sexta-feira, abril 24, 2015

REGRESSO À CENSURA PRÉVIA



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Quando se cumprem 41 anos sobre o 25 de Abril de 1974, que pôs fim a um regime ditatorial de que uma das suas “armas” foi a censura prévia de jornais, rádio e televisão, eis que o PSD, CDS e PS se preparam para reinstaurar essa censura numa lei sobre a cobertura das próximas eleições legislativas. Para já é um projecto de lei, mas mesmo que não venha a dar entrada para votação no parlamento fica a intenção altamente censória, indigna de um país democrático. No projecto de lei dos três partidos que nestas últimas décadas têm passado pelo governo, os meios de comunicação social teriam que apresentarem à CNE (Comissão Nacional de Eleições) e à ERC (Entidade Reguladora da Comunicação) um plano prévio de cobertura das eleições legislativas. Para além disso, os debates entre partidos não podiam incluir partidos que neste momento não estão representados na Assembleia da República, como é o caso do Livre/Tempo de Avançar ou do partido protagonizado por Marinho Pinto, o PDR. Por aqui se vê a intenção dos partidos que prepararam o projecto de lei: cientes de que o eleitorado os tem penalizado nas últimas eleições europeias e autárquicas, bem como nas sondagens, os três partidos do “arco da governação” procuram uma forma de os cidadãos não terem acesso a alternativas políticas. Este é uma atitude de uma ditadura e não de um país democrático. Talvez não fosse de espantar que PSD e CDS apresentassem uma lei deste teor, porque o que estes dois partidos têm feito nos últimos quatro anos no governo tem pouco de democrático e de respeito pelas pessoas. Mas o PS entrar neste esquema demonstra que depois da apresentação do estudo encomendado a 12 economistas, em que nada de substancial muda na política económica se o PS for governo, António Costa já está em estado de desgraça. Embora os portugueses tenham sido enganados nas últimas legislativas, não podem ser tratados como mentecaptos. Os partidos que nos têm governado têm de perceber que tiveram demasiado tempo para mostrar que a III República é mais que uma partidocracia. Se não o perceberam – e efectivamente parece que ainda não perceberam tal evidência –, chegou a hora de uma mudança, de novos partidos aparecerem, de novas formas de fazer política. Veja-se o exemplo espanhol onde partidos como o Podemos ou o Cidadanos vão disputar a vitória nas próximas legislativas. Contra isto os velhos partidos nada podem fazer, a não ser que queiram destruir por completo as democracias.

domingo, abril 12, 2015

Giorgio Agamben: O pensamento é a coragem do desespero *

 
Nascido em Roma em 1942, Giorgio Agamben tem uma trajetória peculiar. Nos anos de formação, o jovem estudante de Direito andava com artistas e intelectuais agrupados em torno da autora Elsa Morante. Uma Dolce Vita? Um momento de amizades intensas, em todo caso. Giorgio Agamben apareceu como o apóstolo Filipe em O Evangelho segundo são Mateus (1964) de Pier Paolo Pasolini. Pouco a pouco, o jurista virou-se para a filosofia, após um seminário de Heidegger em Thor-en-Provence. Então ele lançou-se sobre a edição das obras de Walter Benjamin, um pensador que nunca esteve longe de seu pensamento, bem como Guy Debord e Michel Foucault. Giorgio Agamben tornou-se, assim, familiarizado com um sentido messiânico da História, uma crítica à sociedade do espetáculo, e uma resistência ao biopoder, o controle que as autoridades exercem sobre a vida – mais propriamente dos corpos dos cidadãos. Poético, tal como político, seu pensamento escava as camadas em busca de evidências arqueológicas, fazendo o seu caminho de volta através do turbilhão do tempo, até as origens das palavras. Autor de uma série de obras reunidas sob o título latino Homo sacer, Agamben percorre a terra da lei, da religião e da literatura, mas agora se recusa a ir… para os Estados Unidos, para evitar ser submetido a seus controles biométricos. Em oposição a essa redução de um homem aos seus dados biológicos, Agamben propõe uma exploração do campo de possibilidades. Nesta entrevista a Juliette Cerf em Trastevere, o filósofo italiano contesta quem o vê como pessimista, cita Marx e sustenta: “condições desesperadoras da sociedade em que vivo me enchem de esperança”. Confira:

Berlusconi caiu, como vários outros líderes europeus. Tendo escrito sobre a soberania, quais os pensamentos que esta situação sem precedentes provocar em você?

