quinta-feira, outubro 21, 2010

DAVID MOURÃO-FERREIRA


Brilha nas mãos do sol o gume de um cutelo
O pescoço da Lua é que há-de ser o alvo

***

Os meses vão batendo à nossa porta
Sempre fingindo que são deuses diversos

***

TRENO

Ai a tua nudez Ai a tua mudez
Ó taça de cristal sobre veludo preto

Quando voltas de novo a ser aquele vento
que antes do amor se começa a mover

Poemas do livro Matura Idade, (1ª edição 1973) reeditado (8ª edição) pela Arcádia, 2010.

quarta-feira, outubro 13, 2010

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Leitura de poemas sobre a temática da água e do fogo amanhã, 14 de Outubro, pelas 21h00 no Café Progresso. Os poemas serão lidos por Celeste Pereira e Ana Afonso.
Aqui fica o poema de António Ramos Rosa cujos dois primeiros versos encimam o cartaz

Escrevo-te com o fogo e a água. Escrevo-te
no sossego feliz das folhas e das sombras.
Escrevo-te quando o saber é sabor, quando tudo é surpresa.
Vejo o rosto escuro da terra em confins indolentes.
Estou perto e estou longe num planeta imenso e verde.

O que procuro é um coração pequeno, um animal
perfeito e suave. Um fruto repousado,
uma forma que não nasceu, um torso ensanguentado,
uma pergunta que não ouvi no inanimado,
um arabesco talvez de mágica leveza.

Quem ignora o sulco entre a sombra e a espuma?
Apaga-se um planeta, acende-se uma árvore.
As colinas inclinam-se na embriaguez dos barcos.
O vento abriu-me os olhos, vi a folhagem do céu,
o grande sopro imóvel da primavera efémera.

(de Volante Verde, 1986)

terça-feira, outubro 05, 2010

REPÚBLICA: 100 ANOS


Hoje, cem anos depois da implantação da República torna-se difícil compreender o que foi esse tempo, entre 1910 e 1926. Talvez um tempo de paixão pela política, de crença na política como algo que iria modificar a vida das pessoas, mudar de vida, mudar de regime. Paixão e crença e não calculismo, estratégia e carreirismo.
A grande turbulência política, o espírito positivista, a perseguição às entidades religiosas, a participação de Portugal na I Guerra Mundial – com baixas significativas –, a liberdade de imprensa num acentuado nível, a aposta no ensino como forma de libertação do povo. Alguns dos aspectos positivos e negativos da I República.
Destes aspectos vejamos um em particular, o que hoje, nas comemorações do centenário mais se destacou: a aposta na educação. O governo inaugurou cem escolas (algumas foram apenas remodeladas), talvez para tentar contrabalançar as centenas que tem vindo a fechar. Cem anos depois da proclamação da República exigia-se uma outra atitude política, uma outra capacidade de ver o presente. O que se torna hoje necessário não é apenas a aposta na educação, vista como forma de alfabetizar as crianças. O que hoje é necessário é uma outra forma de pensar a educação. Já não se trata de combater o analfabetismo mas a iliteracia.

quarta-feira, setembro 22, 2010

JOÃO LUÍS BARRETO GUIMARÃES


AS EMPREGADAS FABRIS

Arregaçam a manhã (as empregadas fabris)
pernas como tesouras
recortando a calçada
ferem o lenho da mesa com
sortes
de boletim. Uma sirene as trouxe aqui
(às
empregadas febris)
ancas de esboço perfeito sob
vestes de operária
tocam umas nas outras como
se
inda fossem meninas mas a
delas que vai noivar já
traz o primeiro a caminho. E
quando o cigarro se apaga
(ou a
cerveja se escoa) o
que resta é a dor da tarde
que nem esta chuva afaga
o
gasóleo dos rapazes que
lhes cantam a cantiga e
as tomam pela cintura. Um
foguete fecha a festa
(pelo lado de dentro da coxa)
há nelas a incerteza de
não saberem se são
incompletamente
infelizes

