quinta-feira, julho 23, 2009

A VIDA DA DROGA, A DROGA DA VIDA


Nos EUA parece adquirido que o actual modelo de combate à droga falhou. Ou seja, o modelo repressivo não só para os traficantes como para os consumidores. Ao mesmo tempo o vizinho México, com os cartéis da droga, faz enriquecer um tal Joaquin Guzmán Loera a ponto deste se tornar num dos multimilionários que consta da lista da revista Forbes de pessoas mais ricas no mundo. Ora, todo este dinheiro, permite ter um exército de 100 mil homens (vd. Moisés Naím, Foreign Policy, Junho-Julho, ed. Portuguesa, pp. 89-90). É visível, a partir destes dados, como determinados países se tornam narco-estados, em que a sua economia e modo de vida das populações gira à volta da droga. É assim no México mas também no Afeganistão, na Bolívia ou na Guiné-Bissau.
Alguns países, pouco dados ao respeito dos direitos humanos, condenam os traficantes de droga à pena de morte e os consumidores a duras penas. Em Portugal, descriminalizou-se o consumo de drogas, um passo certo contra a estupidez que condenava alguém pelas substâncias que ingeria. Mas parece que só agora, países como os EUA estão a verificar que essa é a medida certa. Aliás, como se pode entender que um país tão defensor das liberdades individuais, que permite a todos os cidadãos o uso de arma, possa criminalizar alguém pelo consumo de uma determinada substância? A Lei Seca, que vigorou em meados da primeira metade do século XX nos EUA, e proibia o consumo de álcool, serve para vermos o quão erradas são as políticas proibicionistas.
Quem tomar um antidepressivo (por exemplo), uma “droga” legal que cada vez mais pessoas consomem, poderá ter problemas se quiser abandonar esse medicamento. Poderá sentir efeitos de privação, que embora em menor grau, se assemelham aos efeitos de privação de uma droga ilegal. A experiência de privação de uma droga legal (antidepressivo ou benzodiazepina, por exemplo) serve para que quem a sente se possa aproximar da experiência de privação de uma droga ilegal, mais forte e portanto a sua privação, em princípio, mais intensa.
Torna-se, portanto, evidente que os “drogados” são doentes, no sentido em que estão dependentes de uma substância cuja privação provoca sofrimento. E é como doentes que devem ser tratados e não como criminosos. Compreender isso é essencial para resolver o problema da toxicodependência quer a nível das famílias quer a nível de políticas estatais. Combater o narcotráfico passa, portanto, por uma outra compreensão do fenómeno que deixe de anatematizar o toxicodependente.

terça-feira, julho 21, 2009

DEMOCRACIA


Os regimes totalitários que espalharam o terror pelo mundo durante o século XX, praticamente desapareceram. Quando digo regimes totalitários, estou a referir-me às ideologias nazi, fascista e comunista. Esses regimes foram responsáveis (e ainda são no caso de países como a Coreia do Norte ou China) por milhões de mortes. No entanto, tem sido feita uma distinção entre regimes fascistas e comunistas. Os primeiros representam o mal absoluto, os segundos foram o resultado de “erros” e perversões de ideais de fraternidade e igualdade. Talvez. Mas o resultado final foram milhões de mortos, perseguidos, pessoas despojadas da sua liberdade. Devemos por isso proibir partidos de ideologia comunista? Creio que não, seria um erro. Mas também não devemos proibir partidos de ideologia fascistas (devemos sim proibir organização que fomentem a violência). A democracia vai buscar a sua autoridade ao facto de admitir partidos e movimentos que têm uma ideologia não democrática. É uma atitude que a torna frágil perante formas ideológicas que a pretendem aniquilar, mas robusta na sua essência de pluralismo. Dito isto, importa ressalvar que seria bom para a convivência democrática que partidos como o PCP fossem claros em demarcar-se do seu passado negro, ou seja, das ligações aos vários partidos comunistas que na Europa de leste espalharam o terror. Do mesmo modo o PCP deveria condenar esses regimes e outros, como a actual Coreia do Norte.
É claro que no cenário político português partidos de ideologia comunista ou fascista não têm hipótese de chegar ao poder. Mas isso basta para nos afastar de um regime totalitário? Creio que não. A ameaça às liberdades individuais está onde menos se espera, nos partidos do centro que têm governado. Não porque exista um plano para tornar Portugal numa ditadura por parte do PS ou PSD, mas porque estes partidos vão autorizando ou promovendo certos mecanismos de controlo, ou de potencial controlo, sobre os cidadãos. Um exemplo disso é o Cartão do Cidadão, criado pelo governo de Sócrates. É em pequenas coisas que aparentemente servem para facilitar a vida das pessoas que começam a aparecer, de forma embrionária, ameaças à liberdade dos indivíduos. É contra essas ameaças – as já existentes e as que se perspectivam – que se torna urgente que a sociedade se oponha. O que está em risco é o futuro da democracia, a nossa liberdade.