O poder público está perdendo legitimidade. A suspeita mútua se desenvolveu entre as autoridades e os cidadãos. Essa desconfiança crescente tem derrubado alguns regimes. As democracias são muito preocupadas: de que outra forma se poderia explicar que elas têm uma política de segurança duas vezes pior do que o fascismo italiano teve? Aos olhos do poder, cada cidadão é um terrorista em potencial. Nunca se esqueça de que o dispositivo biométrico, que em breve será inserido na carteira de identidade de cada cidadão, em primeiro lugar, foi criado para controlar os criminosos reincidentes.

Essa crise está ligada ao fato de que a economia tem roubado um caminho na política?

Para usar o vocabulário da medicina antiga, a crise marca o momento decisivo da enfermidade. Mas hoje, a crise não é mais temporária: é a própria condução do capitalismo, seu motor interno. A crise está continuamente em curso, uma vez que, assim como outros mecanismos de exceção, permite que as autoridades imponham medidas que nunca seriam capazes de fazer funcionar em um período normal. A crise corresponde perfeitamente – por mais engraçado que possa parecer – ao que as pessoas na União Soviética costumavam chamar de “a revolução permanente”.

A teologia desempenha um papel muito importante em sua reflexão de hoje. Por que isso?

Os projetos de pesquisa que eu tenho recentemente realizado mostraram-me que as nossas sociedades modernas, que afirmam ser seculares, são, pelo contrário, regidas por conceitos teológicos secularizados, que agem de forma muito mais poderosa, uma vez que não estamos conscientes de sua existência. Nós nunca vamos entender o que está acontecendo hoje, se não entendermos que o capitalismo é, na realidade, uma religião. E, como disse Walter Benjamin, é a mais feroz de todas as religiões, porque não permite a expiação… Tome a palavra “fé”, geralmente reservado à esfera religiosa. O termo grego correspondente a este nos Evangelhos é pistis. Um historiador da religião, tentando entender o significado desta palavra, foi dar um passeio em Atenas um dia quando de repente ele viu uma placa com as palavras “Trapeza tes pisteos”. Ele foi até a placa, e percebeu que esta era de um banco: Trapeza tes pisteos significa: “banco de crédito”. Isto foi esclarecedor o suficiente.

O que essa história nos diz?

Pistis, fé, é o crédito que temos com Deus e que a palavra de Deus tem conosco. E há uma grande esfera em nossa sociedade que gira inteiramente em torno do crédito. Esta esfera é o dinheiro, e o banco é o seu templo. Como você sabe, o dinheiro nada mais é que um crédito: em notas em dólares e libras (mas não sobre o euro, e que deveriam ter levantado as sobrancelhas…), você ainda pode ler que o banco central vai pagar ao portador o equivalente a este crédito. A crise foi desencadeada por uma série de operações com créditos que foram dezenas de vezes re-vendidos antes que pudessem ser realizados. Na gestão de crédito, o Banco – que tomou o lugar da Igreja e dos seus sacerdotes – manipula-se a fé e a confiança do homem. Se a política está hoje em retirada, é porque o poder financeiro, substituindo a religião, raptou toda a fé e toda a esperança. É por isso que eu estou realizando uma pesquisa sobre a religião e a lei: a arqueologia parece-me ser a melhor maneira de acessar o presente. Os europeus não podem acessar o seu presente sem julgarem o seu passado.

O que é este método arqueológico?

É uma pesquisa sobre a archè, que em grego significa “início” e “mandamento”. Em nossa tradição, o início é tanto o que dá origem a algo como também é o que comanda sua história. Mas essa origem não pode ser datada ou cronologicamente situada: é uma força que continua a agir no presente, assim como a infância que, de acordo com a psicanálise, determina a atividade mental do adulto, ou como a forma com que o big bang, de acordo com os astrofísicos, deu origem ao Universo e continua em expansão até hoje. O exemplo que tipifica esse método seria a transformação do animal para o humano (antropogênese), ou seja, um evento que se imagina, necessariamente, deve ter ocorrido, mas não terminou de uma vez por todas: o homem é sempre tornar-se humano, e, portanto, também continua a ser inumano, animal. A filosofia não é uma disciplina acadêmica, mas uma forma de medir-se em direção a este evento, que nunca deixa de ter lugar e que determina a humanidade e a desumanidade da humanidade: perguntas muito importantes, na minha opinião.

