sábado, junho 27, 2009

BIG BROTHER, 9: GESTÃO DA IRRITAÇÃO. O big brother está a chegar. O que fazer acerca disto?


O trompete da tecnologia nem sempre anuncia uma alvorada brilhante. A nossa alimentada pela tecnologia já acarreta sempre alguns " indesejáveis". Agora imagine um mundo no qual cada recém-nascido tem imediatamente uma pequena cápsula implantada debaixo do sovaco. Dentro dela há monitores, pequenas quantidades de hormonas, um transmissor sem fios e um receptor. O dispositivo é alimentado por uma bateria semelhante à que está dentro do seu relógio. A substituição cirúrgica da cápsula a cada cinco anos é obrigatória, rigorosamente imposta e, porque é muito barata, paga pelo Estado.
Desde o nascimento, nenhum momento na vida de uma pessoa deixará de ser monitorizado. A cada esquina da rua, à entrada de cada casa,telvez até dentro de cada quarto e debaixo da cama, existirá uma caixa de metal, à prova de violações e suficientemente sólida para prevenir roubos. Cada caixa conterá um receptor e um transmissor ligado a um computador central. Cada vez que uma pessoa passa perto da caixa, um relatório electrónico será enviado. As coisas passar-se-ão mais ou menos da forma seguinte: "O nível da hormona da irritação transportada na corrente sanguínea do Nº. KJ-090679883 está um pouco elevado. Injectar 21 miligramas do antídoto correspondente na sua corrente sanguínea para prevenir que ele se torne violento".
Tudo isto será feito automaticamente numa questão de segundos. Ao mesmo tempo, um registo de acontecimentos será enviado para a sede central. Aí, médicos de batas brancas estarão atarefados à procura de métodos melhores de impedir o resto da população de fazer mal aos outros, a si próprios e ao ambiente.
Muitos dos elementos de tal sistema, como os tratamentos de hormonas que impedem os violadores de repetirem os seus crimes e "antidepressivos" capazes de tornarem as pessoas em zombies, já existem. E com todo o tipo de crimes a aumentar à medida que o PIB cai, o resto deverá estar certamente disponível num futuro próximo. Tais métodos agradarão com certeza a autarcas que querem manter o crime sob controlo, a pacifistas que querem eliminar a guerra e a feministas que estão sempre a queixar-se das coisas más que os homens fazem às mulheres. A questão è: estamos nós preparados para pagar o preço?

Martin van Creveld, Foreign Policy (edição portuguesa), nº 10, Junho-Julho 2009, p.45

terça-feira, junho 09, 2009

DANIEL FARIA


Depois das queimadas as chuvas
Fazem as plantas vir à tona
Labaredas vegetais e vulcânicas
Verdes como o fogo
Rapidamente descem em crateras concisas
E seiva
E derramam o perfume como lava

E se quiséssemos queimar animais de grande porte
Eles não regressariam. Mas a morte
Das plantas é a sua infância
Nova. Os caules levantam-se
Cheios de crias recentes

Também os corações dos homens ardem
Bebem vinho, leite e água e não apagam
O amor


Daniel Faria, Explicação das Árvores e de Outros Animais, Fundação Manuel Leão, 2ª ed., 2002, p.7

sábado, junho 06, 2009

PIERRE-JOSEPH PROUDHON


Ser governado significa ser observado, inspecionado, espionado, dirigido, legislado, regulamentado, cercado, doutrinado, admoestado, controlado, avaliado, censurado, comandado; e por criaturas que para isso não tem o direito, nem a sabedoria, nem a virtude... Ser governado significa que todo o movimento, operação ou transação que realizamos é anotada, registrada, catalogado em censos, taxada, selada, avaliada monetariamente, patenteada, licenciada, autorizada, recomendada ou desaconselhada, frustrada, reformada, endireitada, corrigida. Submeter-se ao governo significa consentir em ser tributado, treinado, redimido, explorado, monopolizado, extorquido, pressionado, mistificado, roubado; tudo isso em nome da utilidade pública e do bem comum. Então, ao primeiro sinal de resistência, à primeira palavra de protesto, somos reprimidos, multados, desprezados, humilhados, perseguidos, empurrados, espancados, garroteados, aprisionados, fuzilados, metralhados, julgados, sentenciados, deportados, sacrificados, vendidos, traídos e, para completar, ridicularizados, escarnecidos, ultrajados e desonrados. Isso é o governo, essa é a sua justiça e sua moralidade! ... Oh personalidade humana! Como pudeste te curvar à tamanha sujeição durante sessenta séculos?

