sexta-feira, fevereiro 12, 2010

PITTA & MEXIA


Há uma velha ladainha que fala de quão pequeno é o meio literário nacional. Críticos, escritores, editores, professores universitários, todos se conhecem ou até acumulam várias destas funções. Acrescente-se a isto que só quem aparece existe, ou seja, só quem actualmente ocupa as cada vez mais reduzidas páginas de jornal que falam sobre livros, existe – como crítico literário, escritor ou noutra função. Alguns blogues também contam, mas apenas aqueles em que os seus autores também escrevem na imprensa. Face a isto torna-se fácil fazer o recenseamento de quem existe no meio literário português. Daí a velha ladainha proposta por velhos generais das letras que assim justificam (justificavam, porque muitos já desapareceram por motivos mais ou menos naturais) a sua perpetuação no meio.
Escrevo isto a propósito da interessante e promíscua história entre Eduardo Pitta e Pedro Mexia. Quarta-feira, 10, na Fnac do Chiado, Pedro Mexia apresentou o livro de Eduardo Pitta Aula de Poesia (Quetzal, 2010). Na mesa, para além de Mexia e Pitta estava o editor da Quetzal, Francisco José Viegas (que além de editor é também director da revista Ler, onde escrevem Pitta e Mexia). Está tudo bem documentado aqui, no blogue Da Literatura, que agora é domínio exclusivo de Pitta. Ora no livro Aula de Poesia, uma reunião de pequenas recensões sobre poesia publicadas na revista Ler e no Público, existe um texto sobre Pedro Mexia. Não seria esta uma razão suficiente para Pitta não convidar Mexia para a apresentação do seu livro, ou para Mexia declinar o convite? Não, não foi. Mas o mais estranho é que o suplemento ípsilon do Público de hoje publica a crítica de Mexia ao livro de Pitta (reproduzida no blogue de Pitta). No Público, no final do texto de Mexia, uma pequena nota informa o leitor que «Este texto foi lido por Pedro Mexia na apresentação de “Aula de Poesia”». Mexia deu três estrelas ao livro de Pitta, sendo crítico em relação a este, principalmente na forma como o autor de Comenda de Fogo aborda a geração de Mexia, sendo o próprio Mexia nela incluído. Dando uma no cravo, outra na ferradura, é interessante a forma como Mexia termina o seu texto: «A última nota vai para esse hábito essencial ao sarcasmo de Eduardo Pitta: a referência constante ao “mainstream”, à “crítica estabelecida”, ao “mandarinato” cultural. Pena não haver nomes. Além disso, fica a sensação de que para Pitta escrever na LER e no PÚBLICO não é fazer parte do “mainstream”». Pena não haver nomes? Serão necessários? Será que Mexia se esqueceu do seu? É que a mesa de apresentação de um livro pode ser um lugar tão promíscuo como uma cama para três. E já agora, para evitar esta promiscuidade, será que não há outra pessoa para escrever sobre poesia ou sobre ensaios sobre poesia, no Público, senão Pedro Mexia? Será tão difícil ao Público arranjar outro colaborador que escreva sobre poesia? Ou Mexia tem cátedra?

(foto respigada do Da Literatura)

terça-feira, fevereiro 09, 2010

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Quase 6500 pessoas já assinaram a petição TODOS PELA LIBERDADE. Eu também. Para assinar clique aqui