Essa visão de tornar-se humano, em suas obras, não é bastante pessimista?

Estou muito feliz que você me fez essa pergunta, já que muitas vezes eu encontro com pessoas que me chamam de pessimista. Em primeiro lugar, em um nível pessoal, isto não é verdade em todos os casos. Em segundo lugar, os conceitos de pessimismo e de otimismo não têm nada a ver com o pensamento. Debord citou muitas vezes uma carta de Marx, dizendo que “as condições desesperadoras da sociedade em que vivo me enchem de esperança”. Qualquer pensamento radical sempre adota a posição mais extrema de desespero. Simone Weil disse: “Eu não gosto daquelas pessoas que aquecem seus corações com esperanças vazias”. Pensamento, para mim, é exatamente isso: a coragem do desespero. E isso não está na altura do otimismo?

De acordo com você, ser contemporâneo significa perceber a escuridão de sua época e não a sua luz. Como devemos entender essa ideia?

Ser contemporâneo é responder ao apelo que a escuridão da época faz para nós. No Universo em expansão, o espaço que nos separa das galáxias mais distantes está crescendo a tal velocidade que a luz de suas estrelas nunca poderia chegar até nós. Perceber, em meio à escuridão, esta luz que tenta nos atingir, mas não pode – isso é o que significa ser contemporâneo. O presente é a coisa mais difícil para vivermos. Porque uma origem, eu repito, não se limita ao passado: é um turbilhão, de acordo com a imagem muito fina de Benjamin, um abismo no presente. E somos atraídos para este abismo. É por isso que o presente é, por excelência, a única coisa que resta não vivida.

Quem é o supremo contemporâneo – o poeta? Ou o filósofo?

Minha tendência é não opor a poesia à filosofia, no sentido de que essas duas experiências tem lugar dentro da linguagem. A casa de verdade é a linguagem, e eu desconfiaria de qualquer filósofo que iria deixá-la para outros – filólogos ou poetas – cuidarem desta casa. Devemos cuidar da linguagem, e eu acredito que um dos problemas essenciais com os meios de comunicação é que eles não mostram tanta preocupação. O jornalista também é responsável pela linguagem, e será por ela julgado.

Como é o seu mais recente trabalho sobre a liturgia nos dá uma chave para o presente?

Analisar liturgia é colocar o dedo sobre uma imensa mudança em nossa maneira de representar existência. No mundo antigo, a existência estava ali – algo presente. Na liturgia cristã, o homem é o que ele deve ser e deve ser o que ele é. Hoje, não temos outra representação da realidade do que a operacional, o efetivo. Nós já não concebemos uma existência sem sentido. O que não é eficaz – viável, governável – não é real. A próxima tarefa da filosofia é pensar em uma política e uma ética que são liberados dos conceitos do dever e da eficácia.

Pensando na inoperosidade, por exemplo?

A insistência no trabalho e na produção é uma maldição. A esquerda foi para o caminho errado quando adotou estas categorias, que estão no centro do capitalismo. Mas devemos especificar que inoperosidade, da forma como a concebo, não é nem inércia, nem uma marcha lenta. Precisamos nos libertar do trabalho, em um sentido ativo – eu gosto muito da palavra em francês désoeuvrer. Esta é uma atividade que faz todas as tarefas sociais da economia, do direito e da religião inoperosas, libertando-os, assim, para outros usos possíveis. Precisamente por isso é apropriado para a humanidade: escrever um poema que escapa a função comunicativa da linguagem; ou falar ou dar um beijo, alterando, assim, a função da boca, que serve em primeiro lugar para comer. Em sua Ética a Nicômaco, Aristóteles perguntou a si mesmo se a humanidade tem uma tarefa. O trabalho do flautista é tocar a flauta, e o trabalho do sapateiro é fazer sapatos, mas há um trabalho do homem como tal? Ele então desenvolveu a sua hipótese segundo a qual o homem, talvez, nasce sem qualquer tarefa, mas ele logo abandona este estado. No entanto, esta hipótese nos leva ao cerne do que é ser humano. O ser humano é o animal que não tem trabalho: ele não tem tarefa biológica, não tem uma função claramente prescrita. Só um ser poderoso tem a capacidade de não ser poderoso. O homem pode fazer tudo, mas não tem que fazer nada.

