terça-feira, fevereiro 24, 2015
Mário Rui de Oliveira
SANGUE
Depois chegavam os ventos
a tarde arrastava uma chuva
de flores brancas
tão delicadas
doía-me uma luz em teus olhos
que não conseguia
sombra assustada, minha vida
o ar libertava um azul
nesses passeios lentos pelo pomar
descendo às laranjeiras
o sangue ardia
*
FS-93-29
Meu pai foi caseiro
com setecentos escudos de renda
comiam-se as migas e a teresinha apontava
no velho livro de contas
um quilo disto e dois daquilo
e umas sapatilhas bondy
para o menino rasgar
na velha carrinha vermelha
o amigo da fábrica
que mais tarde o traíria
trabalhava-se duramente
parecia uma escravidão
até a casa foi vendida
vieram doenças
telefonemas de urgência
dias divididos à sombra do passado
esmagadeira das uvas
prensas antigas
tesouras da poda
esquecidas
cheias de ferrugem
agora a vida é muito diferente
*
ALMA
A alma é uma claridade discutível
cria laços com a escuridão
seu esplendor de diamante
provém da aluviões
lentamente depositados
Mario Rui de Oliveira, Bairro Judaico, Lisboa, Assírio & Alvim, 2003, pp.11, 13 e 34.
Mário Rui de Oliveira nasceu em 1973, em Joane. Estudou teologia e direito canónico. Publicou em 2002, com prefácio de Eugénio de Andrade, O Vento da Noite (Assírio & Alvim) e que se seguiu Bairro Judaico. A sua poesia (escassa) é marcada por motivos religiosos ou aparentemente autobiográficos. Pode ser inserido num grupo de poetas a que chamaram "poetas de Deus" e que tem em Tolentino Mendonça e Daniel Faria os seus expoentes mais próximos.
terça-feira, janeiro 27, 2015
AUSCHWITZ, 1945 – ATENAS, 2015
Há 70 anos o campo de concentração nazi de Auschwitz era
libertado por tropas Soviéticas. Era o fim do Holocausto empreendido pela
Alemanha de Hitler. Auschwitz, onde morreram mais de um milhão de pessoas, terá
sido o lugar de máximo terror e horror do século XX e talvez da História da
humanidade. Por isso a sua constante referência – o filósofo T. Adorno escreveu
que depois de Auschwitz não era possível voltar a escrever poesia. Mas o tempo
passou, ocorreram os julgamentos de Nuremberga, a desnazificação, o julgamento
de Eichmann, na década de 1960, em Jerusalém, do qual Hannah Arendt extraiu a
sua tese da “banalidade do mal”. Muitos dos responsáveis pelo Holocausto
conseguiram fugir, viver incógnitos em países como a Argentina. Na Alemanha,
dividida até 1989 pelo muro de Berlim, a vida continuou, a indústria da Alemanha
ocidental prosperou, e as grandes empresas que utilizaram mão-de-obra escrava
cedida pelo nazismo voltaram a tornar-se grandes exportadoras. Houve sempre um
esquecimento do horror do regime nazi sem o qual a prosperidade da Alemanha não
seria possível. Depois da reunificação a Alemanha terá passado por momentos
difíceis, mas a águia levantou-se. E quem não quer ter um BMW, um Mercedes, ou
mesmo um Audi? A magnífica tecnologia alemã, a sua produtividade baseada muito
num sistema de ensino que aos 10 ou 12 anos selecciona o futuro dos seus
cidadãos, espanta o mundo. Mas também os seus escritores, a sua filosofia, os
seus compositores. Como pode uma terra de gente tão grandiosa como Kant, Hegel,
Nietzsche, Heidegger, na filosofia, ou Goethe, Holderlin, Novalis, na
literatura, ou ainda nas música Bach e Beethovan, entre muitos outros, ser
também a pátria do crime mais hediondo contra a humanidade?
A verdade é que a Alemanha renasceu. Não é a Alemanha nazi,
mas a actual Alemanha de Angela Merkel, a Alemanha que chama “porcos” (PIIGS)
aos países do sul, a Alemanha da austeridade é uma versão light da Alemanha
nazi. Porque a austeridade tem feito vítimas nos países em que foi implantada –
e vítimas quer dizer mortos, pessoas com depressão, desesperados sem emprego,
fome, pessoas que ficam sem a casa que não podem continuar a pagar aos agiotas
bancários. Em Portugal tudo isso tem um responsável político: Pedro Passos
Coelho e o seu governo, com destaque para Vítor Gaspar, que embora já tenha
abandonado o governo é o ideólogo dessa política de destruição. Pela Europa do
sul, a Europa dos “porcos”, a direita tem executado as ordens de frau Merkel.
