulher há muito que morreu. Também ela,
como todas as cadelas, não queria saber disso,
mas não lhe faltava o instinto. O homem velho cheirava o ar
- ainda tinha dentes -, a noite vinha,
metiam-se na cama. Era bonito o instinto.

O que agrada no cão é a grande liberdade
De manhã à noite vagueia pela rua;
e ora come, ora dorme, ora monta cadelas:
não espera sequer pela noite. Raciocina
com o faro, e os cheiros que sente são seus.

O homem velho recorda-se de uma vez
em que o fez como os cães, de dia, no meio duma seara.
Já não sabe com que cadela, mas lembra-se do grande sol
e do suor e da vontade de nunca mais acabar.
Era como numa cama. Se os anos voltassem,
gostaria de o fazer sempre no meio duma seara.

Desde a rua uma mulher e pára a olhar;
o padre passa e volta-se. Na praça pública
pode-se fazer tudo. E até a mulher,
que tem pudor em voltar-se para o homem, pára.
Só um rapaz não tolera o jogo
e faz chover pedras. O homem velho indigna-se.

(Cesare Pavese, Trabalha Cansa, Trad. e Introdução de Carlos Leite, Cotovia, 1997, pp. 265-267)

Cesare Pavese nasceu há precisamente cem anos em Santo Stefano Belbo; estudou em Turim, tendo apresentado uma tese sobre Walt Whitman. Pertenceu ao Partido Comunista Italiano e trabalhou como tradutor para a editorial Einaudi. Poeta e ficcionista, dele estão traduzidos para português vários livros como o seu diário, Ofício de Viver, ou as narrativas A Lua e as Fogueiras, Férias de Agosto, A Praia, O Verão, A Guitarra Quebrada, O Diabo sob as Colinas, Noites de Festa (estas últimas editadas nos anos 60 e 70 estão esgotadas). A sua poesia está compilada no volume Trabalhar Cansa (Cotovia). Suicidou-se a 27 de Agosto de 1950.

sexta-feira, agosto 29, 2008

COPY & PASTE (1) - A. Guerreiro sobre Agamben


Para percebermos o alcance deste ensaio de Agamben [Bartleby - escrita da potência], devemo-nos referir a um dos seus conceitos mais recentes: o de «inoperosità», inoperância, o processo que consiste em desactivar a obra, seja ela humana ou divina, Não se trata de uma inacção, mas da actividade de desactivar. Isso é, no fundo, o que faz a poesia, que desactiva a linguagem da comunicação; e esse é também o dispositivo ético que Agamben propõe para tornar inoperantes as operações da máquina despolitizada da economia do poder. A inoperância, diz algures Agamben, é a substância política do Ocidente. Só ela é capaz de restituir a linguagem de que fomos expropriados. Bartleby, com a sua fórmula, é a figura dessa restituição.

António Guerreiro, "A potência da linguagem", excerto da recensão a Bartleby - escrita da potência de Giorgio Agamben, Expresso-Actual de 23.08.2008, p. 26

sexta-feira, agosto 01, 2008

É O FIM?


Hoje, pela primeira vez em 140 anos, O Primeiro de Janeiro não saí para a rua. Em editorial, na edição de ontem, a directora, Nassalete Miranda, despede-se “até para a semana”, mas tudo indica que a regressar o jornal apenas volte em Setembro como diário gratuito depois de uma reconversão gráfica. Para já foram despedidos os 30 trabalhadores do jornal, ainda com salários em atraso.
Durante anos, sob a direcção de Manuel Pinto de Azevedo (director entre 1946 e 1976), o PJ foi um dos principais jornais portugueses, opositor ao salazarismo. Nos anos 80 o jornal entrou em decadência, de que resultou um despedimento em larga escala em 1991 e a iminência do encerramento do jornal. Adquirido pelo empresário Eduardo Costa, o jornal têm nos últimos anos tentado recuperar algum do seu passado glorioso. Está neste caso o suplemento “Das artes, das letras”, publicado à segunda-feira, que pode ser considerado o único suplemento literário da imprensa portuguesa. De facto, o Janeiro acolheu nas suas páginas alguns dos maiores escritores portugueses. E pelo jornal que esteve durante décadas sediado num magnífico prédio da rua de Santa Catarina, no Porto, onde hoje funciona mais um centro comercial do grupo Sonae, também passaram alguns dos melhores jornalistas de Porto.
Depois do encerramento, há três anos d’ O Comércio do Porto, jornal igualmente histórico para a cidade do Porto e para o país, e de A Capital, espera-se que o Janeiro apareça em Setembro.

FERNANDO GUERREIRO


AS CINZAS DE LENINE

Será desculpável a facilitação do discurso? A ligeireza
com que as águias passam, deixando cair as suas penas
sobre as acabrunhadas raízes (e ruínas) do absoluto?!
A partir de que ponto se altera (perde) o pensamento?
Quantas vezes é preciso repeti-lo até ele se constituir
como um símbolo capaz de assolar o futuro? Marx refere-se
ao «espectro do comunismo» (no Manifesto, em 1847) e tanto
para Burke (Reflections) como para Michelet (Le Peuple)
o fantasma da História reveste a forma de uma sanguinária
Medusa. Mas era verdadeiro o seu Terror face ao que ante
os seus olhos acontecia: o abismo que tornava o raciocínio
sempre inconcluso. Da mesma forma, as cinzas da Revolução
o nosso imaginário ainda perturbam. Putrefacta, seria mais
acessível à repulsa? É neve, neve, que o cérebro nos atulha,
enquanto lá fora os pássaros voam baixo, à procura
das sementes que nos resguardem do futuro.

Fernando Guerreiro, Toeria da Revolução, Angelus Novus Editora, 2000, p.31