quinta-feira, janeiro 14, 2010

CLARICE LISPECTOR


É curioso como não sei dizer quem sou. Quer dizer, sei-o bem, mas não posso dizer. Sobretudo tenho medo de dizer, porque no momento em que tento falar não só não exprimo o que sinto como o que sinto se transforma lentamente no que eu digo. Ou pelo menos o que me faz agir não é o que eu sinto mas o que eu digo. (16)

O que se consegue quando se fica feliz? (25)

Olhou-os. Sua tia brincava com uma casa, uma cozinheira, um marido, uma filha casada, visitas. O tio brincava com trabalho, com uma fazenda, com jogo de xadrez, com jornais. Joana procurou analisá-los, sentindo que assim os destruiria. (p.57)

O que importa afinal: viver ou saber que se está vivendo? (63)

Liberdade é pouco. O que desejo ainda não tem nome. (64)

Música pura desenvolvendo-se numa terra sem homens (...) (77)

O amor veio afirmar todas as coisas velhas de cuja existência apenas sabia sem nunca ter aceito o sentido. O mundo rodava sob seus pés, havia dois sexos entre os humanos, um traço ligava a fome à saciedade, o amor dos animais, as águas das chuvas encaminhando-se para o mar, crianças eram seres a crescer, na terra o broto se tornaria planta. Não poderia mais negar... o quê?, perguntava-se suspensa. O centro luminoso das coisas, a afirmação dormindo em baixo de tudo, a harmonia existente sob o que não entendia. (90-91)

A beleza das palavras: natureza abstracta de Deus. É como ouvir Bach. (116-117)

E quando meu filho me toca não me rouba pensamento como os outros. Mas depois, quando eu lhe der leite com estes seios frágeis e bonitos, meu filho crescerá de minha força e me esmagará com sua vida. Ele se distanciará de mim e eu serei a velha mãe inútil. Não me sentirei burlada. Mas vencida apenas e direi: eu nada sei, posso parir um filho e nada sei. (148-149)

Clarice Lispector, excertos de Perto do Coração Selvagem (ed. original, 1944), Círculo de Leitores, 1988.

quinta-feira, janeiro 07, 2010

BIG BROTHER, 10 - PARANÓIA NOS AEROPORTOS


Depois de um argelino ter tentado fazer-se explodir dentro de um avião, no dia de Natal, o mundo entrou em paranóia. Será que os governos ocidentais não percebem que reacções como as de fazer passar os passageiros por scanners não só de nada servem para evitar atentados, como são uma forma de vitoriar os extremistas islâmicos? Lentamente, por causa de toscas tentativas de atentados terroristas, como a deste argelino, o mundo em que vivemos torna-se cada vez mais securitário, mais parecido com aquilo que os extremistas islâmicos querem que seja o nosso mundo - um mundo sem liberdade, onde as pessoas são constantemente controladas. Ora isso mostra que, como em algumas séries televisivas, são os nossos governantes os principais aliados do extremismo islâmico.

quinta-feira, dezembro 31, 2009

Renata Correia Botelho


as amoras caídas e os limos
subindo a encosta, este dia
mudo e a solidão

dos barcos que largam do porto
enquanto dormes

*
o gato espia do telhado
a vida a partir
em cada comboio que passa,

o tempo que se arrasta
na dor metálica dos carris.

é feriado nas mãos,
trago uma canção triste
e o teu rosto no bolso.

*
o vento agita as sombras
na minha mão, lança-me
vultos, um nome em chamas, versos
afiados contra os dedos.

sempre pressenti a distância mínima
entre o poema e o medo
de não saber regressar a casa.

*
já ninguém nos toca à porta
a vender cerejas.

devíamos talvez lembrar
à terra o nosso nome

plantar sílabas frescas
que nos matem a sede

ter um pingo de esperança
na morte depois da vida.

Renata Correia Botelho, poemas de Um Circo no Nevoeiro, Averno, 2009.