João Luís Barreto Guimarães, poema do livro Rés-do-chão, in Poemas Portugueses, Porto Editora, 2009, p.2050

segunda-feira, agosto 23, 2010

dixit: Fernando Sobral sobre a desertificação do interior do país


701 não é o novo número de emergência nacional. É o número que decreta a desertificação do País.
O ministério que defende esta chacina em nome da modernidade e da eficiência pensa que as escolas são "call centers". O fim das escolas cumpre o que os fogos iniciaram: asfixia económica e socialmente os que ainda vivem no interior. O que se pretende é o fim do interior. Desde há anos que se quer transformar Portugal num País de litoral onde o resto é paisagem. Esta decisão do Ministério da Educação é um decreto de suicídio assistido de muitas aldeias deste pobre território. Como é possível decretar, de Lisboa, que crianças vão começar a fazer 50 quilómetros por dia para ir para escolas melhor equipadas? É a mesma política que decreta a morte da floresta nacional. Nenhuma explicação é suficiente para aquilo que se está a fazer perante o silêncio da sociedade que, mais uma vez, encolhe os ombros. Maria de Lurdes Rodrigues iniciou esta política com a pose de Madame Min. Isabel Alçada cumpre-a com sorriso de Cinderella. Esta última forma dói mais, porque parece que a ministra troça do País e que isso lhe dá um secreto gozo. Quando se fala da revisão constitucional esta decisão ministerial mostra como o Estado deixou de cumprir a sua função de ser garante da educação de todos os portugueses. Sobretudo daqueles que não garantem maiorias parlamentares. É espantoso como não se escutam os deputados eleitos por Viseu (o mais atingido), unidos no interesses dos seus, a clamar contra este atentado. Não admira: quem os elege são as direcções nacionais...



Fernando Sobral, Jornal de Negócios, 23. 08. 2010, última página.

domingo, agosto 15, 2010

Margarida Ferra


Flores nocturnas

Ouviste ontem à noite
a cadência misteriosa,
outra vez o trabalho
daquela costureira sem idade.
Os pés descalços sobre o pedal,
os braços colados ao pano, frios
e brancos, não têm carne
que possa ferir-se por
acaso ou falta de vista.
Mora dentro das paredes,
edifícios com mais de quinze anos,
e escolheu aqueles
a quem embala e atormenta o sono.

Os pontos regulares, na tua cabeça,
fixam sardinheiras frescas sobre
chitas desmaiadas pela luz do dia
que chagará daqui a nada.

***

Morada

Habitamos
uma casa quando
a sombra dos nossos gestos
fica mesmo depois
de fecharmos a porta.

Margarida Ferra, Curso Intensivo de Jardinagem, & etc, 2010, pp. 11 e 51.

Margarida Ferra estreia-se na poesia com a publicação deste Curso Intensivo de Jardinagem. Neste livro a autora explora o espaço da casa, de que é exemplo o poema "Morada" aqui publicado, mas sobretudo a segunda secção do livro - "Quatro Divisões". A terceira secção do livro, "Playlist", destoa das outras partes por um certo hermetismo, onde os poemas aparecem como menos conseguidos, o que não impede que este conjunto de poemas tenha excelentes momentos.

quarta-feira, agosto 04, 2010

RUI PIRES CABRAL


SHIRLEY ANN EALES


Na vitrina lê-se Livros Raros
e Usados sob o azul inclinado
de um toldo – mesmo em frente
à glacial cafetaria de franchise
onde o dia destrata o desejo
e não se pode fumar. Subo
aos pequenos gabinetes
mergulhados no doce bafio
da literatura e percorro de A
a Z as espinhas estreitas

e rachadas da poesia. É o sítio
mais vazio de Novembro
e o que mais reconforta;
o livro que escolho, por metade
de uma libra, traz no frontispício
um nome e uma morada: Shirley Ann
Eales, de Scottsville – um sumido
autógrafo de maiúsculas magras
e triangulares onde a imaginação
encontra por enquanto pretexto

