segunda-feira, abril 20, 2009

J. G. BALLARD (1930-2009)


De J. G. Ballard lembro-me de um documentário transmitido pela RTP-2 onde era visível a denúncia do mundo de betão das cidades dormitórios – um mundo desertificado que Ballard combateu através da sua obra. Não foi só um escritor de ficção científica, mas talvez tenha sido dos escritores de FC que mais notoriedade teve, mercê das adaptações das suas obras literárias ao cinema. Pensar o mundo de hoje implica estar atento ao que a ficção científica nos tem legado, e por isso a obra de Ballard é uma obra para ser pensada. Mas, ao mesmo tempo uma obra para ser usufruída, entre o apocalipse e a utopia.
Do livro As Vozes do Tempo (editado pela Caminho, em 1992, numa saudosa colecção que misturava ficção cientifica e policial) fica aqui o primeiro parágrafo do conto “O jardim do tempo”:
Ao cair da noite, quando a imponente sombra da Villa Palladin cobria o terraço, o conde Axel abandonou a biblioteca e desceu, por entre as flores do tempo, a larga escadaria rococó. A figura alta, imperiosa, com um paletó de veludo preto, um alfinete de gravata em ouro, cintinlando por debaixo da barba estilo George V, e uma bengala firmemente segura na mão de luva branca, observava indiferente as delicadas flores cristalinas. Da sala de música, enquanto a mulher tocava um rondó de Mozart, ouvia-se o som do cravo que ecoava e vibrava nas pétalas translúcidas.

domingo, abril 05, 2009

ANTÓNIO RAMOS ROSA


O GRITO CLARO

De escadas insubmissas
de fechaduras alerta
de chaves submersas
e roucos subterrâneos
onde a esperança enlouqueceu
de notas dissonantes
dum grito de loucura
de toda a matéria escura
sufocada e contraída
nasce o grito claro

António Ramos Rosa, Antologia Poética, D. Quixote, 2001, p.41

quarta-feira, março 25, 2009

ALBANO MARTINS


Entre cardos maduros, entre esporas
e espigas loiras duma seara azul,
no bafo sedoso, sincrónico das horas

passam rápidos, sunâmbulos cavalos
ao encontro da música. Perplexas
guitarras acordam e suspendem
a opressa respiração do tempo,
o hálito nocturno, o ritmo
do universo fundido em nossas mãos.

Albano Marins, Frágeis são as Palavras - antologia pessoal, ed. Asa, 2004, p. 23

quinta-feira, março 12, 2009

PARA VOTAR NO MACACO ADRIANO?


[O]s detentores de um Bilhete de Identidade (BI) válido que nunca se recensearam passam a estar automaticamente inscritos na freguesia de residência identificada no BI; os portadores do Cartão de Cidadão ficam também automaticamente inscritos na freguesia "correspondente à morada que tenham indicado no pedido do cartão"; e procedeu-se à inscrição dos jovens com 17 anos, que podem votar se, à data das eleições, completarem 18 anos. No artigo 3.º da lei 27/2008 pode ler-se, no ponto 2, que "todos os cidadãos nacionais, residentes no território nacional, maiores de 17 anos, são oficiosa e automaticamente inscritos na base de dados do recenseamento eleitoral". E mais à frente, no artigo 12.º, ponto 3, define-se que "para efeitos de verificação da identificação, eliminação de inscrições indevidas, por mudança de morada, por óbito ou pela detecção de situações irregulares, a DGAI, em colaboração com as entidades públicas competentes, assegura a interconexão entre a BDRE [base de dados do recenseamento eleitoral] e os outros sistemas de informação relevantes". Contactado pelo PÚBLICO, o director da Administração Eleitoral, Jorge Miguéis, explicou que dos 650 mil novos eleitores mais de 300 mil "são jovens entre os 18 anos e os 25 anos", que, apesar do recenseamento ser obrigatório, nunca se inscreveram nos cadernos eleitorais. Os restantes são eleitores "de outras faixas etárias que nunca se inscreveram", sendo que a maior parte deles "residem no estrangeiro, mas mantêm a residência portuguesa no seu Bilhete de Identidade". Com a norma que institui a inscrição automática no recenseamento (através do Cartão de Cidadão e do BI) o cartão de eleitor deixará de ser emitido. Refira-se, porém, que o número de eleitor não consta do Cartão de Cidadão, pelo que os portadores deste último têm obrigatoriamente de saber o seu número de inscrição eleitoral no caso de quererem exercer o seu direito de voto. Por isso, a DGAI colocou ontem um anúncio nas páginas do PÚBLICO, no qual informa que os cidadãos podem aceder ao seu número de eleitor e respectiva freguesia através do site http://www.recenseamento.mai.gov.pt/ ou enviando uma mensagem por telemóvel para o número 3838.

