sábado, abril 05, 2014

JORGE FALLORCA (1949-2014)

Percorro a praia dividido entre a memória e a ausência. Todos
os sentidos me contrariam as pegadas na areia molhada.
As bibliotecas.

Sento-me de frente para o mar, com um saco de laranjas ao
lado. A loucura é uma arte menor.

(Longe do Mundo, p. 76)

quarta-feira, março 26, 2014

ANTÓNIO REIS

Aos domingos
aos domingos o golo no estádio
chega até minha casa
e até ao mar

O próprio sol
é uma imagem de couro no espaço

a chuva
uma imagem de redes batidas

Ah Que fazer
senão esperar pela semana

dormindo

António Reis, Telhados de Vidro / 18, Averno, Lisboa, p. 7 (poema retirado do livro Poemas Quotidianos, Ed. do Autor, 1957)

sábado, fevereiro 22, 2014

DA FOME OLHANDO O BANQUETE



Vivemos uma época de crise económica que talvez seja a maior que atinge os portugueses depois do 25 de Abril de 74. Essa crise tem levado muitas famílias a privações alimentares, ou dito doutra forma, a passar fome. A RTP tem uma longa história de programas culinários de duvidosa intenção. Nos últimos anos esses programas têm sido protagonizados por alguns "chef's" proprietários de restaurantes a que só uma minoria pode aceder. Os mesmos chefes tornaram-se figuras públicas (Sá Pessoa, Avilez, etc), pretendendo-se passar a imagem de que a alta cozinha é uma arte. Para cúmulo, a RTP apresenta agora um concurso, Chefs Academy, apresentado por Catarina Furtado onde se pretende "formar" Chefes. Tudo isto é ridículo e vergonhoso. Porquê tanto programa que pretende ensinar os portugueses a cozinhar quando muitos passam fome? E não seria mais natural, mais próprio de um serviço público de televisão, que fossem nutricionistas que dessem alguma informação sobre uma alimentação saudável, com alimentos baratos? Parece que não. Porque estes programas não são inocentes - eles têm uma função política que decorre da ideologia neoliberal que está por todo o lado. E a televisão é por excelência uma máquina de propaganda política. Nestes programas os telespectadores são remetidos para a função de esfomeados que se tornam mirones dos banquetes dos senhores. É este o estado a que chegamos, e para o qual a televisão como aparelho ideológico do Estado dá o seu importante contributo.

sexta-feira, janeiro 17, 2014

AREIA PARA OS OLHOS



Nos anos 80 reivindicavam o direito à diferença. Ainda a polícia psiquiátrica não tinha chegado completamente a acordo para retirar a homossexualidade dos seus manuais. Depois vieram as fantasias (sexuais) das feministas transformadas em teorias, os gay studies, os queer studies invadindo as universidades. A ordem não era só para sair do armário – era também criar algo a que se chamou, do outro lado da barricada, “agenda gay”. Os gays passavam a imitar os casais heterossexuais, mostravam a sua ternura para a televisão como arma de arremesso. Era, é ainda e cada vez mais, o supremo do kitsch. Numa altura em que os casais hétero se divorciam, eles querem casar e ser mamã e mamã, papá e papá de uma criança raptada legalmente por uma assistente social. E têm o direito de fazê-lo. Não é por ai que anda o problema. O problema começa na forma acirrada, na imitação histérico-fundamentalista de um talibã quando acedem ao chamado espaço público. E são apenas uma minoria dentro de outra minoria, além das tais feministas, aparentemente heterossexuais, as mais histéricas. Ora, numa altura em que se iniciou uma campanha, que além de eleitoral, tenta provar que este neo-liberalismo criminoso é mesmo a receita triunfante, que melhor coelho podiam os consultores de comunicação do PSD tirar da cartola que um referendo que metesse homossexuais e as suas madrinhas ao barulho? E já se sabe: do outro lado vão estar os ratos de sacristia, as famílias numerosas em nome de Deus, etc. Tudo isto já foi visto em programas de televisão com bastante audiência e peixeirada. Foi uma ideia genial (adopta, não adopta); já passou na Assembleia da República, agora falta o parecer do Tribunal Constitucional e do Aníbal. Se conseguir passar estes dois obstáculos, o referendo vai embalar o bom e manso povo português até à troika se ir embora.   

terça-feira, dezembro 31, 2013

LIVROS EM 2013

Aqui fica uma selecção de livros lidos em 2013.