segunda-feira, julho 06, 2009

EUGÉNIO DE CASTRO


PELAS LANDES, À NOITE

Pelas landes e pelas dunas
Andam os magros como pregos,
Os lobos magros como pregos,
Pelas landes e pelas dunas.

Olhos de fósforo, esfaimados,
Numa pavorosa alcateia,
Andam, andam buscando ceia,
Olhos de fósforo, esfaimados.

Nas landes grandes, junto às dunas,
Um menino perdido anda,
Anda perdido, a chorar anda,
Nas landes, junto às brunas dunas,

Senhor Deus de Misericórdia,
Protegei o róseo menino,
Protegei o róseo menino,
Senhor Deus de misericórdia,

Porque nas landes e nas dunas
Andam os magros como pregos,
Os lobos magros como pregos,
Nas grandes landes e nas dunas.

quinta-feira, julho 02, 2009

STAND UP COMEDY



Há sempre alguém com queda para o humor. Portugal não é um país triste, é um país de tristes, de bobos. Manuel Pinho revelou-se como um comediante nato. Mas é pena que tenha saído do governo – numa estação de televisão não vai funcionar tão bem. De qualquer forma Pinho tem que ser colocado como o grande humorista nacional, que projectou o nome de Portugal além fronteiras (os cornos de Pinho fazem capa no El País de hoje). Mas Manuel Pinho não está sozinho, quero dizer: não actua sozinho. Sem a colaboração das bancadas do PCP e do Bloco de Esquerda, sem as suas preciosas deixas, Pinho não era capaz de efectuar o cume do político-humorismo nacional. Aliás os dois partidos acabaram a reivindicar os cornos. Gatos fedorentos, Brunos Nogueiras? Quem são esses perante a grandeza humorística de Pinho?

sábado, junho 27, 2009

BIG BROTHER, 9: GESTÃO DA IRRITAÇÃO. O big brother está a chegar. O que fazer acerca disto?


O trompete da tecnologia nem sempre anuncia uma alvorada brilhante. A nossa alimentada pela tecnologia já acarreta sempre alguns " indesejáveis". Agora imagine um mundo no qual cada recém-nascido tem imediatamente uma pequena cápsula implantada debaixo do sovaco. Dentro dela há monitores, pequenas quantidades de hormonas, um transmissor sem fios e um receptor. O dispositivo é alimentado por uma bateria semelhante à que está dentro do seu relógio. A substituição cirúrgica da cápsula a cada cinco anos é obrigatória, rigorosamente imposta e, porque é muito barata, paga pelo Estado.
Desde o nascimento, nenhum momento na vida de uma pessoa deixará de ser monitorizado. A cada esquina da rua, à entrada de cada casa,telvez até dentro de cada quarto e debaixo da cama, existirá uma caixa de metal, à prova de violações e suficientemente sólida para prevenir roubos. Cada caixa conterá um receptor e um transmissor ligado a um computador central. Cada vez que uma pessoa passa perto da caixa, um relatório electrónico será enviado. As coisas passar-se-ão mais ou menos da forma seguinte: "O nível da hormona da irritação transportada na corrente sanguínea do Nº. KJ-090679883 está um pouco elevado. Injectar 21 miligramas do antídoto correspondente na sua corrente sanguínea para prevenir que ele se torne violento".
Tudo isto será feito automaticamente numa questão de segundos. Ao mesmo tempo, um registo de acontecimentos será enviado para a sede central. Aí, médicos de batas brancas estarão atarefados à procura de métodos melhores de impedir o resto da população de fazer mal aos outros, a si próprios e ao ambiente.
Muitos dos elementos de tal sistema, como os tratamentos de hormonas que impedem os violadores de repetirem os seus crimes e "antidepressivos" capazes de tornarem as pessoas em zombies, já existem. E com todo o tipo de crimes a aumentar à medida que o PIB cai, o resto deverá estar certamente disponível num futuro próximo. Tais métodos agradarão com certeza a autarcas que querem manter o crime sob controlo, a pacifistas que querem eliminar a guerra e a feministas que estão sempre a queixar-se das coisas más que os homens fazem às mulheres. A questão è: estamos nós preparados para pagar o preço?