(Maria José Oliveira, Público, p. 5, edição de 12-03-09)

sexta-feira, fevereiro 27, 2009

TRADUÇÕES, 1:TRÊS POEMAS DE ANNE SEXTON


QUANDO O HOMEM ENTRA NA MULHER

Quando o homem
entra na mulher,
como a onda batendo contra a costa,
de novo e de novo,
e a mulher abre a boca com prazer
e os seus dentes brilham
como o alfabeto,
Logos aparece ordenhando uma estrela,
e o homem
dentro da mulher
ata um nó
de modo que nunca
possam voltar a separar-se
e a mulher
sobe a uma flor
e engole o seu caule
e Logos aparece
e solta seus rios.

Este homem,
esta mulher,
com a sua dupla fome,
tentaram atravessar
a cortina de Deus,
e por um instante conseguiram,
ainda que Deus
na Sua perversidade
desate o nó.



PALAVRAS

Tem cuidado com as palavras
mesmo as milagrosas.
Pelas milagrosas nós fazemos o melhor possível,
por vezes são como uma multidão de insectos
que não nos deixa uma picada mas um beijo.
Podem ser tão boas como dedos.
Podem ser tão seguras como a rocha
onde te sentas.
Mas também podem ser ao mesmo tempo margaridas e [amachucadas.

Contudo, estou apaixonada pelas palavras.
São pombas que caem do tecto.
São seis laranjas santas pousadas no meu regaço.
São as árvores, as pernas do verão,
e o sol, seu impetuoso rosto.

No entanto, falham-me com frequência.
Eu tenho tantas coisas que quero dizer,
tantas histórias, imagens, provérbios, etc.

Mas as palavras não são suficientemente boas,
as erradas beijam-me.
Por vezes voo como uma águia
mas com as asas de uma carriça.

Mas tento ter cuidado
e ser amável com elas.
As palavras e os ovos devem manipular-se com cuidado.
Uma vez partidas há coisas
impossíveis de reparar.




DEPOIS DE AUSCHWITZ

Raiva
tão negra como um gancho,
alcança-me.
Cada dia,
cada nazi
pega, às oito da manhã, num bebé
e serve-o para o pequeno-almoço
com pão frito.
E a morte olha despreocupada
e limpa a sujidade que tem debaixo das unhas.

O homem é maldade,
digo em voz alta.
O homem é uma flor
que poderia ser queimada,
digo em voz alta.
O homem
é um pássaro cheio de barro
digo em voz alta.

E a morte olha despreocupada
e arranha o ânus.

O homem, com seus pequenos e rosados dedos dos pés,
com seus dedos milagrosos
não é um templo
mas um anexo,
digo em voz alta.
Que o homem nunca mais levante sua chávena de chá.
Que o homem nunca mais escreva um livro.
Que o homem nunca mais calce um sapato.
Que o homem nunca mais eleve seus olhos
numa suave noite de junho.
Nunca. Nunca. Nunca. Nunca. Nunca.
Digo isto em voz alta.

E suplico ao Senhor que não ouça.

Versão dos poemas “When man enters woman”, “Words” e “After Auschwitz” de Anne Sexton (a partir de uma tradução espanhola e do original) por ASM

segunda-feira, fevereiro 16, 2009

WORLD PRESS PHOTO 2008: EM BUSCA DA CRISE

O fotografo norte-americano Anthony Suau venceu o prémio de melhor fotografia de 2008 do World Press Photo. A imagem mostra um polícia a revistar uma casa abandonada no Ohio, EUA, e faz parte de um trabalho publicado apenas no site da revista Time, em Março do ano passado, sobre a crise económica nos Estados Unidos. O fotografo está há dois meses sem trabalho...

sábado, fevereiro 07, 2009

JOSÉ AMARO DIONÍSIO


FINAL

Sente o coração bater contra o rio onde o rio já não existe. Que pode fazer um homem que desloca a fronteira nos seus passos? São sons que provocam corredores sem saída, e batem no ar, e roem, e voltam para trás, e recomeçam, e por cima há um odor a cadáver no céu em ruínas. Sim, nem de outrora um pouco de vida. É um esplendor de luto, ponto final. E isso paga-se todos os dias, mesmo quando o dia todo se gasta a fugir disso. No caminho taberna a taberna há sempre uma toalha ferida pelo exílio, e a proximidade das vozes só serve para esconder a manhã inútil. Quanto à literatura, francamente, o cheiro da montra não vale esta bifana em Vendas Novas. Acham pouco? Peçam duas.


Fonte do Sol, Outubro de 2007




José Amaro Dionísio, Nada Serve, Averno, 2008, p. 25