(Retrato de Proudhon por Gustave Courbet)

segunda-feira, maio 25, 2009

José Mário Silva


méxico 86

Erecções inoportunas,
bigodinho ridículo,
poluções nocturnas,
tropeços, tristeza,
tantos embaraços.
O corpo crescia, brusco
desatinado dos ossos, difícil
de encaixar na harmonia
do mundo. Enquanto
isso, um relâmpago
azul atravessava,
em ziguezague,
o longínquo relvado
do estádio AZteca.
*
formiga

«Pai, anda cá», diz a minha filha.
Pela parede branca sobe uma formiga,
minúscula, muito lenta, obstinada.
A minha filha encolhe o corpo
pequenino para olhar. Não sei se é
a primeira vez que vê uma formiga;
mas é, parece-me, a primeira vez
que se apercebe da enorme diferença
de escala que a separa do insecto.
A minha filha acompanha a subida
heróica da formiga pela parede
branca, vira-se para mim, sorri.
É nesse espaço subitamente tenso,
criado entre a alegria infantil da
descoberta e o esforço irracional
da formiga, que nasce o poema,
mesmo se eu já desisti dele para
limpar o ranho que a minha filha,
absorta, deixou chegar até à boca.

José Mário Silva, Luz Indecisa, Oceanos, 2009. Poemas retirados das páginas 23 e 41, respectivamente.
José Mário Silva nasce em 1972, em Paris. Licenciado em Biologia é jornalista, coordenador da secção Livros do Expresso e colunista da revista Ler. Mantém ainda o blogue sobre livros Bibliotecário de Babel. Publicou os livros de poesia Nuvens & Labirintos (Gótica, 2001) e Luz Indecisa (Oceanos, 2009), além do livro de narrativas curtas Efeito Borboleta e outras histórias (Oficina do Livro, 2008).

domingo, maio 24, 2009

VICTOR BRAUNER E LUIZA NETO JORGE













UM QUADRO DE BRAUNER

Brauner põe-se a pintar
a procura o fundo apego
do homem à pele do medo

Desfaz as linhas do corpo
como se linhas da mão
dá ao sexo o lugar
que dá à flor

Brauner pinta com a língua
ou outro orgão do amor
o que o braço não podia

tanto é a cor mais dura
com o peso da sabedoria

Mostar um pássaro na mão
é o que Brauner consegue
mas tão somente essa mão
pica no pássaro que a fere

Mostar o orifício oco
da orelha colocada
no lado onde a sentimos
ouvir e morrer calada
sobre o veneno do bico
tentando beijá-lo abri-lo
tentando ouvi-lo escutá-lo

O ser que pode ser
aquilo que Brauner não quer ser
move-se na tela com o medo

de quem perdeu a sombra
num deserto ao meio-dia
uma claustrofobia
do espírito dentro da luz

Luiza Neto Jorge, Poesia, Assírio & Alvim, 1993, pp. 82-83

sábado, maio 09, 2009

I É JORNAL


Numa altura em que os jornais em papel começam a anunciar o seu fim, criar um novo título é uma enorme ousadia. Essa ousadia partiu do grupo sojormedia ao criar o “i”, o diário que foi lançado na passada quinta-feira, dirigido por Martim Avilez Figueiredo. Com um formato menor que os tablóides e agrafado, o “i” inspira-se no modelo do jornal conservador espanhol ABC, e tal como este perece ser um jornal de direita, embora com alguns problemas em afirmar-se como tal. Do ponto de vista gráfico, e de conteúdo aproxima-se de uma revista, ou melhor, de um suplemento como o P2 do Público – e será talvez com o jornal da Sonae que o “i” terá de se confrontar numa guerra que pode decidir a sobrevivência de um ou outro. Porque é duvidoso que o mercado português esteja receptivo a mais um jornal de referência (se se pode considerar o actual Diário de Notícias um jornal de referência).
O que trouxe de novo o “i”? Nos três números já publicados é visível a pretensão de ter uma agenda própria, algo que faltava à imprensa e jornalismo português, muito marcado pelas mesmas notícias repetidas na rádio, nos telejornais e nos jornais. O já referido formato; a vontade por ter exclusivos. O “i” poderia ser um novo Independente, em formato diário (o director e uma subdirectora foram jornalistas do Independente) mas embora se situe num campo político próximo falta-lhe a criatividade de um MEC nos anos oitenta e a qualidade dos colaboradores.O resultado acaba por ser positivo, mas esperava mais. Esperava, sobretudo, para alguém que tem a ousadia de criar um novo jornal diário uma maior preocupação com o lado estético (o que inclui a escrita), colunistas de maior qualidade (esperava pessoas vindas de blogues), uma redacção com nomes mais conhecidos, e um maior destaque para a cultura.

segunda-feira, abril 27, 2009

BIG BROTHER, 8


PODE HAVER UMA DERIVA TOTALITÁRIA EM PORTUGAL?