e oxigénio suficientes para arder.
O livro teve outra existência,
pertenceu a outra casa, a outra mesa
de cabeceira – e o pensamento,
de tão óbvio, conjura de repente
uma vertigem, é um corredor
abrupto para a imensidão do mundo
onde trafica o acaso. Ah, sabemos
que a vida é improvável se damos
por nós a cismar, a meio de uma tarde

insípida, numa mulher desconhecida
que lia poemas em Scottsville, nos anos
70. Mas haverá aqui alguma espécie
de sentido, algum sinal guardado
para alguém mais sábio ou inocente
do que tu? Não sei quem és
nem onde estas agora, Shirley Ann,
mas como seria belo se pudesses
um dia encontrar, por obra da mesma
sorte, o teu nome nestes versos.

Rui Pires Cabral, Longe da Aldeia, Averno, 2005, pp. 21-22

quarta-feira, julho 28, 2010

MIGUEL CARDOSO


DIÁLOGOS COM SOPHIA II

Sabemos que a noite
desfia as horas do dia
teceu e a manhã
irrompe irreversível e quase
singular e nada
do que acontece é solitário tudo
é eco e ressoa

E o inumerável é outro nome
para o mundo para o aguçado
revolver dos restos que nos restam
e do que neles resta
do entorpecido músculo do possível

A branda cegueira do inominável é outro nome
para as rugas do tecido de poeira e luz e espanto
da janela que por vezes habitamos em jejum
na manhã que sacode a exactidão
dos nomes e desperta coisa a coisa as ramagens
nítidas as mãos mundanas do que é eterno
e inteiro por instantes

Dos arranhados ecos

do estilhaçar das coisas
já no início estilhaçadas

Uma e outra vez na sucessão dos dias
erguem-se os ombros subitamente

nos intervalos dos tambores
do tempo tão dividido
num gesto fora de tempo e fora de uso
danço tropeço gesticulando para a verdade

Como é estranho tudo
saber – enquanto espero
neste canto do café com um livro
um lápis a luz de soslaio
sobre este canto da mesa –

a pouco

e no pouco saber e
de coisa em coisa
cerrar o punho do tempo
todo o tempo
fiado e desfiado
em torno de um instante

Sabêmo-lo.

É preciso reinventar o início

Miguel Cardoso, Que se diga que vi como a faca corta, Mariposa Azual, 2010, pp. 70-71

Que se diga que vi como a faca corta é o primeiro livro de Miguel Cardoso, autor que nasceu em 1976. Já apontado como uma das revelações poéticas do ano, em Miguel Cardoso encontramos uma poesia opaca, que recorre ao poema longo e a uma declarada intertextualidade (de que o poema reproduzido acima é um exemplo).

terça-feira, julho 13, 2010

FÁTIMA MALDONADO


CANÇÃO PARA O PRESIDENTE DO BURKINA, THOMAS SANKARA TRAÍDO PELO SEU AMIGO BLAISE COMPAORÉ


Sankara tinha um amigo
chamado Compaoré
Sankara tinha o reino
mais pobre do continente
e chamava-lhe «a pátria dos homens íntegros»
Campaoré era a sombra de Sankara
e Sankara desvendou o seu nome verdadeiro
a um companheiro de armas
esquecendo que nem os deuses o fazem.
E no Olimpo negro todos riram de Sankara –
o da alma orgulhosa –
por não ter resguardado a sua própria sombra.

***
UM FADO

Quem viu barcos
ir ao fundo
tem nos olhos a certeza
aposta firme na boca

Quem viu barcos trazer escravos
munições e artifícios
figueira brava na costa
açoite preso no riso

Quem viu barcos
magoá-lo,
ferros, lavas e palmeiras
descrê santos e novenas,
nega laços, destrói cercos,
toma ventos por lareiras.

Fátima Maldonado, Cadeias de Transmissão, Frenesi, 1999, pp. 166 e 169