Você estudou Direito, mas toda a sua filosofia procura, de certa forma, se libertar da lei.

Saindo da escola secundária, eu tinha apenas um desejo – escrever. Mas o que isso significa? Para escrever – o que? Este foi, creio eu, um desejo de possibilidade na minha vida. O que eu queria não era a “escrever”, mas “ser capaz de” escrever. É um gesto inconscientemente filosófico: a busca de possibilidades em sua vida, o que é uma boa definição de filosofia. A lei é, aparentemente, o contrário: é uma questão de necessidade, não de possibilidade. Mas quando eu estudei direito, era porque eu não poderia, é claro, ter sido capaz de acessar o possível sem passar no teste do necessário. Em qualquer caso, os meus estudos de direito tornaram-se muito úteis para mim. Poder desencadeou conceitos políticos em favor dos conceitos jurídicos. A esfera jurídica não pára de expandir-se: eles fazem leis sobre tudo, em domínios onde isto teria sido inconcebível. Esta proliferação de lei é perigosa: nas nossas sociedades democráticas, não há nada que não é regulamentado. Juristas árabes me ensinaram algo que eu gostei muito. Eles representam a lei como uma espécie de árvore, em que em um extremo está o que é proibido e, no outro, o que é obrigatório. Para eles, o papel do jurista situa-se entre estes dois extremos: ou seja, abordando tudo o que se pode fazer sem sanção jurídica. Esta zona de liberdade nunca para de estreitar-se, enquanto que deveria ser expandida.

Em 1997, no primeiro volume de sua série Homo Sacer, você disse que o campo de concentração é a norma do nosso espaço político. De Atenas a Auschwitz…

Tenho sido muito criticado por essa idéia, que o campo tem substituído a cidade como o nomos (norma, lei) da modernidade. Eu não estava olhando para o campo como um fato histórico, mas como a matriz oculta da nossa sociedade. O que é um campo? É uma parte do território que existe fora da ordem jurídico-política, a materialização do estado de exceção. Hoje, o estado de exceção e a despolitização penetraram tudo. É o espaço sob vigilância CCTV [circuito interno de monitoramento] nas cidades de hoje, públicas ou privadas, interiores ou exteriores? Novos espaços estão sendo criados: o modelo israelense de território ocupado, composto por todas essas barreiras, excluindo os palestinos, foi transposto para Dubai para criar ilhas hiper-seguras de turismo…

Em que fase está o Homo sacer?

Quando comecei esta série, o que me interessou foi a relação entre a lei e a vida. Em nossa cultura, a noção de vida nunca é definida, mas é incessantemente dividida: há a vida como ela é caracterizada politicamente (bios), a vida natural comum a todos os animais (zoé), a vida vegetativa, a vida social, etc. Talvez pudéssemos chegar a uma forma de vida que resiste a tais divisões? Atualmente, estou escrevendo o último volume de Homo sacer. Giacometti disse uma coisa que eu realmente gostei: você nunca termina uma pintura, você a abandona. Suas pinturas não estão acabadas, seu potencial nunca se esgota. Gostaria que o mesmo fosse verdade sobre Homo sacer, para ser abandonado, mas nunca terminado. Além disso, eu acho que a filosofia não deve consistir-se demais em afirmações teóricas – a teoria deve, por vezes, mostrar a sua insuficiência.

É esta a razão pela qual em seus ensaios teóricos você tem sempre escrito textos mais curtos, mais poéticos?

Sim, exatamente isso. Estes dois registros de escrita não ficam em contradição, e espero que muitas vezes até mesmo se cruzem. Foi a partir de um grande livro, O Reino e a Glória, uma genealogia do governo e da economia, que eu fui fortemente atingido por essa noção de inoperosidade, o que eu tentei desenvolver de forma mais concreta em outros textos. Esses caminhos cruzados são todos o prazer de escrever e de pensar.