sábado, fevereiro 06, 2010

O DITADORZINHO


A semana começou com o caso Mário Crespo – o jornalista da SIC- Notícias, foi tratado pelo primeiro-ministro, em conversa num restaurante lisboeta com o director de programas da SIC, Nuno Santos, como “um problema” a ser resolvido. A crónica deste episódio, ocorrido num espaço público, feita pelo próprio Mário Crespo para o Jornal de Notícias foi censurada pela direcção desse jornal. Ontem, através de escutas divulgadas pelo semanário Sol, ficou-se a saber de toda uma conspiração por parte de Sócrates para controlar a comunicação social. Tudo isto é grave demais: um primeiro-ministro de um pais democrático, onde a comunicação social é privada (excepto a RTP), tenta – e parece ter conseguido – com a ajuda de alguns amigos estrategicamente colocados controlar os meios de comunicação privados.
Sócrates está agarrado, colado, ao poder como nenhum chefe de governo depois do 25 de Abril esteve. Ao longo destes anos vários episódios, envolvendo funcionários públicos, mostraram a cultura pidesca que Sócrates criou à sua volta. Passaram já 35 anos sobre o fim da ditadura do Estado Novo; mas a cultura da obediência e medo persistem na mentalidade e instituições portuguesas. Agora é demais, o copo transbordou. Se alguém que quer ser primeiro-ministro de um país democrático não admite que se fale mal dele, que vá fazer outra coisa qualquer, de preferência nada, porque em todas as profissões há sempre alguém que diz mal.
É completamente inadmissível que um primeiro-ministro numa democracia tente controlar os jornalistas através de empresários de comunicação social. Este caso coloca Portugal ao nível de um país do terceiro mundo.
Como a justiça, subserviente perante o poder político, não quis agir perante estas gravações, como um atentado ao estado de direito, justifica-se plenamente que sejam os jornalistas – os que ainda conseguem ser independentes –, a divulgar as escutas. Não se trata de jornalismo de “buraco de fechadura”, mas do dever dos jornalistas num país que se quer livre de ditadorzinhos.

quinta-feira, janeiro 14, 2010

CLARICE LISPECTOR


É curioso como não sei dizer quem sou. Quer dizer, sei-o bem, mas não posso dizer. Sobretudo tenho medo de dizer, porque no momento em que tento falar não só não exprimo o que sinto como o que sinto se transforma lentamente no que eu digo. Ou pelo menos o que me faz agir não é o que eu sinto mas o que eu digo. (16)

O que se consegue quando se fica feliz? (25)

Olhou-os. Sua tia brincava com uma casa, uma cozinheira, um marido, uma filha casada, visitas. O tio brincava com trabalho, com uma fazenda, com jogo de xadrez, com jornais. Joana procurou analisá-los, sentindo que assim os destruiria. (p.57)

O que importa afinal: viver ou saber que se está vivendo? (63)

Liberdade é pouco. O que desejo ainda não tem nome. (64)

Música pura desenvolvendo-se numa terra sem homens (...) (77)

O amor veio afirmar todas as coisas velhas de cuja existência apenas sabia sem nunca ter aceito o sentido. O mundo rodava sob seus pés, havia dois sexos entre os humanos, um traço ligava a fome à saciedade, o amor dos animais, as águas das chuvas encaminhando-se para o mar, crianças eram seres a crescer, na terra o broto se tornaria planta. Não poderia mais negar... o quê?, perguntava-se suspensa. O centro luminoso das coisas, a afirmação dormindo em baixo de tudo, a harmonia existente sob o que não entendia. (90-91)

A beleza das palavras: natureza abstracta de Deus. É como ouvir Bach. (116-117)

E quando meu filho me toca não me rouba pensamento como os outros. Mas depois, quando eu lhe der leite com estes seios frágeis e bonitos, meu filho crescerá de minha força e me esmagará com sua vida. Ele se distanciará de mim e eu serei a velha mãe inútil. Não me sentirei burlada. Mas vencida apenas e direi: eu nada sei, posso parir um filho e nada sei. (148-149)

Clarice Lispector, excertos de Perto do Coração Selvagem (ed. original, 1944), Círculo de Leitores, 1988.

quinta-feira, janeiro 07, 2010

BIG BROTHER, 10 - PARANÓIA NOS AEROPORTOS


Depois de um argelino ter tentado fazer-se explodir dentro de um avião, no dia de Natal, o mundo entrou em paranóia. Será que os governos ocidentais não percebem que reacções como as de fazer passar os passageiros por scanners não só de nada servem para evitar atentados, como são uma forma de vitoriar os extremistas islâmicos? Lentamente, por causa de toscas tentativas de atentados terroristas, como a deste argelino, o mundo em que vivemos torna-se cada vez mais securitário, mais parecido com aquilo que os extremistas islâmicos querem que seja o nosso mundo - um mundo sem liberdade, onde as pessoas são constantemente controladas. Ora isso mostra que, como em algumas séries televisivas, são os nossos governantes os principais aliados do extremismo islâmico.

quinta-feira, dezembro 31, 2009

Renata Correia Botelho


as amoras caídas e os limos
subindo a encosta, este dia
mudo e a solidão

dos barcos que largam do porto
enquanto dormes

*
o gato espia do telhado
a vida a partir
em cada comboio que passa,

o tempo que se arrasta
na dor metálica dos carris.