A Cura, Pedro Eiras, Quidnovi
O Verão de 2012, Paulo Varela Gomes, Tinta da China
Desobediência, Eduardo Pitta, Dom Quixote
Viagem a Tralalá, Wladimir Kaminer, Tinta da China
Pássaros na Boca, Samanta Schweblin, Cavalo de Ferro
UTZ, Bruce Chatwin, Quetzal
Em Busca da Idade Média, Jacques Le Goff, Teorema
Mais um Dia de Vida, R. Kapuscinski, Tinta da China
Sono, Haruki Murukami, Casa das Letras
Apanhar Ar, Adília Lopes, Averno

Para além destes livros 10 livros, de que 6 foram publicados em 2013, há a registar a publicação de dois grandes livros: Ulisses de James Joyce, numa nova tradução de Jorge Vaz de Carvalho, editada pela Relógio d' Água; e de Gonçalo M. Tavares mais um objecto literário inovador: Atlas do Corpo e da Imaginação (Caminho). Para além destes livros pesados, em vários sentidos, registe-se mais um livro de Ana Teresa Pereira - As longas tarde de chuva em Nova Orleães (Relógio d' Água).
Quanto ao resto, no espaço literário, continuou-se a escavar (uma metáfora utilizada por José Sócrates no seu comentário dominical). E esse escavar significa um cada vez maior ódio ao livro por parte de quem o comercializa. O estúpido Acordo Ortográfico tem sido adoptado por cada vez mais editoras. Não se percebe. Para além de uma enorme confusão o AO mostra a subserviência de Portugal perante os PALOP. Mas neste caso, como no da política, o bom aluno fica sozinho. Os PALOP´s, especialmente o Brasil ainda não adoptaram este (des)acordo.

domingo, dezembro 15, 2013

Pedro Tiago

UMA CONVERSA DE ALMOFADA

revoltavas-te, as tuas costas dobradas,
inclinadas para a frente, os seios tocando
nas pernas enquanto procuravas uma meia
debaixo da cama e franzias as sobrancelhas
numa cara de criança que acorda tarde:
« não percebo porque é que a poesia
tem de ser tão absurda ». e eu respondia-te
que tem de ser assim, porque o mundo
já está cheio de coisas concretas e práticas
que não fazem sentido nenhum.

T, DE TELEFONE

entende esta verdade,
coberta de musgo e metáforas: a literatura
já não é nada. dizem-me que não posso
escrever isto (isto), porque estou inserido na
contemporaneidade que, de tão aberta, literaria-
mente, me fecha todas as mãos e todos os braços.
e não posso usar metáforas nem lirismo nem posso
repetir os modernistas, porque o modernismo
já passou. e dizem-me que se quero ser lido
tenho de fazer assim, mas nunca entendo muito
bem o que seja isso. vou continuando a ver
velhos a dar milho aos pombos, nos
parques e jardins públicos, ao sol e à chuva,
e isso chega-me. a literatura pode já não ser
nada, mas também, verdade seja dita,
não a pretendo nisto.

Tiago Pedro, O Comportamento das Paisagens, Artefacto, Lisboa, 2011, pp. 46 e 64

segunda-feira, novembro 04, 2013

A POLÍTICA DO MAL



Muitas vezes o Mal se manifestou na História da Humanidade – refiro-me ao mal que tem por origem acções humanas. O Holocausto e o Gulag foram formas extremas da manifestação desse Mal. Os tempos que atravessamos, em Portugal e noutros países do sul da Europa, não podem ser comparados a esse Mal extremo. Mas um mal a que H. Arendt chamou “banalidade do mal”, conceito discutível, que a pensadora judia aplicou como forma de explicar o Mal do Holocausto, parece retornar.
As políticas e as figuras que têm governado Portugal nos últimos dois anos, encaixam-se nessa “banalidade do mal” pela sua mesquinhez, estupidez e incompetência. A acrescentar a essas figuras nacionais, e encontrando-se Portugal sob resgate, devemos acrescentar a figura de Angela Merkel, que ressuscita numa pequena escala o Mal alemão.
Vivemos sob uma política do mal, de uma banalidade do mal, não no sentido que H. Arendt deu a essa expressão como explicação do nazismo, mas no simples sentido comum com que percebemos esta expressão. O desemprego, o empobrecimento, o rendimento zero, a emigração, a perda da casa que não pode continuar a ser paga ao banco, a fome – tudo isto tem milhões de rostos por detrás com a sua história própria, as marcas de um sofrimento. Para os executores das políticas que levam os portugueses e outros povos europeus a estas situações, existe a desculpa de não haver alternativa, de serem políticas necessárias para que os mercados voltem a confiar em nós. De facto, com os executores destas políticas não há alternativa, porque este é um projecto ideológico, que corresponde a um desprezo pela vida  das pessoas.