Até que domingo os gregos elegeram o Syriza. É certo que as
coisas não são comparáveis porque a dimensão das atrocidades é diferente, mas é
como se 70 anos depois da libertação de Auschwitz houvesse uma nova libertação –
a da austeridade. É certo que os povos do sul da Europa não podem ter como
certa e imediata essa libertação, mas há uma forte promessa.
Ontem Alexis Tsipras tomou posse como primeiro-ministro grego
e a primeira coisa que fez foi uma homenagem a 200 membros da resistência grega
fuzilados por nazis na II Guerra Mundial. O primeiro acto ou medida de um
primeiro-ministro é sempre simbólico e sintomático e Alexis Tsipras ao
homenagear aqueles que foram fuzilados pelos nazis alemães estava também a
homenagear aqueles que foram vítimas da austeridade – pessoas que não foram
fuziladas mas morreram por falta de assistência médica ou suicídio. De
Auschwitz, 1945, a Atenas, 2015, vai uma longa distância temporal, mas também
pequenas coincidências.
domingo, janeiro 25, 2015
SYRIZA: A VITÓRIA DE UMA NOVA POLÍTICA
Ao quinto ano de recessão, de completa destruição de um país
empreendida pela Europa comandada pela chanceler Merkel, o povo grego ergueu-se
do fundo de um poço. Ao votar maioritariamente no Syriza (apelidado de extrema-esquerda)
os gregos estão a matar o lobo que lhes guardava as galinhas; estão a
reconquistar a sua dignidade. Mas mais que isso estão a permitir que a Europa antidemocrática,
onde o sul tem sido esmagado pelo norte, volte não só à democracia mas a uma
nova forma de fazer política. Uma política que se faça para as pessoas e não
para as grandes empresas e grupos financeiros.
A Grécia, o povo grego, sofreram muito ao longo destes
últimos cinco anos – alguns perderam a vida na sequência das dementes políticas
exigidas pela troika. É tempo de acabar com as estúpidas exigências da troika,
é tempo da Europa do sul, incluindo Portugal, exigir aos seus governantes que
governem em seu nome. Com a vitória do Syriza pode iniciar-se na Europa uma
nova forma de fazer política que tem em partidos como o Podemos, de Espanha, um
dos seus expoentes. Não será um milagre, nem uma tarefa fácil destruir toda a
escumalha burocrática, financeira e espectacular que nos governa. Mas talvez
hoje seja o primeiro dia de uma nova era, uma nova política que se ergue.
quarta-feira, janeiro 14, 2015
OLGA GONÇALVES
(Moledo. Uma hora depois. Quando fui sentar-me entre
as ervas finas da primeira duna. Onde há camarinhas e as
austrálias podem ver o mar.)
1. Uma gaivota num tremor de frio
fechou os olhos sob os meus cabelos
(a paz já me não dói?)
2. Há sangue na orla das vagas
há maravilhamento nos ecos da praia
- a paz deixou de doer
*
Como a palavra nua
que partiu sem regresso
a angústia voltou
*
Sentir o cobre da argola do portão
agarrar os passos que se deram
para trás num caminho de rostos
*
As alvoradas brancas nasceram
para o lado de lá do desespero
campo aberto
Olga Gonçalves, Movimento, Círculo de Poesia / Moraes Editores, Lisboa, pp. 35, 38, 45, 50.
domingo, janeiro 11, 2015
DESFILE CONTRA O TERRORISMO COM TERRORISTAS
Chateia. Chateia toda esta hipocrisia de estado e da
sociedade do espectáculo em volta do ataque ao Charlie Hebdo. Chateia até á
ponta de um corno de um boi ver todos estes líderes desfilarem, eles, ou pelo
menos alguns deles, também terroristas de Estado, quer directamente (ordenando
aos seus serviços secretos a execução pessoas – como no caso do líder Israelita
e de Abbas, líder que foi de uma organização terrorista), quer indirectamente
como é o caso do terrorismo financeiro de Frau Merkel – cuja contabilidade de
vítimas no sul da Europa está ainda por fazer. E aquele senhor do Mali? Deve
ser um santo. Chateia tudo isto. Não conheço o tipo de cartoonismo que o
Charlie Hebdo fazia, mas certamente que não se limitava a fazer caricaturas de
Maomé, certamente que Hollande tinha sido várias vezes alvo dos cartoonistas
que foram assassinados na quarta-feira, ele e também Merkel e muitos dos outros
que ali desfilavam em nome da liberdade de imprensa, da liberdade de expressão,
palavras por estes dias repetidas à exaustão do nojo. O Charlie Hebdo não
acabou quando dez elementos da sua redacção foram assassinados mas quando o que restava do jornal aceitou o abraço do poder político, a
farsa que se viu na manifestação de domingo.