é feriado nas mãos,
trago uma canção triste
e o teu rosto no bolso.

*
o vento agita as sombras
na minha mão, lança-me
vultos, um nome em chamas, versos
afiados contra os dedos.

sempre pressenti a distância mínima
entre o poema e o medo
de não saber regressar a casa.

*
já ninguém nos toca à porta
a vender cerejas.

devíamos talvez lembrar
à terra o nosso nome

plantar sílabas frescas
que nos matem a sede

ter um pingo de esperança
na morte depois da vida.

Renata Correia Botelho, poemas de Um Circo no Nevoeiro, Averno, 2009.


Renata Correia Botelho nasceu em 1977 em S. Miguel, Açores, filha do poeta Emanuel Jorge Botelho. Em 2001 publicou Avulsos, por causa (edição de autor, fora do mercado) e em 2009 Um Circo no Nevoeiro (Averno). Tem colaboração nas revistas Magma e Telhados de Vidro. A sua poesia (a avaliar pelo seu último livro), apresenta-se como uma renovação de um lirismo que tem andado arredado das novas poéticas.

sábado, dezembro 26, 2009

INÊS LOURENÇO


Possessio maris

para Adília Lopes


É tão banal no poema
saber dourar a cópula. Como, ao
amar, resistir à boa humilhação de
babélica virtuosamente
foder e ser fodido. Assim

tão cruamente seja dita
a bíblica prática do conhecimento
dos corpos livre de intertextos e
arredada da culpa e das pestes
racionais.

As almas sensíveis, minha amiga,
não acham sobre-humano nem
muito estético esse acto de achada
eficácia. Desdenham e enjoam
o látego terminal do gozo. Eternos
nautas em seco, aportam a doutos

ensaios e outras posições
elípticas, esquecidos do genitivo
de posse e das declinações trágico-marítimas
onde nunca ninguém possuiu
sem ser possuído.

Inês Lourenço, in Logros Consentidos, & etc, 2005, p. 18.

sábado, dezembro 12, 2009

Pedro Mexia


ELAS PASSAM

Elas passam, magras estudantes,
julgando-se felizes talvez,
passam e passam, as pernas e os dentes
mostram saúde e altivez

Os jeans ao atravessarem a nave
maior do centro comercial
estreitam a cintura suave
numa falsa aparência virginal.

Vê-las alegra e entristece,
o seu corpo é uma matéria mais pura,
e cada uma, como se soubesse,
mostra-se obstinada e segura.

Passam e passam, são toda uma tarde,
sentinela que em mim sente
esta palha seca que arde,
que às vezes engana, mas não mente.

Poder tê-las sem qualquer dano
e à sua alegre inconsciência,
misturando nos dedos a pele, o pano,
os ossos, a transparência.

A tarde fez-se a hora de regresso,
o coração sussura e quase cai
aos pés das raparigas a quem peço
«de novo, levantando-me, passai»

Pedro Mexia, in Poemas Portugueses - Antologia da Poesia Portuguesa do Séc. XIII ao Séc. XXI, Porto Editora, Porto, 2009, pp. 2095-2096 ( o poema é retirado do livro "Eliot e Outras Observações", 2003).