* Publicado originalmente em francês no Télérama, e em inglês no Blog da Verso, em 17 de junho de 2014; tradução de Pedro Lucas Dulci, para o Outras Palavras. 
[versão respigada de aqui ]

terça-feira, março 24, 2015

HERBERTO HELDER (1930-2015)

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(a poesia é feita contra todos)

      É aborrecido ter que reclamar-se de todas as afirmações de princípio muito óbvias.
      Nós respeitamos os atributos e instrumentos da criminalidade: agressão, provocação, subversão, corrupção. Queremos conhecer, exercendo-nos dentro de poemas, até onde estamos radicalmente contra o mundo. Os poemas começam a fundar os seus entendimentos com a poesia. É também o momento em que desaparecemos, e seria grato ver como o nosso rosto pode promover o susto dos corações afectos e afeitos à cordialidade.
      Force-se alguém a afastar as palavras, essa folhagem de ouro implantada nos olhos e nos ouvidos, para descobrir o rosto zoológico que nem uma câmara de filmar tornaria capturável e doméstico. A impertinência põe-se a fornecer lições de arquitectura. Há muita gente para habitar as casas. Mas só gostamos de oficinas explosivas.
      Temos tudo o mais contra todos os trabalhadores. O trabalho de uns e o capital de outros não bastam para alugar-nos, embora estejamos usualmente disponíveis. Eles fazem inculcas, em tempos de sedução, para saber do nosso endereço. Mas desaparecemos, por irreversível disponibilidade. Somos inúteis até onde poderia estar por acaso a nossa morada.
      Deus tem uma cabeça demasiado pesada, ocupa totalmente o alforje do pão. Crê-se mesmo ser abusivo um toque no ombro com vista a um momentâneo desvio da carga. Deus dorme, dorme de um sono pesadíssimo, e por isso pesa tanto aquela cabeça. Às vezes pretendemos acordá-la para que se faça mais leve. Tudo morreu em nós menos exactamente a morte das coisas divinas. É por dentro de poemas que transportamos esse estranho alimento de todas as mortes. A celebração funesta torna-se uma política da ignorância pessoal que nos compelimos assumir até ao fim, para ficar com a ciência possível que não conduz à cidadania. Nota-se logo a nossa ausência pedagógica, e quando os outros chegam para o ensino, já não estamos lá e, interrogada a população, talvez se fique a saber que nunca estivemos.
      A poesia é feita contra todos, e por um só; de cada vez, um e só. A glória seria ajudar a morte nos outros, e não por piedade. A grandeza afere-se pelas conveniências do mal. Aquilo que se diz da beleza é uma armadilha. Pena que não pratiquem o pavor, todos. Seria o lucro do nosso emprego e um pequeno contentamento para quem está com alguma pressa em agravar.
      E leia-se como se quiser, pois ficará sempre errado.
Herberto Helder, Photomaton & Vox, 4ª edição, Assírio & Alvim, Lisboa, 2006, pp. 152-153

domingo, março 15, 2015

A CLEPTOCRATA E OS SEUS AMIGOS PORTUGUESES


 



Isabel dos Santos, filha do cleptocrata (traduzido para português vernáculo, ladrão) José Eduardo dos Santos, presidente de Angola, é a mulher com a maior fortuna em África – 2 mil milhões de dólares, diz a revista Forbes que sabe do que fala. Com 41 anos onde foi arranjar tamanha fortuna? Recorrendo ao dinheiro que o papá rouba ao povo angolano. Assim quando a bela Isabel vem a Portugal não é para comprar casacos de vison ou jóias caras (também pode ser mas isso são amendoins). O que Isabel dos Santos gosta de comprar são participações em grandes empresas. Em 2011 comprou uma participação na Sonae, talvez salvando assim o grupo que introduziu os infernais hipermercados em Portugal da falência. As parcerias com a Sonae continuaram e mais recentemente Isabel dos Santos e o grupo dos Azevedos avançaram para a criação da Nos, uma “upgrade” da Optimus. O dinheiro subtraído ao povo angolano, que apesar da prosperidade do fim da guerra civil e do petróleo continua a viver na miséria, fica bem nos bolsos de Isabel como outrora ficaram nos bolsos da outra Isabel, as rosas. Mas esta Isabel não quer saber do pão que tira ao povo angolano. E muito menos os seus amigos portugueses, a começar por Belmiro de Azevedo (que esta semana se retirou da liderança da Sonae) e seu filho Paulo. Afinal o que seria do grupo português, desculpem holandês, sem o dinheiro de Isabel, roubado pelo papá Dos Santos ao Estado angolano? Isabel prospera e a Sonae também, mesmo em tempo de crise, e com um governo de Robin dos Bosques invertido (rouba aos pobres para dar aos muitos ricos). E lá vai Isabel, segura e formosa, criar o maior banco português com a fusão do BPI (de que é accionista) com o BCP. Isabel não perde tempo. Um dia destes vai a Forbes fazer as contas e estatísticas aos bilionários que acompanha e conclui que a Isabelinha é a maior empresária portuguesa (independentemente do género). Ou já é mesmo? Manso povo angolano que tais coisas permites. Bom povo português que arrastas o carrinho do hipermercado continente, como arrastas a vida, e até vais votar outra vez no Coelho, que do Sócrates até da cela de Évora tens inveja. E a Isabelinha tão queridinha na capa de revista cor-de-rosa que até nem parece preta com o seu muito querido enésimo amor. Que o primeiro é o “Money” do papá.