Martin van Creveld, Foreign Policy (edição portuguesa), nº 10, Junho-Julho 2009, p.45

terça-feira, junho 09, 2009

DANIEL FARIA


Depois das queimadas as chuvas
Fazem as plantas vir à tona
Labaredas vegetais e vulcânicas
Verdes como o fogo
Rapidamente descem em crateras concisas
E seiva
E derramam o perfume como lava

E se quiséssemos queimar animais de grande porte
Eles não regressariam. Mas a morte
Das plantas é a sua infância
Nova. Os caules levantam-se
Cheios de crias recentes

Também os corações dos homens ardem
Bebem vinho, leite e água e não apagam
O amor


Daniel Faria, Explicação das Árvores e de Outros Animais, Fundação Manuel Leão, 2ª ed., 2002, p.7

sábado, junho 06, 2009

PIERRE-JOSEPH PROUDHON


Ser governado significa ser observado, inspecionado, espionado, dirigido, legislado, regulamentado, cercado, doutrinado, admoestado, controlado, avaliado, censurado, comandado; e por criaturas que para isso não tem o direito, nem a sabedoria, nem a virtude... Ser governado significa que todo o movimento, operação ou transação que realizamos é anotada, registrada, catalogado em censos, taxada, selada, avaliada monetariamente, patenteada, licenciada, autorizada, recomendada ou desaconselhada, frustrada, reformada, endireitada, corrigida. Submeter-se ao governo significa consentir em ser tributado, treinado, redimido, explorado, monopolizado, extorquido, pressionado, mistificado, roubado; tudo isso em nome da utilidade pública e do bem comum. Então, ao primeiro sinal de resistência, à primeira palavra de protesto, somos reprimidos, multados, desprezados, humilhados, perseguidos, empurrados, espancados, garroteados, aprisionados, fuzilados, metralhados, julgados, sentenciados, deportados, sacrificados, vendidos, traídos e, para completar, ridicularizados, escarnecidos, ultrajados e desonrados. Isso é o governo, essa é a sua justiça e sua moralidade! ... Oh personalidade humana! Como pudeste te curvar à tamanha sujeição durante sessenta séculos?

(Retrato de Proudhon por Gustave Courbet)

segunda-feira, maio 25, 2009

José Mário Silva


méxico 86

Erecções inoportunas,
bigodinho ridículo,
poluções nocturnas,
tropeços, tristeza,
tantos embaraços.
O corpo crescia, brusco
desatinado dos ossos, difícil
de encaixar na harmonia
do mundo. Enquanto
isso, um relâmpago
azul atravessava,
em ziguezague,
o longínquo relvado
do estádio AZteca.
*
formiga

«Pai, anda cá», diz a minha filha.
Pela parede branca sobe uma formiga,
minúscula, muito lenta, obstinada.
A minha filha encolhe o corpo
pequenino para olhar. Não sei se é
a primeira vez que vê uma formiga;
mas é, parece-me, a primeira vez
que se apercebe da enorme diferença
de escala que a separa do insecto.
A minha filha acompanha a subida
heróica da formiga pela parede
branca, vira-se para mim, sorri.
É nesse espaço subitamente tenso,
criado entre a alegria infantil da
descoberta e o esforço irracional
da formiga, que nasce o poema,
mesmo se eu já desisti dele para
limpar o ranho que a minha filha,
absorta, deixou chegar até à boca.