Renata Correia Botelho nasceu em 1977 em S. Miguel, Açores, filha do poeta Emanuel Jorge Botelho. Em 2001 publicou Avulsos, por causa (edição de autor, fora do mercado) e em 2009 Um Circo no Nevoeiro (Averno). Tem colaboração nas revistas Magma e Telhados de Vidro. A sua poesia (a avaliar pelo seu último livro), apresenta-se como uma renovação de um lirismo que tem andado arredado das novas poéticas.

sábado, dezembro 26, 2009

INÊS LOURENÇO


Possessio maris

para Adília Lopes


É tão banal no poema
saber dourar a cópula. Como, ao
amar, resistir à boa humilhação de
babélica virtuosamente
foder e ser fodido. Assim

tão cruamente seja dita
a bíblica prática do conhecimento
dos corpos livre de intertextos e
arredada da culpa e das pestes
racionais.

As almas sensíveis, minha amiga,
não acham sobre-humano nem
muito estético esse acto de achada
eficácia. Desdenham e enjoam
o látego terminal do gozo. Eternos
nautas em seco, aportam a doutos

ensaios e outras posições
elípticas, esquecidos do genitivo
de posse e das declinações trágico-marítimas
onde nunca ninguém possuiu
sem ser possuído.

Inês Lourenço, in Logros Consentidos, & etc, 2005, p. 18.

sábado, dezembro 12, 2009

Pedro Mexia


ELAS PASSAM

Elas passam, magras estudantes,
julgando-se felizes talvez,
passam e passam, as pernas e os dentes
mostram saúde e altivez

Os jeans ao atravessarem a nave
maior do centro comercial
estreitam a cintura suave
numa falsa aparência virginal.

Vê-las alegra e entristece,
o seu corpo é uma matéria mais pura,
e cada uma, como se soubesse,
mostra-se obstinada e segura.

Passam e passam, são toda uma tarde,
sentinela que em mim sente
esta palha seca que arde,
que às vezes engana, mas não mente.

Poder tê-las sem qualquer dano
e à sua alegre inconsciência,
misturando nos dedos a pele, o pano,
os ossos, a transparência.

A tarde fez-se a hora de regresso,
o coração sussura e quase cai
aos pés das raparigas a quem peço
«de novo, levantando-me, passai»

Pedro Mexia, in Poemas Portugueses - Antologia da Poesia Portuguesa do Séc. XIII ao Séc. XXI, Porto Editora, Porto, 2009, pp. 2095-2096 ( o poema é retirado do livro "Eliot e Outras Observações", 2003).

Pedro Mexia nasceu em Lisboa, em 1972. Antes de publicar o seu primeiro livro de poemas (Duplo Império, 1999, edição de autor), foi responsável por uma antologia de poesia que reunia poetas dos anos 80 e 90 - Antologia da Novíssima Poesia Portuguesa, Tomar, 1997. Nesta década publicou os livros de poesia Em Memória (2000), Avalanche (2001), Eliot e Outras Observações (2003), Vida Oculta (2004) e Senhor Fantasma (2007). É crítico literário e cronista do jornal Público, director interino da Cinemateca e participa num programa de debate na TSF (Governo Sombra). Publicou três volumes de crónicas, resultado da sua intensa actividade como Blogger. Em 2002 José Ricardo Nunes inclui PM nos volume 9 Poetas para o Século XXI.

