quarta-feira, maio 19, 2010

LUÍS QUINTAIS


X
(L.W. intensamente negro sobre quadro riscado)


Desprezasse o conhecimento
e o terrível sentir de uma palavra moral.
A guerra consigo mesmo,
esse combate mortal, jogava-se, não nas trincheiras
(as trincheiras seriam apenas um expediente
para o vazio que em si parecia contemplá-lo)
mas no seu oco, nessa incerteza que o percorria,
que merecia ser ferida, golpeada,
numa espécie de ódio de si mesmo
que lhe diziam envenenar a alma vienense,
cujos golpes seriam um desvio
para outra coisa, um degrau abandonado,
uma clareza consentida e de partilha improvável.
Riscava a palavra dor no quadro negro
que intensamente lhe tomava o olhar
quando escutava um dos dilectos,
ele que sempre odiara discípulos, e aqui
estava ele, a avaliar a dor do mundo
através de um relance sobre a inviolável
gramática da perplexidade.


Luís Quintais, "X", in Riscava a palavra dor no quadro negro, Livros Cotovia, 2010. (Respigado daqui)

terça-feira, maio 11, 2010

O SEXO PERDIDO DA IGREJA


Um dos argumentos lançados contra a Igreja (católica) consiste em acusá-la de um domínio sobre a sexualidade. Ora esse argumento tem um atraso de várias décadas. Qual o poder da Igreja para determinar, hoje, o comportamento sexual das sociedades ocidentais? Nenhum, ou quase nenhum. Nem os católicos praticantes, os que frequentam semanalmente a missa seguem as prescrições da doutrina moral da Igreja sobre a sexualidade. De resto, quem não frequenta a Igreja não sofre nenhuma influência, directa, desta.
Noutros tempos, durante séculos, a Igreja católica assustou e teve o domínio sobre o comportamento sexual dos indivíduos. Hoje a Igreja não tem, neste aspecto, nenhum poder. Mas quem tem hoje o poder que antes pertenceu à Igreja? Uma aliança entre meios de comunicação social e sexólogos e outros “psis”. O próprio discurso da Igreja baseia-se hoje, creio, porque como não frequento a Igreja desconheço em grande parte o seu discurso, em algumas bases “científicas”.
Quem impõe hoje um modelo de comportamento padronizado em matéria de moral sexual é essa aliança entre comunicação social (televisão, internet, rádio, imprensa, cinema, publicidade, etc) e um alegado saber científico no domínio das ciências do comportamento. Esta aliança torna-se clara, na paisagem mediática portuguesa, em figuras como Júlio Machado Vaz, Clara Crowford e outros “psis” que frequentam os média portugueses. Mas é também na ficção e na informação que se tem determinado uma nova moral amorosa. Essa moral é claramente o oposto da antiga moral preconizada pela Igreja católica. Há já algumas décadas que essa moral se tornou dominante, numa clara mudança de paradigma que significa também uma mudança em quem tem o poder sobre a vida das pessoas. Essa mudança ocorre, entre outras razões, porque a Igreja perdeu poder, tornando-se nas sociedades ocidentais desenvolvidas naquilo que o polémico filósofo Slavoj Zizek chamou “o frágil absoluto”. E a tendência é para que a Igreja continue a perder poder e multidões.
Torna-se caricato, nesta situação, que num dos últimos estertores da Igreja,quase semelhante a uma supernova, como é o caso da visita de Bento XVI a Portugal, um grupo de pessoas se tenha organizado para distribuir preservativos. O que esse gesto, alegadamente provocatório mostra, é quem tem hoje o poder de determinar e influenciar a sexualidade: não a Igreja (cuja campanha contra o preservativo é feita predominantemente pelos média num discurso acusatório), mas aqueles que estão a distribuir os preservativos. São esses que hoje querem ter poder sobre os nossos corpos e o nosso erotismo.

segunda-feira, maio 10, 2010

LUIZA NETO JORGE


ACORDAR NA RUA DO MUNDO

madrugada. passos soltos de gente que saiu
com destino certo e sem destino aos tombos
no meu quarto cai o som depois
a luz. ninguém sabe o que vai
por esse mundo. que dia é hoje?
soa o sino sólido as horas. os pombos
alisam as penas. no meu quarto cai o pó.

um cano rebentou junto ao passeio.
um pombo morto foi na enxurrada
junto com as folhas dum jornal já lido.
impera o declive
um carro foi-se abaixo
portas duplas fecham
no ovo do sono a nossa gema.