Este atentado, como outros perpetrados na Europa, vai
certamente servir para limitar as liberdades de circulação na Europa – contra o
espírito da UE – e para incutir ainda mais o medo nos cidadãos europeus que
andam como ovelhas mansas guiados pela sociedade do espectáculo, aceitando o
inaceitável, perdendo a democracia.
PS: a esta manifestação não faltou o nosso querido líder Pedro Manuel
sábado, janeiro 03, 2015
quarta-feira, dezembro 31, 2014
LIVROS EM 2014
Este ano
pouco ou nada mudou no que ao comércio dos livros e sua edição diz respeito. É
certo que quando a Porto Editora conseguiu, não se sabe por que carga de água
ou fogo, editar com a sua chancela o último livro de Herberto Helder, houve a
percepção, por parte de algumas das mais brilhantes cabeças da pátria, de que
se estava a abusar do maior poeta português vivo. Ou então que o poeta tinha
finalmente enlouquecido, como há desde quase cinquenta anos vinha ameaçando
(veja-se o início do conto “Estilo” do livro Os Passos em Volta, ou algumas
passagens de Photomaton & Vox). Verdade que o livro, A Morte sem Mestre,
esgotadíssimo, não agradou a alguns críticos, a quem certa linguagem erótica,
vinda do vate octogenário, talvez tenha escandalizado. Diferente seria quando
uma ex-jornalista, com carácter de urgência, resolveu escrever em terras
alentejanas, numa cozinha, enquanto o verão passava, um livro que utilizava uma
linguagem vernacular muito idêntica à do nosso tão celebrizado vate H H.
Entenda-se, então, uma coisa: o que uma senhora pode escrever (e dizer) não é o
mesmo que um velho de 80 anos pode. Porque a senhora, dona das suas curvas, faz
com o seu sexo o que lhe apetece; tem os amantes que quer e ninguém tem nada a
ver com isso – muito menos os amantes. Já do velho vate, só fica bem o flirt
com a morte. Mesmo porque algumas palavras, ditas ou escritas por varão, podem
configurar o crime nefasto de assédio sexual. Portanto, mesmo em questões
literárias, e numa altura em que o autor regressou, como um Lázaro da tumba
estruturalista, há que ter todo o cuidado, quando se é um macho branco e
heterossexual, mesmo que de um país que esteve sob o domínio da obscena troika.
É claro que
muitos mais livros se publicaram ao longo de 2014, com o grande destaque para o
lixo do costume, de editores idiotas e livreiros imbecis – com as honrosas
excepções, como em tudo. A situação de destruição que o país vive veio dar
fôlego a um género que em Portugal tinha pouca expressão: os livros de jornalismo,
ou para tentar ser mais exacto
grandes reportagens em livro. Diria que finalmente. Finalmente há jornalistas
que escrevem sobre o que sabem fazer, o que fazem no dia-a-dia, mas de uma
forma mais prolongada, com mais caracteres. Mas desengane-se que isto acabou
com a lógica do jornalista-vedeta que escreve o seu romance anualmente. Não. E
para o confirmar tivemos mais livros de José Rodrigues dos Santos e de Miguel
Sousa Tavares. Mas os livros que tentam desmascarar o jogo de cadeiras por
detrás do poder político, ou quem são os Donos de Portugal, ou aprofundar a
história do BES, são livros de reportagem e investigação que faziam falta,
principalmente se atentarmos que o panorama mediático português é dominado por
grupos empresariais pouco interessados em que a verdade seja publicada nos seus
jornais – e muito menos nas televisões. Temos assim que na falta de um
jornalismo plural – em Portugal, ao contrário do que existe em França ou mesmo
na Espanha, não há jornais de esquerda, tentando todos parecer um enorme bloco
central jornalístico – cabe a jornalistas independentes fazer vir ao de cima a
verdade que se esconde nas pequenas notícias. Jornalistas como Paulo Pena (a
colaborar agora com o Público), autor de Jogos
de Poder – Toda a verdade sobre os bancos portugueses e a forma como criaram a
dívida que todos temos de pagar (esfera dos livros) ou mesmo investigadores
como Gustavo Cardoso, entre outros, têm feito esse trabalho. Trata-se, por
vezes, de escrever aspectos da história recente de Portugal que só no formato
livro podem ganhar inteligibilidade. Outras vezes é tão só uma forma de ter
ainda mais projecção mediática e ganhar algum dinheiro fazendo favores à
ideologia que nos governa ou apresentando propostas dúbias (veja-se o caso do
jornalista da SIC José Gomes Ferreira).