sexta-feira, dezembro 04, 2009

FRANZ KAFKA


DIANTE DA LEI

Diante da lei encontra-se um guarda. Um homem do campo aproxima-se dele e pede para entrar na Lei. Mas o guarda diz-lhe que de momento não o pode deixar entrar. O homem pondera e depois pergunta se o deixarão entrar mais tarde. «É possível», responde o guarda, «mas não agora» O guarda afasta-se do portão, aberto como sempre, e dá um passo para o lado; o homem estica-se para espreitar lá para dentro. Ao vê-lo, o guarda ri-se e diz «Se te sentes assim tão atraído, tenta entrar, não obstante o meu veto. Mas presta atenção: eu sou forte. E sou apenas o menor dos guardas. De salão em salão encontram-se guardas cada vez mais fortes. O terceiro é tão terrível que nem eu consigo olhar para ele». O homem do campo não esperava tantas dificuldades: a lei, pensa ele, deveria certamente ser sempre acessível e a todos; mas ao examinar mais de perto o guarda, no seu casaco de peles, com seu nariz comprido e afilado, a barba negra à tártaro, decide que é melhor que o deixe entrar. O guarda dá-lhe um banco e deixa-o sentar-se de um dos lados da porta. Ali ele fica durante dias e anos. Faz várias tentativas para que o deixe entrar, e desgasta o guarda com a sua persistência. O guarda faz-lhe pequenos interrogatórios frequentes, com preguntas sobre a sua terra e muitas outras coisas, mas as perguntas são feitas com indiferença, como grandes senhores as fariam, e terminam sempre com a declaração de que ele ainda não pode entrar. O homem, que se proveu com todo o tipo de coisas para a sua viagem, sacrifica tudo o que tem, independemente do valor, para subornar o guarda. Este aceita tudo, mas sempre com o comentário: «Só aceito para que não penses que esqueceste qualquer coisa» Durante estes muitos anos, o homem observa o guarda constantemente. Esquece os outros guardas, e este primeiro parece-lhe o único obstáculo que o lhe impede o acesso à Lei. Nos últimos anos, ele amaldiçoa a sua falta de sorte, em alto e bom som; mais tarde, à medida que vai envelhecendo, limita-se a resmungar para consigo. Torna-se infantil e, como depois de tantos anos a observar o guarda até já lhe conhece as pulgas da gola do casaco, também àquelas ele suplica, para que o ajudem a fazer com que o guarda mude de ideias. Com o tempo, a sua visão começa a falhar e ele não sabe se o mundo está mesmo a ficar escuro ou se os seus olhos o enganam. No entanto, na sua escuridão está agora consciente do brilho que emana eternamente do portão da Lei. Agora já não lhe resta muito tempo de vida. Antes de morrer, todas as suas experiências durante aqueles longos anos reúnem-se-lhe dentro da cabeça numa só questão, uma pergunta que ele ainda não fez ao guarda. Então, faz-lhe sinal para que se aproxime, uma vez que já não consegue levantar o corpo hirto. O guarda tem de se baixar, pois a diferença de altura entre os dois alterou-se muito, com desvantagem para o homem do campo. «O que queres saber agora?» perguntou o guarda; «és insaciável». «Todos se esforçam para chegar à Lei», disse o homem, «então como é que durante todos estes anos ninguém, para além de mim, pediu para entrar?» O guarda reconhece que o homem atingiu o seu limite e, para que os seus sentidos débeis captem as palavras, grita-lhe ao ouvido: «Mais ninguém poderia entrar aqui, visto que o portão foi feito só para ti. Agora, vou fechá-lo»

"Diante da Lei" in O Abutre e outras Histórias de Franz Kafka, trad. de Noémia Ramos, Estrofes e Versos, pp.17-20

