segunda-feira, janeiro 31, 2011

Catarina Nunes de Almeida


Três moças cantavam d'amor
os braços debulhados dispostos no lençol.

A casa era um corpo
invertebrado.
Um bicho sem concha
à sombra das coxas mas moças
que d'amor cantavam

e sobrevoavam o linho
de pernas para o mar
uma de dentro da outra para dentro da outra

e trocavam de sapatos
e teciam véus e vulvas
como quem ensaia a perfeição de um delito.

***

Vamos, irmã, vamos folgar
nas margens do lago u eu vi andar
a las aves meu amigo.

Vamos carregadas de braços
lavrar as aves tardar nas aves
do meu amigo.

Vamos, irmã, vamos folgar
pingar com as aves
nós duas estreitas
para o amigo.

Vamos carregadas de noites
acender as aves pousar as aves
boca a boca
no amigo.

Catarina Nunes de Almeida, Bailias, Deriva, Porto, 2010, pp. 14 e 15.

Catarina Nunes de Almeida nasceu em Lisboa em 1982. Licenciada em Língua e Cultura Portuguesa pela FLUL, foi docente na Universidade de Pisa (Itália).Como poeta estreou-se com o livro Perfloração (Quasi, 2006) que obteve o Prémio de Poesia Daniel Faria e o Prémio do PEN Clube Português para a Primeira Obra. Em 2008 publicou A metarmofose das Plantas dos Pés (Deriva) e, no ano passado, Bailias (Deriva) que faz uma revisitação dos Cancioneiros medievais.

terça-feira, janeiro 18, 2011

BASTA


Aníbal Silva, mais conhecido como Cavaco, esteve no poder durante mais de 16 anos. Primeiro como ministro das finanças num governo da AD; depois dez anos, entre 1985 e 1995, como primeiro-ministro, e, finalmente, nos últimos cinco anos como presidente da república. Agora prepara-se para continuar mais cinco anos no poder, se como indicam as sondagens, for reeleito. É altura de dizer Basta. Nunca um político depois do 25 de Abril esteve tanto tempo no poder. Mário Soares que foi por duas vezes primeiro-ministro e outras duas presidente, não deve contabilizar 15 anos. E, no entanto, Soares – como Manuel Alegre – foi sempre um político. E isto faz toda a diferença – ser político, entender o que é a política, algo que herdamos dos gregos antigos. Aníbal Silva tem sido um pára-quedista, um oportunista que aparece apenas para ocupar o poder. Foi assim em 1985 quando aproveitou o desgaste do PS e a entrada de Portugal na então CEE. Qualquer governo que detivesse o poder nesses anos tinha condições para ter sucesso; afinal Portugal voltava a ter dinheiro com as avultadas ajudas de Bruxelas. Mas seria de exigir muito mais que gastar dinheiro na construção de auto-estradas, e Aníbal só soube gastar o dinheiro que caia do céu. Vinte e cinco anos depois (15 depois do fim do governo Cavaco) Portugal continua a ser um dos países mais pobres da União Europeia, que hoje conta com 27 países membros. Ou seja, estamos hoje ao nível de países que saíram de ditaduras comunistas.
Os cinco anos da presidência de Aníbal Cavaco Silva, que têm andado esquecidos do debate desta campanha, foram desastrosos. Comunicações ao país sobre assuntos menores, discursos incongruentes, vetos hesitantes. Mas o mais grave é que um professor catedrático de economia, ao mesmo tempo que é presidente da república, tenha deixado que Portugal seja alvo da ganância dos ditos mercados financeiros. Acresce um pormenor que não é de somenos: Aníbal Cavaco Silva é autor de uma brochura de 25 páginas, entre outros livros de economia, intitulada Os Efeitos Macroeconómicos dos Défices Orçamentais Financiados por Dívida Pública (1986) e outra com o significativo título em inglês de Economic Effects of Public Debt . Ele, deve ser a pessoa melhor preparada em Portugal para evitar a situação em que o país se encontra. Se, nas suas várias passagens pelo poder não fez nada é porque não quis. Porque, no fundo, Cavaco pertence a uma elite que tem um imenso desprezo pelo país onde nasceu e pelas suas pessoas. Essa elite que estudou em Inglaterra ou nos EUA as melhores formas de controlar as populações. Essa elite, com Cavaco à cabeça, o que mais deseja por estes dias é rever os seus colegas do FMI.