Nas actuais
circunstâncias, em que as livrarias parecem lojas de chinês, ou talvez em que
as livrarias podiam tornar-se lojas de chinês, já que apenas procuram o lucro
de forma acéfala, há que encontrar outros lugares e outras formas de leitura
que fazem uma ponte entre o passado e o futuro. Não é preciso ser um leitor
exigente para perceber que se ganha muito mais, em todos os aspectos,
frequentando e sendo leitor de bibliotecas – a única coisa que se perde é o
livro que uma vez lido tem de ser devolvido. As bibliotecas, mesmo as
municipais, são formas de um encontro feliz com os livros como objectos de
saber, de reflexão e de gozo. Porque as bibliotecas são lugares de encontro com
o passado, com livros marcantes da nossa literatura, filosofia, história ou
outros saberes e sabores. E ali estão esses livros já marcados pelo tempo, já
lidos, sublinhados (e ler um livro sublinhado, de uma biblioteca, é entrar em
diálogo com alguém que desconhecemos). Talvez que esta crise tenha aumentado o
número de leitores em bibliotecas, evitando a decadência das mesmas, esses
lugares que ainda restam de silêncio e murmúrio (para além das Igrejas). Mas,
infelizmente, as bibliotecas representam o passado.
O futuro
apresenta-se através das tecnologias de comunicação digital. É a internet o
grande repositório de saber, não só de um saber tosco, inexacto, que de certa
forma cria uma nova epistemologia, mas também de alguns dos mesmos livros que
se encontram nas bibliotecas. No entanto, a mudança de uma leitura analógica
(digamos assim) para uma leitura digital é um processo complexo – desde os
hábitos dos leitores até direitos de autor. E é também uma nova questão da
ética de leitura: já não se trata de ler por prazer ou por dever (por exemplo),
mas de ler contra o sistema ou a favor do sistema – e ai a questão volta ao
início, entre o lixo e o luxo – independentemente do meio.
Livros
esquecidos de 2014 – uma (pequena) lista
João César Monteiro – Obra Escrita 1,
Livraria Letra Livre
João Urbano – Revoada, ed. Nada
Dulce Maria Cardoso – Tudo são Histórias de
Amor, tinta-da-china
Paulo Varela Gomes – Hotel, tinta-da-china
Luís Filipe de Castro Mendes – A Misericórdia
dos Mercados, Assírio & Alvim
Daniela Arbex – Holocausto Brasileiro, Guerra
e Paz
Giorgio Agamben – A Potência do Pensamento,
Relógio d’ Água
Paulo da Costa Domingos - «Voici la poésie ce
matin et pour la prose il y a les jornaux », Averno
terça-feira, dezembro 23, 2014
Andreia C. Faria
Vesti-me sempre com as roupas de um primo
da irmã mais velha
ou do último amor
Assim sou-lhes leal:
os dedos através dos bolsos
aflorando o sexo, a nuca
beijada de borboto, o hálito
suspenso nas golas da camisa
Com eles tropeço
na estreiteza das coxas, como cavalos
dormimos juntos no mesmo disfarce
Nada em mim cresce de que não sejam a forma
Nada obsceno
que as suas roupas usadas não cubram
*
Rachado o tronco - ardida a lenha
desabrido o lugar de onde vinha
a melodia se assim
puder chamar os nomes
redondos que em lembrança
a boca esgota
pergunto
(a textura omissa do pomar)
a que fruto dar, agora, atenção desmedida
*
BREAKING THE WAVES
Deus existe
Quer estar sozinho, suprimiu
os sinos e os ladrilhos mais sonoros
e às mulheres, para não parecer
quem é, sacode antes de entrar
os cascos sujos
Andreia C. Faria, Flúor, Textura, 2013, pp. 8, 38 e 55.
Andreia C. Faria estreou-se com o livro de poesia De haver relento (Cosmorama, 2008). Flúor é o seu segundo livro. Venceu em 2013 o Prémio Jovens Criadores. A sua poesia, desalinhada de estéticas grupais, em Flúor atinge uma grande qualidade. Uma poeta a ter em atenção para o século XXI.
da irmã mais velha
ou do último amor
Assim sou-lhes leal:
os dedos através dos bolsos
aflorando o sexo, a nuca
beijada de borboto, o hálito
suspenso nas golas da camisa
Com eles tropeço
na estreiteza das coxas, como cavalos
dormimos juntos no mesmo disfarce
Nada em mim cresce de que não sejam a forma
Nada obsceno
que as suas roupas usadas não cubram
*
Rachado o tronco - ardida a lenha
desabrido o lugar de onde vinha
a melodia se assim
puder chamar os nomes
redondos que em lembrança
a boca esgota
pergunto
(a textura omissa do pomar)
a que fruto dar, agora, atenção desmedida
*
BREAKING THE WAVES
Deus existe
Quer estar sozinho, suprimiu
os sinos e os ladrilhos mais sonoros
e às mulheres, para não parecer
quem é, sacode antes de entrar
os cascos sujos
Andreia C. Faria, Flúor, Textura, 2013, pp. 8, 38 e 55.