O que me preocupa não é nenhum dos cenários clássicos das ditaduras do passado, mas sim a deriva autoritária no presente, porque, pela sua inconsciência, desleixo e, nalguns casos, ideias muito erradas sobre a democracia, não possam estar a preparar um mundo que será o ideal para exercer o poder como "mando". Se aparecer alguém que queira "mandar" mais do que deve tem à sua disposição muitos instrumentos que, em plena democracia, lhes estamos a preparar.

(...)

Mas não é apenas a conjuntura, muito dependente das vicissitudes do Primeiro-ministro, é também a estrutura de um estado que está a coleccionar leis e práticas muito pouco democráticas, com pretexto na segurança, no combate à fuga ao fisco, no reforço unilateral dos direitos do estado em detrimento dos direitos dos cidadãos, na rarefacção dos lugares onde o indivíduo é livre sem ser controlado electronicamente em todos os seus actos. Eu nem quero imaginar o que pode fazer uma variante de uma PIDE moderna com os instrumentos e as bases de dados a que pode aceder no estado, desde a do ADN, à da Via Verde, ao Cartão do Cidadão e os seus "números" interligados, com as escutas e procuras na Internet e nos telemóveis, às câmaras de videovigilância que proliferam por todo o lado, etc., etc. De manhã à noite, todo o meu percurso, o dinheiro que gasto, os livros que compro, onde almoço e com quantas pessoas, se passo pela Rua do Carmo, se entro no Sheraton ou se vou a um bar de alterne, que palavras procuro no Google, os bilhetes de avião ou comboio, tudo, tudo, tudo pode hoje ser procurado, sistematizado, devassado. Com o modo como o PS quer acabar com o sigilo bancário, com o crescente fim do ónus da prova pelo estado no fisco e agora em tudo o resto, estamos a construir uma sociedade vigiada e controlada, sempre pelas melhores e mais "eficazes" razões, mas que é um maná para quem começar a abusar da lei.
E mais: se houver uma deriva totalitária ela começará por aí, pela utilização destes novos instrumentos instalados por governantes yuppies sem respeito pelas liberdades, e para quem a palavra "indivíduo" é um anátema e o estado um dogma racional. Todas as comissões reguladoras, todas as "entidades", todas as múltiplas instâncias que nos deviam "proteger" da violação dos nossos dados, defendendo a nossa privacidade, acabarão por ser controladas pelo melhor método, pela escolha das pessoas certas para os lugares certos, pela crescente aprovação de leis que as tornam ineficazes, pela redução ao quixotesco, arcaico e pouco moderno dessas preocupações antiquadas com a liberdade contra a eficácia e comodismo das novas tecnologias.
Neste 25 de Abril preocupa-me estarmos a construir a perfeita sociedade totalitária em plena democracia. A preparar o órgão, a polir a função. Só falta haver alguém que o queira usar, que tem tudo preparado. Por nós.



José Pacheco Pereira, in Público de 25-04-09 e Abrupto, selecção e sublinhados meus.