(A imagem foi retirada do blogue de João Branco, Entre o nada e o Infinito)

domingo, janeiro 16, 2011

Liberato


À CABEÇADA À TELEVISÃO O CALÃO
(Ás vezes também o desempregado precisa de esquecer o desemprego e que trabalha...)

Há intelectuais e muitas cabeças à cabeçada à televisão.
A mim faz mais impressão, ver, o Televisor na televisão.
Esta pequena indiscrição, deve-se ao facto de um dia ser convidado,
a casa de um casal, pensava eu de amigos,
que tinha o televisor no guarda-vestidos.
Diziam eles que nao gostavam de televisao.
É mentira pensava eu, com as mãos nos bolsos,
que antes vi-os, com os olhos na televisão, no café.
Para mim gostavam de televisão,
o que não gostavam era do Televisor;
senão, porque o tinham fechado no guarda-vestidos?!...
É por estas e por outras que sou pessoa de poucos amigos!


FOGO DE ARTIFÍCIO

Com esta sede, tenho apagado tanto fogo
dentro de mim,
e ainda tenho tanto verde por queimar.
Estas coisas podiam não ser assím;
Podiam-me põr pelo menos no Verão, subsidiado,
qual, guardador de rebanhos a guardar,
do que resta; aqui um pássaro, ali uma árvore,
desta floresta, que o criminoso com a ajuda do tempo
e do empresário, continua a queimar.
Podia ser que com outra política,
nós desempregados, desse-mos conta do recado,
ao fogo posto que o fogo de vista, desta política,
parece continuar a não querer dar.
Que para quem desempregado,
já nem vai nem na festa popular,
só lhe resta roer, assim, os ossos do ofício,
e olhar para o balão que leva no ar o S. João,
a arder nesta noite com Fogo de Artifício.

Liberato, Manual do Desempregado, Edições Mortas, (2007) pp. 8 e 13.

quinta-feira, dezembro 30, 2010

LIVROS EM 2010.


UMA LISTA*

- Nudez, Giorgio Agamben, Relógio d’ Água
- Inverness, Ana Teresa Pereira, Relógio d’ Água
- Que se diga que vi como a faca corta, Miguel Cardoso, Mariposa Azual
- O Nascimento da Filosofia, Giorgio Colli, Edições 70
- A Poesia Ensina a Cair, Eduardo Prado Coelho
- Matteo Perdeu o Emprego, Gonçalo M. Tavares, Porto Editora
- Mulher ao Mar, Margarida Vale de Gato, Mariposa Azual
- Viva México, Alexandra Lucas Coelho, Tinta da China
- Poemas com Cinema, Org. de Joana Matos Frias, Luís Miguel Queirós e Rosa Maria Martelo, Assírio & Alvim

* Esta lista corresponde a livros que li em 2010, editados neste mesmo ano, em Portugal.

UMA SÍNTESE

No ano em que morreu José Saramago, Gonçalo M. Tavares consolidou-se como um “valor” da literatura portuguesa – premiado em França, publicou três livros: Uma Viagem à Índia, Eliot e as Conferências (ambos editados pela Caminho) e Matteo Perdeu o Emprego (vergonhosamente editado pela Porto Editora que, numa lógica de merceeiro estúpido, colou nas capas um autocolante a prometer prémios aos leitores que ligassem para um número de valor acrescentado). Trata-se de uma crescente mercantilização do objecto livro que a consolidação de uma lógica de grupos (Leya, Porto Editora, Fnac) equipara a gadgets como telemóveis, tablets, computadores, plasmas, etc, - veja-se os “catálogos” de sugestões elaborados pela Fnac, Leitura-Bulhosa, Bertrand. Nem as livrarias “alternativas” conseguem escapar a esta lógica de mercantilização do livro (a Livraria Latina, do Porto, foi comprada pelo grupo Coimbra Editora e Leya, ficando com o nome mais ridículo que jamais uma livraria terá tido em Portugal: "Leya na CE Latina").
No entanto continuam a existir espaços de resistência. Para além de mais de duas dezenas de boas livrarias “alternativas” espalhadas pelo país, os leitores muito têm a agradecer a editoras como a Assírio & Alvim, a Relógio d’ Água e muitas outras.
A Mariposa Azual é uma destas editoras. Este ano deu a conhecer duas revelações da poesia portuguesa: Margarida Vale de Gato, com Mulher ao Mar, e Miguel Cardoso com Que se diga que vi como a faca corta, título que aponta para um diálogo com Herberto Helder e não só.
É no campo de batalha da poesia que algo de “bombástico” aconteceu: a publicação de Um Toldo Vermelho por Joaquim Manuel Magalhães, livro que faz a excisão e reescrita de toda a poesia do autor de Dois Crepúsculos. E essa reescrita é de tal forma radical que anula por completo o programa poético que J. M. Magalhães esboçou no poema “Princípio” de Os Dias, Pequenos Charcos (1981): o “voltar ao real”. No campo e contra-campo de batalha que tem sido a poesia portuguesa da última década, algo mudou com o livro de Joaquim Manuel Magalhães: um dos grupos perdeu o seu “pai” tutelar (enlouquecido? Farto de ser ama de leite seco?). Certo é que desde 2008 que a poesia portuguesa se tem vindo a renovar – com o livro de Herberto A Faca não Corta o Fogo, com os livros de Miguel-Manso e este ano com Margarida Vale de Gato e Miguel Cardoso.