Andreia C. Faria estreou-se com o livro de poesia De haver relento (Cosmorama, 2008). Flúor é o seu segundo livro. Venceu em 2013 o Prémio Jovens Criadores. A sua poesia, desalinhada de estéticas grupais, em Flúor atinge uma grande qualidade. Uma poeta a ter em atenção para o século XXI.
quinta-feira, dezembro 18, 2014
ALEXANDRE VARGAS
MA BLONDE
Ouve, vagueio num espaço de luz cercado dum silêncio...
é um silêncio e não o teu... vejo claramente olhando as mesas
o meu perfil que se volta docemente e não és tu,
em que braços te suspendes e flutuas os teus lábios
rigorosos de planície quando voas?...
Olha, fixa e furtivamente olha superiormente,
ó Cyborg que enorme já te ergues no teu luto,
a boca entreaberta como um ovo que é olhado
na doce e fresca idade que em breve nos espera
entoa já o canto dos fantasmas que dão fruto.
*
CYBORG (excerto)
Não sei por que modo ou forma entrei em Cyborg.
À entrada lembro-me dos pássaros tenebrosos e eu a hesitar
orgasmático naquele labirinto cósmico
onde os gigantes poderosíssimos nas suas terríveis bielas
nos falam da raça superior. Eu estava vestido
de negro e acordava num sítio inacessível onde
estivesse a começar a levantar-me. Uma porta lassa,
no seu crepitar de ídolo de barro, verificava as
grandes colunas ibéricas que, nos corredores das suas
engrenagens, começavam a erguer-se. [...]
Alexandre Vargas, Cyborg (1978), Lisboa, Livros Horizonte, 1979, pp. 16 e 27.
Ouve, vagueio num espaço de luz cercado dum silêncio...
é um silêncio e não o teu... vejo claramente olhando as mesas
o meu perfil que se volta docemente e não és tu,
em que braços te suspendes e flutuas os teus lábios
rigorosos de planície quando voas?...
Olha, fixa e furtivamente olha superiormente,
ó Cyborg que enorme já te ergues no teu luto,
a boca entreaberta como um ovo que é olhado
na doce e fresca idade que em breve nos espera
entoa já o canto dos fantasmas que dão fruto.
*
CYBORG (excerto)
Não sei por que modo ou forma entrei em Cyborg.
À entrada lembro-me dos pássaros tenebrosos e eu a hesitar
orgasmático naquele labirinto cósmico
onde os gigantes poderosíssimos nas suas terríveis bielas
nos falam da raça superior. Eu estava vestido
de negro e acordava num sítio inacessível onde
estivesse a começar a levantar-me. Uma porta lassa,
no seu crepitar de ídolo de barro, verificava as
grandes colunas ibéricas que, nos corredores das suas
engrenagens, começavam a erguer-se. [...]
Alexandre Vargas, Cyborg (1978), Lisboa, Livros Horizonte, 1979, pp. 16 e 27.
Alexandre Vargas nasceu em Lisboa em 1952. Publicou os seguintes livros de poesia: Morta a sua fala (1977), Cyborg (1979), Vento de pedra (1981), Organum (1984) e Múltiplo de Três (1997).
Cyborg é dos poucos livros da poesia portuguesa que se enquadra dentro da ficção-científica. Um outro exemplo é uma das secções de Quatro Caprichos de António Franco Alexandre.
quarta-feira, dezembro 10, 2014
ANTÓNIO OSÓRIO
Amo-te
com pressa
de não acabar o amor
*
BOSCH, O INÍCIO
I Tríptico das Delícias
Enquanto Adão, Eva e o mais
eram criados, um gato abocava
o primeiro rato.
Iníludivel a prepotência
do felino. Adão soerguido
Eva desejava, nudez sua. E Deus
abençoava os seus viventes
consagrando o bem e o mal que lhes fizera.
António Osório, Emigrante do Paraíso, s/l [edição brasileira, antologia dos primeiros livros, com prefácio de Carlos Nejar] Massao Ohno-Roswitha Kempf / editores, 1981
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