sirenes e buzinas. ainda ninguém via satélite
sabe ao certo o que aconteceu. estragou-se o alarme
da joalharia. os lençóis na corda
abanam os prédios. pombos debicam

o azul dos azulejos. assoma à janela
quem acordou. o alarme não pára o sangue
desavém-se. não veio via satélite a querida imagem o vídeo
não gravou

e duma varanda um pingo cai
de um vaso salpicando o fato do bancário

Luiza Neto Jorge, Poesia 1960-1989, Assírio & Alvim, pp. 285-285

quinta-feira, maio 06, 2010

JOSÉ CARLOS BARROS


As páginas dos romances


Arriscávamos o salto mortal
voando com uma venda nos olhos
dos andaimes para o monte de areia da póvoa.
As obras da escola eram a nossa perdição:

as fasquias de alumínio, o ondulado de luzalite
das coberturas, o entulho, o ressalto
exacto do encaixe das tijoleiras, o pó quase de talco
dos sacos de cimento da cimpor. Nos sábados

à tarde erguíamos muros no combarro com tijolo
de quinze, marcávamos com estacas de pinho
o perímetro exterior do pavilhão, ligavamos a betoneira
a olhar em sobressalto os movimentos oscilatórios

do balde. Penso que era assim. Às vezes
pergunto o que fica dos livros, o que pertence
e não pertence à literatura, o que acrescentaram
à nossa vida as páginas dos romances.

José Carlos Barros, Resumo: a poesia em 2009, Assírio & Alvim, 2010, p. 70.


José Carlos Barros não é, ao contrário do que um leitor menos atento possa supor, um jovem poeta estreante. Nasceu em 1963 em Boticas. O primeiro livro de JCB, Pequenas Depressões, em colaboração com Otília Monteiro Fernandes, foi publicado em 1984. Seguiram-se mais cinco livros de poesia, em edições o suficientemente discretas para passarem despercebidas. Publicou os livros em prosa O Dia em que o Mar Desapareceu (2003) e O Prazer e o Tédio (2009). Nos anos oitenta foi um dos principais colaboradores do suplemento juvenil do Diário de Notícias, o DN-Jovem. Recentemente venceu o prémio de poesia Sebastião da Gama, com o livro, ainda inédito, Os Sete Epígonos de Tebas. O poema aqui apresentado foi publicado originalmente no nº 3 da revista Criatura, revista mantida por alguns jovens poetas como António Ramos Pereira, David Teles Pereira, Diogo Vaz Pinto ou Ana Salomé. É autor do blogue Casa de Cacela

sábado, abril 24, 2010

ANA CURADO


Há as mulheres cultas
E afamadas prostitutas,
Mulheres argutas
que se entregam a disputas,

A um povo - são poetisas,
Herdeiras, eternas artemisas
Que perderam as maneiras
E desgrenham cabeleiras

Em as lutas, tão guerreiras,
com as maduras-ultras,
Intelectuais robustas,
Exibindo-se, perfeitas,

Em lugares social
E moralmente limpos,
E abraçam os amigos
Que as bajulam no jornal

E as titulam «Marginal»!

*

«Mirror on mirror mirrored
is all the show» - W. B. Yeats

Encontrei o Cesariny na Alsaciana.
Egrégio ou não não trazia o anão britânico
P' la mão. Desenhei um na margem do jornal.
Rasguei-o cuidadosamente
E convidei-o: «Queira sentar-se»

Ali ficámos três decisivamente pelo chá
Pelas torradas e conversas literárias.
Viria então, assegurou o anão, enorme
Um rapaz azul alado (dos que andam aí
Pelos poemas) pô-lo ao corrente dos esquemas.

Esgotou-se a noite e o rapaz não veio.
Despediu-se britanicamente o anão
Deixando na mesa a rosa que trazia na mãozinha.
Deitou-se à última chávena que o Cesariny bebeu.
Suicidou-se, penso eu.

Ana Curado, Sião, antologia de poesia organizada por Al Berto, Paulo da Costa Domingos e Rui Baião, Frenesi, Lisboa, 1987, pp. 142-143.

De Ana Curado apenas conheço quatro poemas publicados em Sião, e dois publicados no Anuário de Poesia 1985 (ed. Assírio & Alvim). O livro anunciado na nota publicada em Sião, Poemas de Ana Curado, nunca terá sido publicado, infelizmente.

quinta-feira, março 18, 2010

Rui Lage


V. C. I.

O cântico dos carros sobe do asfalto.
Há quem venha espreitar a recolha do lixo
depois do jantar, enquanto fuma à janela,
respondendo para dentro à voz de criança
que chama no quarto,
ou mais perto,
àquele que diz haver pratos na mesa
por levantar.