segunda-feira, dezembro 06, 2010

Margarida Vale de Gato


DECLARAÇÃO DE INTENÇÕES

Para aqueles que insistem diluir
isto que escrevo aquilo que eu vivo
é mesmo assim, embora aluda aqui
a requintes que com rigor esquivo.

À língua deito lume, o que invoco
te chama e chama além de ti, mas versos
são uma disciplina que macera
o corpo e exaspera quanto toco.

Fazer poesia é árido cilício,
mesmo que ateie o sangue, apenas pus
se extrai, nem nunca pela escrita

um sólido balança, ou se levita.
Então sobre o poema, o artifício,
a borra baça, a mim a extrema luz.

Margarida Vale de Gato, Mulher ao Mar, Mariposa Azual, Lisboa, 2010, p. 9.

Margarida Vale de Gato é tradutora e docente universitária na área da tradução. Mulher ao Mar é o seu primeiro livro de poesia, embora tenha anteriormente publicado alguns poemas em revistas. A inovação poética apresentada neste livro fez de MVG uma das revelações de 2010. Como escreve Hélia Correia no posfácio à 2ª edição de Mulher ao Mar, esta poesia “Não pretende dar origem ao irreconhecível mas ao reconhecível que se estranha, á familiaridade estilhaçada” (p. 73).

terça-feira, novembro 30, 2010

UMA ANTOLOGIA QUE NÃO ME FOI PEDIDA


Camilo Pessanha
Fernando Pessoa
Mário de Sá-Carneiro
Ângelo de Lima
Sophia de Mello de Breyner Andresen
Jorge de Sena
Eugénio de Andrade
Florbela Espanca
Irene Lisboa
Mario Cesariny
António Maria Lisboa
Alexandre O’ Neill
Carlos de Oliveira
António Ramos Rosa
Herberto Helder
Albano Martins
António José Forte
Luiza Neto Jorge
Fiama Hasse Pais Brandão
Gastão Cruz
Fernando Assis Pacheco
Armando Silva Carvalho
António Osório
Nuno Júdice
Joaquim Manuel Magalhães
João Camilo
A M Pires Cabral
Jorge Fallorca
António Franco Alexandre
José Agostinho Baptista
Helder Moura Pereira
Al Berto
Paulo da Costa Domingos
Isabel de Sá
Fátima Maldonado
Luís Miguel Nava
Jorge de Sousa Braga
Adília Lopes
Daniel Maia-Pinto Rodrigues
Teresa Leonor M. Vale
Fernando Pinto do Amaral
António Gancho
Daniel Faria
José Tolentino Mendonça
Carlos Saraiva Pinto
José Miguel Silva
Manuel de Freitas
Ana Paula Inácio
Bénédicte Houart
Mário Rui de Oliveira
Miguel-Manso
Renata Correia Botelho
Miguel Cardoso

Seguindo uma proposta de manuel a. domingos que não me foi endereçada, nem tinha que ser, apresento uma lista para uma antologia de poesia de autores publicados entre 1900 e 2010. (Ao cimo retrato de Luiza Neto Jorge por Escada).