sábado, março 07, 2015

A VIDA COSTA DO PS



 
O PS tem um problema sério. Chama-se António Costa. Costa era desde há anos o D. Sebastião do PS, o salvador de um partido inseguro com a liderança de António José Seguro. Costa começou por recusar a travessia no deserto num momento excepcional de crise para o país. Não quis ser oposição nessa altura de extrema responsabilidade perante um governo de liquidação nacional, o tal governo mais alemão do que o alemão e que ainda nos governa. António Costa era por essa altura (finais de 2011, 2012, 2013) apontado como candidato do PS à presidência da República. Entre os paços do concelho e Belém seria um percurso sem se molhar, sem se sujar na lama, um percurso impecável – e que faria ainda mais sentido hoje, quando a menos de um ano das Presidenciais o PS não sabe quem está disponível para concorrer a Belém. Seria. Mas Costa, depois da vitória do PS nas autárquicas – uma vitória com sabor a derrota – resolveu avançar, finalmente, contra Seguro: o líder inseguro em quem ninguém acreditava. Fez bem, mas iniciou uma guerra dentro do PS que não favoreceu o partido. Finalmente eleito, Costa apresentava-se como o tal D. Sebastião regressado de Alquacer-Quibir. Mas a verdade é que D. Sebastião nunca regressou de Alquacer-Quibir, e aqueles que se apresentaram como sendo o rei de Portugal eram farsantes.
Ora, a actuação de António Costa como líder do PS nestes últimos meses tem sido desastrosa. De Costa esperava-se uma oposição forte ao pior governo de Portugal depois do 25 de Abril. Mas António Costa tem mantido as funções de presidente da C. M. de Lisboa, e parece ser mais edil da capital portuguesa que líder da oposição. De Seguro, havia mais oposição, mesmo que desse a impressão que o António José por vezes parecia um pudim flan. Mas havia oposição. E de António Costa que temos: a recente gaffe (?) perante um grupo de empresários chineses, “Portugal está diferente [entende-se melhor] que em 2011”.  Agora no grave assunto das dívidas de Passos Coelho à segurança social deixa a desejar. O líder do PS devia pedir a demissão já do governo, o que aliás tinha o mérito de antecipar as eleições legislativas para antes do verão, permitindo ao PS (potencial vencedor) elaborar um Orçamento de Estado seu para 2016. O problema de Costa é que ainda não tem programa, vai adiando as coisas. Ou seja, sendo a política uma questão de atitude, de carisma, e precisando Portugal de um líder forte, António Costa, nos meses que leva como secretário-geral do PS, não tem revelado essa atitude. Olhem para a Grécia, vejam o Syriza; olhem para Espanha, vejam o Podemos. Ai cresce uma nova forma de fazer política perante a crise da social-democracia (entenda-se partidos filiados na Internacional Socialista e não o PSD, que não é um partido social-democrata).

terça-feira, fevereiro 24, 2015

Mário Rui de Oliveira


SANGUE

Depois chegavam os ventos
a tarde arrastava uma chuva
de flores brancas
tão delicadas

doía-me uma luz em teus olhos
que não conseguia
sombra assustada, minha vida

o ar libertava um azul
nesses passeios lentos pelo pomar

descendo às laranjeiras
o sangue ardia

*
FS-93-29

Meu pai foi caseiro
com setecentos escudos de renda
comiam-se as migas e a teresinha apontava
no velho livro de contas
um quilo disto e dois daquilo
e umas sapatilhas bondy
para o menino rasgar

na velha carrinha vermelha
o amigo da fábrica
que mais tarde o traíria

trabalhava-se duramente
parecia uma escravidão
até a casa foi vendida

vieram doenças
telefonemas de urgência
dias divididos à sombra do passado

esmagadeira das uvas
prensas antigas
tesouras da poda
esquecidas
cheias de ferrugem

agora a vida é muito diferente

*

ALMA

A alma é uma claridade discutível
cria laços com a escuridão
seu esplendor de diamante
provém da aluviões
lentamente depositados