José Mário Silva, Luz Indecisa, Oceanos, 2009. Poemas retirados das páginas 23 e 41, respectivamente.
José Mário Silva nasce em 1972, em Paris. Licenciado em Biologia é jornalista, coordenador da secção Livros do Expresso e colunista da revista Ler. Mantém ainda o blogue sobre livros Bibliotecário de Babel. Publicou os livros de poesia Nuvens & Labirintos (Gótica, 2001) e Luz Indecisa (Oceanos, 2009), além do livro de narrativas curtas Efeito Borboleta e outras histórias (Oficina do Livro, 2008).

domingo, maio 24, 2009

VICTOR BRAUNER E LUIZA NETO JORGE













UM QUADRO DE BRAUNER

Brauner põe-se a pintar
a procura o fundo apego
do homem à pele do medo

Desfaz as linhas do corpo
como se linhas da mão
dá ao sexo o lugar
que dá à flor

Brauner pinta com a língua
ou outro orgão do amor
o que o braço não podia

tanto é a cor mais dura
com o peso da sabedoria

Mostar um pássaro na mão
é o que Brauner consegue
mas tão somente essa mão
pica no pássaro que a fere

Mostar o orifício oco
da orelha colocada
no lado onde a sentimos
ouvir e morrer calada
sobre o veneno do bico
tentando beijá-lo abri-lo
tentando ouvi-lo escutá-lo

O ser que pode ser
aquilo que Brauner não quer ser
move-se na tela com o medo

de quem perdeu a sombra
num deserto ao meio-dia
uma claustrofobia
do espírito dentro da luz

Luiza Neto Jorge, Poesia, Assírio & Alvim, 1993, pp. 82-83

sábado, maio 09, 2009

I É JORNAL


Numa altura em que os jornais em papel começam a anunciar o seu fim, criar um novo título é uma enorme ousadia. Essa ousadia partiu do grupo sojormedia ao criar o “i”, o diário que foi lançado na passada quinta-feira, dirigido por Martim Avilez Figueiredo. Com um formato menor que os tablóides e agrafado, o “i” inspira-se no modelo do jornal conservador espanhol ABC, e tal como este perece ser um jornal de direita, embora com alguns problemas em afirmar-se como tal. Do ponto de vista gráfico, e de conteúdo aproxima-se de uma revista, ou melhor, de um suplemento como o P2 do Público – e será talvez com o jornal da Sonae que o “i” terá de se confrontar numa guerra que pode decidir a sobrevivência de um ou outro. Porque é duvidoso que o mercado português esteja receptivo a mais um jornal de referência (se se pode considerar o actual Diário de Notícias um jornal de referência).
O que trouxe de novo o “i”? Nos três números já publicados é visível a pretensão de ter uma agenda própria, algo que faltava à imprensa e jornalismo português, muito marcado pelas mesmas notícias repetidas na rádio, nos telejornais e nos jornais. O já referido formato; a vontade por ter exclusivos. O “i” poderia ser um novo Independente, em formato diário (o director e uma subdirectora foram jornalistas do Independente) mas embora se situe num campo político próximo falta-lhe a criatividade de um MEC nos anos oitenta e a qualidade dos colaboradores.O resultado acaba por ser positivo, mas esperava mais. Esperava, sobretudo, para alguém que tem a ousadia de criar um novo jornal diário uma maior preocupação com o lado estético (o que inclui a escrita), colunistas de maior qualidade (esperava pessoas vindas de blogues), uma redacção com nomes mais conhecidos, e um maior destaque para a cultura.