FERNANDO PESSOA


A vulgaridade é um lar. O quotidiano é materno. Depois de uma incursão larga na grande poesia, aos montes de aspiração sublime, aos penhascos do transcendente e do oculto, sabe melhor que bem, sabe a tudo quanto é quente na vida, regressar à estalagem onde riem os parvos felizes, beber com eles, parvo também, como Deus nos fez, contente do universo que nos foi dado e deixando o mais aos que trepam montanhas para não fazer nada lá no alto.
(…)
Que de vezes o próprio sonho fútil me deixa um horror à vida interior, uma náusea física dos misticismos e das contemplações. Com que pressa corro de casa, onde assim sonhe, ao escritório; e vejo a cara do Moreira como se chegasse finalmente a um porto. Considerando bem tudo, prefiro o Moreira ao mundo astral; prefiro a realidade à verdade; prefiro a vida, vamos, ao mesmo Deus que a criou. Assim ma deu, assim a viverei. Sonho porque sonho, mas não sofro o impulso próprio de dar aos sonhos outro valor que não o de serem o meu teatro íntimo, como não dou ao vinho, de que todavia não me abstenho, o nome de alimento ou de necessidade da vida.

Fernando Pessoa / Bernardo Soares, Livro do Desassossego, edição de Richard Zenith, Assírio & Alvim, 2009, p. 190.

Na foto Fernando Pessoa e Aleister Crowley a jogar xadrez. Foto retirada do jornal inglês The Independent

Nota:No dia que fazia 75 anos sobre a sua morte (30 de Novembro de 1935), Fernando Pessoa foi ignorado, tanto pela blogosfera como pelos média tradicionais. O único jornal, de que tive conhecimento, que dedicou espaço a esta data foi... o Jornal de Notícias. Eduardo Lourenço, num depoimento a esse jornal, esclarece a situação em que se encontra Pessoa em Portugal: "(...) Fernando Pessoa é mais vivido por públicos estrangeiros do que aqui, em Portugal. Os Portugueses cansam-se facilmente de tudo, como, aliás, o próprio Pessoa verificou quando disse sermos um povo que nasceu cansado". Que os investigadores da obra pessoana sejam cada vez mais estrangeiros, só confirma este diagnóstico. Mas, sobretudo, realça o quanto Pessoa foi e é mal-amado em Portugal.

sábado, novembro 13, 2010

JORGE ROQUE


CANÇÃO DA VIDA

3

Quero que se foda o sublime. A minuciosa construção do absoluto literário. Assim sem emendas e em rigoroso vernáculo, parece-me mais exacto. Quero que se foda o sublime (desculpem-me a repetição). Prefiro portas fechadas, casas destruídas, chaves de pouco ou nenhum uso para gestos de pouca ou nenhuma glória que são o absoluto onde me posso sentar para beber mais um copo deste vinho que te pinta os lábios e te acende nos olhos esse fulgor de luz, esse pulsar de salto, onde me lanço para voltar ou não voltar, mas ter cumprido do sangue o impulso. Quero que se foda o sublime (começa a saber-me bem repeti-lo, o ritmo sincopado conjugado com a limpidez expressiva). Estou a falar contigo, a viver contigo, a morrer contigo. Estou a dizer-te ama comigo, sofre comigo, morre comigo um pouco mais devagar.

4

Devias querer vida em vez de palavras. Devias saber que as palavras não choram, não riem. Devias, sobretudo, aprender que estas só. Nenhuma palavra poderá viver ou morrer no teu lugar. Escreveste na mensagem que me enviaste: eu não vou poder ser feliz. Senti que estavas a trocar a vida por poesia e nem a dor consegui ouvir. A violência do erro tudo calava e do grito que desesperado lançavas, nem dor nem poesia restavam.

Jorge Roque, "Canção da vida", Telhados de Vidro / 14, pp.89-90, Averno, 2010.

domingo, novembro 07, 2010

GASTÃO CRUZ


JOVENS À PORTA DO CHIADO


Vêem-se ao telemóvel como ao espelho
nos nomes e nos números buscando
o lodo morno dum profundo poço

O seu mundo está preso àquele fio
de presente irreal que não explica
o facto de ser a pele a pele ainda

Tudo fica no raio do olhar
brevemente fictício a vida reduzindo
ao enredo menor das chamas perdidas

das mensagens que vindas ou não vindas
fazem tremer do dia o edifício
Disso vivem fingindo que se vêem

a si somente enquanto o mundo escorre
com a rapidez do dia para o poço

Gastão Cruz, Escarpas, Assírio & Alvim, 2010, p.39.