Um ecrã em cada lar
emite luz amarela
como vela acesa
em cela de convento.

Rui Lage, Revólver, Quasi Edições, 2006, p. 40.

Rui Lage nasceu no Porto em 1975. É autor de quatro livros de poesia (todos publicados nas Quasi Edições: Antigo e Primeiro (2002), Berçário (2004), Revólver (2006) e Corvo (2009). Traduziu Paul Auster, Samuel Beckett e Pablo Neruda. Foi co-fundador e director da revista Águas Furtadas e é membro da direcção da Fundação Eugénio de Andrade. É actualmente doutorando em Literaturas Românicas na FLUP. Com Jorge Reis-Sá organizou para a Porto Editora a antologia Poemas Portugueses.

sexta-feira, março 12, 2010

AS CRIANÇAS CRIMINOSAS


I
Se uma organização criminosa (máfia, terrorismo, etc.) pretendesse uma maior eficácia na prática dos seus actos (por ex. matar alguém), fugindo a qualquer ilícito penal, não contrataria um top guy daqueles que vemos nas séries e filmes de acção, mas “inocentes” crianças, inimputáveis perante a lei. O suicídio de Leandro, de 12 anos, no rio Tua, e o suicídio de um professor de música no Tejo (hoje revelado pelos jornais i e Público), ambos vítimas de bullying, vem revelar esta eficácia assassina por parte das crianças. Até há uns anos atrás a expressão “criança criminosa” poderia remeter para o título de um escritor considerado maldito, Jean Genet, que passou por reformatórios e prisões antes de ser consagrado como um dos mais importantes escritores franceses do século XX.
Agora, pelo menos em Portugal, estamos a assistir a um transbordar do crime praticado por crianças – porque há que dizê-lo: não existindo outras causas fortes, e pelo que os média têm relatado, estas crianças são homicidas, desencadearam situações que levaram ao suicídio de duas pessoas. Levar alguém ao suicídio, pela subjectividade que envolve este acto, torna-se no crime perfeito, o crime de mãos limpas: afinal quem em último lugar decide por termo à vida é o suicida. Nisto, nesta arte da crueldade, as crianças de Mirandela, como as do 9º B da escola de Sintra, podem dar lições aos maiores pulhas do crime organizado. Lembram-se do caso Gisberta?
Em tudo isto a cumplicidade dos adultos é essencial. As crianças / adolescentes não são estúpidas ou ingénuas, sabem que nada, ou praticamente nada, lhes pode acontecer, têm um estatuto sagrado, intocável. São uma moeda viva rara. As escolas são hoje um dos locais de maior violência real e simbólica das sociedades ocidentais. Sempre o foram, mas essa violência que dantes era aplicada pelos professores aos alunos é agora aplicada pelos alunos aos professores.

II
A propósito da criança que se suicidou em Mirandela, ouvia terça-feira na Antena 1, no programa Alma Nostra, a explicação de Carlos Amaral Dias (CAD), psiquiatra e psicanalista. Dizia CAD, logo no inicio do programa (que pode ser ouvido em podcast aqui): “O que acontece é que quando o adolescente se comporta como aquilo a que chamo o adolescente pária, que é o adolescente sem carta, sem identidade, sem pertença grupal, esse adolescente é mais vitima, por causa do seu isolamento social, deste tipo de situações”. Há nestas palavras uma terrível acusação, que não pode passar impune, contra a memória da criança de 12 anos que se suicidou no rio Tua; e também contra todas as outras crianças que foram e são vitimas de bullying.
O bullying não é um fenómeno apenas entre crianças. É antes sancionado por alguns adultos (professores, pais, psis) que o permitem e, por vezes, encorajam. Humilhar, agredir, gozar, mal-tratar é sinal de crescimento e adaptação social. Porque o bullying vai continuar pela vida fora: veja-se o caso dos suicídios na France Telecom. Os adolescentes párias e sem “carta”, segundo a noção fascista do psicanalista da rádio, serão sempre os suicidados da sociedade, aqueles que pela sua diferença a sociedade agradece o suicídio (embora diga o contrário).