Pedro Mexia nasceu em Lisboa, em 1972. Antes de publicar o seu primeiro livro de poemas (Duplo Império, 1999, edição de autor), foi responsável por uma antologia de poesia que reunia poetas dos anos 80 e 90 - Antologia da Novíssima Poesia Portuguesa, Tomar, 1997. Nesta década publicou os livros de poesia Em Memória (2000), Avalanche (2001), Eliot e Outras Observações (2003), Vida Oculta (2004) e Senhor Fantasma (2007). É crítico literário e cronista do jornal Público, director interino da Cinemateca e participa num programa de debate na TSF (Governo Sombra). Publicou três volumes de crónicas, resultado da sua intensa actividade como Blogger. Em 2002 José Ricardo Nunes inclui PM nos volume 9 Poetas para o Século XXI.

sexta-feira, dezembro 04, 2009

FRANZ KAFKA


DIANTE DA LEI

Diante da lei encontra-se um guarda. Um homem do campo aproxima-se dele e pede para entrar na Lei. Mas o guarda diz-lhe que de momento não o pode deixar entrar. O homem pondera e depois pergunta se o deixarão entrar mais tarde. «É possível», responde o guarda, «mas não agora» O guarda afasta-se do portão, aberto como sempre, e dá um passo para o lado; o homem estica-se para espreitar lá para dentro. Ao vê-lo, o guarda ri-se e diz «Se te sentes assim tão atraído, tenta entrar, não obstante o meu veto. Mas presta atenção: eu sou forte. E sou apenas o menor dos guardas. De salão em salão encontram-se guardas cada vez mais fortes. O terceiro é tão terrível que nem eu consigo olhar para ele». O homem do campo não esperava tantas dificuldades: a lei, pensa ele, deveria certamente ser sempre acessível e a todos; mas ao examinar mais de perto o guarda, no seu casaco de peles, com seu nariz comprido e afilado, a barba negra à tártaro, decide que é melhor que o deixe entrar. O guarda dá-lhe um banco e deixa-o sentar-se de um dos lados da porta. Ali ele fica durante dias e anos. Faz várias tentativas para que o deixe entrar, e desgasta o guarda com a sua persistência. O guarda faz-lhe pequenos interrogatórios frequentes, com preguntas sobre a sua terra e muitas outras coisas, mas as perguntas são feitas com indiferença, como grandes senhores as fariam, e terminam sempre com a declaração de que ele ainda não pode entrar. O homem, que se proveu com todo o tipo de coisas para a sua viagem, sacrifica tudo o que tem, independemente do valor, para subornar o guarda. Este aceita tudo, mas sempre com o comentário: «Só aceito para que não penses que esqueceste qualquer coisa» Durante estes muitos anos, o homem observa o guarda constantemente. Esquece os outros guardas, e este primeiro parece-lhe o único obstáculo que o lhe impede o acesso à Lei. Nos últimos anos, ele amaldiçoa a sua falta de sorte, em alto e bom som; mais tarde, à medida que vai envelhecendo, limita-se a resmungar para consigo. Torna-se infantil e, como depois de tantos anos a observar o guarda até já lhe conhece as pulgas da gola do casaco, também àquelas ele suplica, para que o ajudem a fazer com que o guarda mude de ideias. Com o tempo, a sua visão começa a falhar e ele não sabe se o mundo está mesmo a ficar escuro ou se os seus olhos o enganam. No entanto, na sua escuridão está agora consciente do brilho que emana eternamente do portão da Lei. Agora já não lhe resta muito tempo de vida. Antes de morrer, todas as suas experiências durante aqueles longos anos reúnem-se-lhe dentro da cabeça numa só questão, uma pergunta que ele ainda não fez ao guarda. Então, faz-lhe sinal para que se aproxime, uma vez que já não consegue levantar o corpo hirto. O guarda tem de se baixar, pois a diferença de altura entre os dois alterou-se muito, com desvantagem para o homem do campo. «O que queres saber agora?» perguntou o guarda; «és insaciável». «Todos se esforçam para chegar à Lei», disse o homem, «então como é que durante todos estes anos ninguém, para além de mim, pediu para entrar?» O guarda reconhece que o homem atingiu o seu limite e, para que os seus sentidos débeis captem as palavras, grita-lhe ao ouvido: «Mais ninguém poderia entrar aqui, visto que o portão foi feito só para ti. Agora, vou fechá-lo»

"Diante da Lei" in O Abutre e outras Histórias de Franz Kafka, trad. de Noémia Ramos, Estrofes e Versos, pp.17-20