quinta-feira, novembro 19, 2009

POESIA COM VIDA


O nome de Gastão Cruz (GC), quer como poeta quer como crítico, está associado à poesia e poética dos anos 60. De facto, Gastão Cruz foi um dos poetas que participou na publicação colectiva Poesia 61 que em Maio de 1961 agrupou cinco poetas dos quais para além de GC se destacam Luiza Neto Jorge e Fiama Hasse Pais Brandão. Gastão Cruz tornou-se de certa forma no teórico e defensor de uma determinada poética dos anos 60, assim como Joaquim Manuel Magalhães aparece como o teórico de uma poética que emerge nos anos 70 em conflito com a poética de 60. Deste conflito, que hoje ainda perdura e se renova (veja-se por exemplo o papel desempenhado nesta década por Manuel de Freitas), dá eco este A Vida da Poesia, reunião dos textos críticos do autor de Rua de Portugal, publicados em jornais e revistas entre 1964 e 2008.
Depois das edições de A Poesia Portuguesa Hoje de 1973, a primeira, e de 1999, a segunda, este A Vida da Poesia (que vai buscar o título a um poema de Campânula, livro de 1978) funciona como uma terceira edição, bastante aumentada – em cerca de uma trintena de textos –, dos livros de 73 e 99. Ao longo das quatrocentas páginas deste volume Gastão Cruz insiste em poetas que considera fundamentais para o período pós-pessoano da poesia portuguesa. Carlos de Oliveira, Eugénio de Andrade, Sophia de Mello Breyner Andersen, António Ramos Rosa, Ruy Belo, Herberto Helder, Luiza Neto Jorge, Fiama Hasse Pais Brandão e Luís Miguel Nava figuram como os poetas a que Gastão Cruz dá mais atenção com vários ensaios sobre cada um deles. Mas também por aqui andam António Nobre, José Gomes Ferreira, Adolfo Casais Monteiro, Camões, Pessoa, Edmundo de Bettencourt, João José Cochofel, Sena, Cesariny, O’ Neil, David Mourão-Ferreira, Camilo Pessanha, Fernando Echevarría, João Rui de Sousa, Armando Silva Carvalho, Nuno Guimarães, Nuno Júdice, António Franco Alexandre, Luís Quintais ou ainda dois poetas brasileiros: Carlos Drummond de Andrade e Eucanaã Ferraz. Longa lista, por certo, mas que traça um mapa das influências e preferências de Gastão Cruz.
Esta Vida da Poesia dá-nos um panorama da poesia portuguesa desde os anos 40 até hoje (deixando de lado alguns importantes poetas dos anos 70), elogiando os poetas já citados mas também desferindo críticas na presença, no “voltar ao real” de Joaquim Manuel Magalhães ou nos “poetas sem qualidade” de Manuel de Freitas, ou ainda no jornalismo literário. Ao longo do livro encontramos citações quase obsessivas dos mesmos poemas, livros ou ensaios. E encontramos uma poética alicerçada fundamentalmente na palavra e na imagem. Alguns dos melhores textos deste livro, mais que ensaios são crónicas de encontros, como sucede com um texto sobre Luís Miguel Nava. Não se trata de um livro de ensaios com toda a ganga académica de citações e bibliografia, pelo contrário: na linha de outros livros de poetas sobre poesia, Gastão Cruz despoja-se de qualquer teoria. Aqui só têm lugar os poetas: os seus poemas e as suas leituras. Ou como escreve o autor: “Tentei, nestes textos, dizer alguma coisa sobre poetas que, com a sua auréola, iluminaram a minha existência. Não a tinham perdido, nem creio que a venham a perder: alguns leram-me a sua poesia, ou mostraram-ma, acabada de ser escrita – e, lembro-me bem, uma forte luz irradiava deles” (p. 12). Talvez nos tempos que vivemos, por várias razões, essa luz, essa auréola, se tenha apagado. Mas é a partir dessa luz que o lugar de Gastão Cruz na poesia portuguesa contemporânea, como crítico e poeta, assume um plano ético – quer se concorde ou não com a defesa que faz da sua poética.

Título: A Vida da Poesia – textos críticos reunidos (1964-2008)
Autor: Gastão Cruz
Editor: Assírio & Alvim
Data: Dezembro de 2008 (distribuído em Janeiro de 2009)
Páginas: 400

segunda-feira, novembro 09, 2009

O MURO


O espírito das putas que mandaram construir o muro, dessas bestas comunistas, ou social-fascistas, não terá encarnado nos que comemoram hoje a queda do muro? Como escapar, dizer que não se aprendeu a lição, acreditar que o homem não é o lobo do homem? Vinte anos depois, onde está a capacidade de revolta contra os novos muros in-visíveis? Onde está o puro desejo de liberdade, o acto político fundamental?

segunda-feira, novembro 02, 2009

ANTÓNIO SÉRGIO, MUTE


A voz forte e rouca entre as músicas calou-se. António Sérgio era um resistente da rádio, da rádio que tinha gente por trás, a rádio que escolhia o melhor para transmitir. Com António Sérgio ouvimos o luxo sonoro. Nos últimos tempos, depois de ser despedido da Rádio Comercial, tinha sido remetido para Radar, uma rádio que praticamente só transmite on-line. A rádio, "transmissão ao vivo", mergulha cada vez mais no lixo, na mediocridade de estúpidas playlists. Sérgio esteve sempre nos antipodas desta atitude, a divulgar o melhor da música alternativa.