sábado, abril 25, 2009

A LIBERDADE NÃO ESTÁ A PASSAR POR AQUI


Quando se fala de liberdade como algo plenamente atingido, algo vai mal no nosso reino. Está-se a escamotear que a liberdade política (e estou tão só a falar da liberdade política, porque a liberdade em sentido lato é impossível de alcançar) é algo que se constrói no dia-a-dia, algo que ameaça subitamente desaparecer perante novos poderes. Existe um discurso político estúpido que dá a liberdade política como algo de completamente adquirido e a censura como algo que acabou com o 25 de Abril. Nada mais errado. Na verdade existem sectores da sociedade portuguesa que nunca foram abalados pela revolução; outros adaptaram-se à democracia espectacular.
Os magistrados são um dos poucos sectores da sociedade portuguesa que se mantêm tão fascista quanto eram antes de 25 de Abril. Alguns acontecimentos, bastante mediatizados, ocorridos nos últimos anos dão-nos a prova disso. No caso Casa Pia, assistiu-se ao linchamento público de alguns membros do Partido Socialista; à prisão preventiva de pessoas que, ou já foram declaradas inocentes, ou ainda aguardam o final do julgamento. Mas o caso Casa Pia veio apenas mostrar como era a justiça portuguesa, como era tão fácil acusar e colocar na cadeia qualquer pessoa. E mesmo depois da revisão do Código do Processo Penal, motivada talvez pelo caso Casa Pia, continua a ser bastante fácil para os magistrados (juízes e Ministério Público) restringir a liberdade de pessoas por simples calúnias. Tudo se passa num sistema paralelo, fortemente corporativo e sedento de um poder que não tem – o poder político. É um sistema onde predomina a mediocridade, a estupidez, a ignorância (qual é a formação dos nossos magistrados? O que é necessário para se ser juiz ou delegado do ministério público? Que formação em Ética, por exemplo, têm estes doutores e doutoras?), a insensibilidade, a ausência de reflexão sobre o sistema judicial, que termina num lugar gerador por excelência de crime: a prisão. A sociedade apenas pede justiça, não quer saber como ela é aplicada, que crimes se cometem nas prisões. É claro que sem o sentimento de segurança não há liberdade – liberdade, por exemplo, de circular na rua à noite. Mas essa é uma questão a que os magistrados estão a leste.
O que importa a determinados magistrados vai para além da sua carreira, de acusar, de vencer processos, por vezes de forma promíscua pelas relações que existem entre Ministério Público e juízes. O que importa a determinados magistrados é alargar o seu campo de acção, fazer da justiça um terreno de salvação de lutas políticas perdidas. Um caso concreto: Maria José Morgado. Esta ex militante maoista dedica-se agora a perseguir corruptos especialmente no futebol. O futebol cheira a um mundo mafioso, de facto. Mas Maria José Morgado, na sua ânsia contra os corruptos, no seu protagonismo, faz demasiado lembrar a sede de sangue que a ex dirigente do PCTP-MRPP teria numa chamada democracia popular como a China.
Outro caso concreto: Cândida de Almeida. A procuradora do DCIAP tornou-se na responsável por um processo demasiado quente: o Freeport. Foi ela quem foi buscar o processo que envolve, ainda que indirectamente, o nome de Sócrates. Ou seja, e se não estou errado, existindo este processo há mais de quatro anos, porque razão Cândida de Almeida o foi “desenterrar” agora, nas vésperas de eleições? Porque o não fez antes? A batata parece quente demais para a procuradora que, arrependida, faz agora a defesa do Primeiro-Ministro. Não podia estar calada? Creio que Cândida de Almeida tem a ilusão que consegue estar acima do Presidente da República: enquanto defender Sócrates, ela está a segurar o governo, se deixar de defender o PM está a demitir o governo.

segunda-feira, abril 20, 2009

J. G. BALLARD (1930-2009)


De J. G. Ballard lembro-me de um documentário transmitido pela RTP-2 onde era visível a denúncia do mundo de betão das cidades dormitórios – um mundo desertificado que Ballard combateu através da sua obra. Não foi só um escritor de ficção científica, mas talvez tenha sido dos escritores de FC que mais notoriedade teve, mercê das adaptações das suas obras literárias ao cinema. Pensar o mundo de hoje implica estar atento ao que a ficção científica nos tem legado, e por isso a obra de Ballard é uma obra para ser pensada. Mas, ao mesmo tempo uma obra para ser usufruída, entre o apocalipse e a utopia.
Do livro As Vozes do Tempo (editado pela Caminho, em 1992, numa saudosa colecção que misturava ficção cientifica e policial) fica aqui o primeiro parágrafo do conto “O jardim do tempo”:
Ao cair da noite, quando a imponente sombra da Villa Palladin cobria o terraço, o conde Axel abandonou a biblioteca e desceu, por entre as flores do tempo, a larga escadaria rococó. A figura alta, imperiosa, com um paletó de veludo preto, um alfinete de gravata em ouro, cintinlando por debaixo da barba estilo George V, e uma bengala firmemente segura na mão de luva branca, observava indiferente as delicadas flores cristalinas. Da sala de música, enquanto a mulher tocava um rondó de Mozart, ouvia-se o som do cravo que ecoava e vibrava nas pétalas translúcidas.

domingo, abril 05, 2009

ANTÓNIO RAMOS ROSA


O GRITO CLARO

De escadas insubmissas
de fechaduras alerta
de chaves submersas
e roucos subterrâneos
onde a esperança enlouqueceu
de notas dissonantes
dum grito de loucura
de toda a matéria escura
sufocada e contraída
nasce o grito claro

António Ramos Rosa, Antologia Poética, D. Quixote, 2001, p.41