sábado, março 06, 2010

PÚBLICO: 20 ANOS


O Público fez ontem 20 anos. Edição especial, grátis, com o irritante António Barreto como director convidado. Resultado: Portugal transformado em números, como o sociólogo / profeta da catástrofe portuguesa gosta. Uma maçada, como diria o Eça. Ora o Público tem vindo a transformar-se nisso, em jornalismo maçudo. A decadência daquele que foi o melhor jornal português esta patente na crónica de Bárbara Reis, a actual directora, quando lembra, com nostalgia os primeiros tempos do Público, dirigido e fundado por Vicente Jorge Silva e com grafismo de Henrique Cayate. Escreve Bárbara Reis: “Hoje, 20 anos depois, imagino que o Vicente estivesse a fazer a primeira página e quisesse dar destaque a Eastwood, mas que alguém argumentara que ninguém em Portugal conhecia o nome, muito menos os filmes, para quê ‘puxar’ por tal coisa na capa? Mas estávamos em 1990, o PÚBLICO acabara de nascer, tinha ideias novas e estava ligado à terra – das capas não se esperava menos do que serem uma ruptura permanente. O PÚBLICO não pairava numa nuvem previsível, adormecida e burocrática como os jornais à nossa volta”. Precisamente. Bárbara Reis tem toda a razão. O problema é que hoje, vinte anos depois, o Público transformou-se num jornal previsível, adormecido e burocrático (veja-se, por exemplo os editoriais não assinados).
Nada pior que viver da nostalgia desses tempos em que o jornal de Vicente Jorge Silva era um diário de referência que se podia comparar a um Liberation ou El País, com uma longa lista de redactores, colaboradores (especialistas nas mais diversas áreas) e correspondentes (espalhados por todo o mundo). Porque essa nostalgia impede que se faça algo de novo, criativo.
Hoje os jornais, em papel, estão a suicidar-se. Os grupos económicos que gerem jornais parecem a todo o custo querer acabar com eles, ansiosos por plataformas multimédia na Internet. Os recursos (económicos) baixaram. Torna-se muito mais difícil fazer, dirigir um jornal hoje. Mas os jornais são necessários, eles estão na génese das democracias modernas. As notícias estão, em forma instantâneas, a toda a hora em vários suportes tecnológicos – menos nos jornais em papel. Perante esta situação cabe aos jornais apostar na reportagem, na investigação, na opinião; e na estética – elemento fundamental para embrulhar tudo isso. Ora é isso que os jornais actuais, por razões económicas e não só (vivemos tempos de indigência) não o estão a fazer – com excepção para jornais de referência que mantém a qualidade a que nos habituaram, como o El País.
Voltando ao caso do Público, a degradação do jornal acentuou-se nos últimos anos, sob a direcção de José Manuel Fernandes, com mudanças gráficas que descaracterizaram o jornal, o fim de suplementos (como o Mil Folhas), o despedimento de uma importante fatia da redacção, a perda de colunistas. A mudança, recente, na direcção editorial não trouxe nada de novo. Eu esperava uma nova imagem gráfica, pelo menos.
No entanto, e apesar de tudo tenho que reconhecer que o Público actual continua a manter um certo espírito que presidiu à sua fundação. Jornalistas como Alexandra Lucas Coelho, Paulo Moura, Luís Miguel Queirós, Ana Gerschenfeld, Margarida Santos Lopes, Nuno Pacheco (que está na direcção editorial desde o início e assumiu várias vezes o lugar de director interino) entre outros, mantém a qualidade do jornal.
O aparecimento do i foi, como se costuma dizer, uma lufada de ar fresco na Imprensa portuguesa, mas o jornal dirigido por Martim Avillez Figueiredo dá pouca – e má – importância à cultura, ou à actualidade internacional.

terça-feira, março 02, 2010

CESÁRIO VERDE


DE TARDE

Naquele «pic-nic» de burgueses,
Houve uma coisa simplesmente bela,
E que, sem ter histórias nem grandezas,
Em todo o caso dava uma aguarela.

Foi quando tu, descendo do burrico,
Foste colher, sem imposturas tolas,
A um granzonal azul de grão de bico
Um ramalhete rubro de papoulas.

Pouco depois, em cima duns penhascos,
Nós acampámos, inda o sol se via;
E houve talhadas de melão, damascos,
E pão de ló molhado em malvasia.

Mas, todo púrpuro, a sair da renda
Dos teus dois seios como duas rolas,
Era o supremo encanto da merenda
O ramalhete rubro de papoulas!

Cesário Verde, O Livro de Cesário Verde, Editora Orfeu, 1985, p. 75