Mario Rui de Oliveira, Bairro Judaico, Lisboa, Assírio & Alvim, 2003, pp.11, 13 e 34.
Mário Rui de Oliveira nasceu em 1973, em Joane. Estudou teologia e direito canónico. Publicou em 2002, com prefácio de Eugénio de Andrade, O Vento da Noite (Assírio & Alvim) e que se seguiu Bairro Judaico. A sua poesia (escassa) é marcada por motivos religiosos ou aparentemente autobiográficos. Pode ser inserido num grupo de poetas a que chamaram "poetas de Deus" e que tem em Tolentino Mendonça e Daniel Faria os seus expoentes mais próximos.

terça-feira, janeiro 27, 2015

AUSCHWITZ, 1945 – ATENAS, 2015



Há 70 anos o campo de concentração nazi de Auschwitz era libertado por tropas Soviéticas. Era o fim do Holocausto empreendido pela Alemanha de Hitler. Auschwitz, onde morreram mais de um milhão de pessoas, terá sido o lugar de máximo terror e horror do século XX e talvez da História da humanidade. Por isso a sua constante referência – o filósofo T. Adorno escreveu que depois de Auschwitz não era possível voltar a escrever poesia. Mas o tempo passou, ocorreram os julgamentos de Nuremberga, a desnazificação, o julgamento de Eichmann, na década de 1960, em Jerusalém, do qual Hannah Arendt extraiu a sua tese da “banalidade do mal”. Muitos dos responsáveis pelo Holocausto conseguiram fugir, viver incógnitos em países como a Argentina. Na Alemanha, dividida até 1989 pelo muro de Berlim, a vida continuou, a indústria da Alemanha ocidental prosperou, e as grandes empresas que utilizaram mão-de-obra escrava cedida pelo nazismo voltaram a tornar-se grandes exportadoras. Houve sempre um esquecimento do horror do regime nazi sem o qual a prosperidade da Alemanha não seria possível. Depois da reunificação a Alemanha terá passado por momentos difíceis, mas a águia levantou-se. E quem não quer ter um BMW, um Mercedes, ou mesmo um Audi? A magnífica tecnologia alemã, a sua produtividade baseada muito num sistema de ensino que aos 10 ou 12 anos selecciona o futuro dos seus cidadãos, espanta o mundo. Mas também os seus escritores, a sua filosofia, os seus compositores. Como pode uma terra de gente tão grandiosa como Kant, Hegel, Nietzsche, Heidegger, na filosofia, ou Goethe, Holderlin, Novalis, na literatura, ou ainda nas música Bach e Beethovan, entre muitos outros, ser também a pátria do crime mais hediondo contra a humanidade?
A verdade é que a Alemanha renasceu. Não é a Alemanha nazi, mas a actual Alemanha de Angela Merkel, a Alemanha que chama “porcos” (PIIGS) aos países do sul, a Alemanha da austeridade é uma versão light da Alemanha nazi. Porque a austeridade tem feito vítimas nos países em que foi implantada – e vítimas quer dizer mortos, pessoas com depressão, desesperados sem emprego, fome, pessoas que ficam sem a casa que não podem continuar a pagar aos agiotas bancários. Em Portugal tudo isso tem um responsável político: Pedro Passos Coelho e o seu governo, com destaque para Vítor Gaspar, que embora já tenha abandonado o governo é o ideólogo dessa política de destruição. Pela Europa do sul, a Europa dos “porcos”, a direita tem executado as ordens de frau Merkel.
Até que domingo os gregos elegeram o Syriza. É certo que as coisas não são comparáveis porque a dimensão das atrocidades é diferente, mas é como se 70 anos depois da libertação de Auschwitz houvesse uma nova libertação – a da austeridade. É certo que os povos do sul da Europa não podem ter como certa e imediata essa libertação, mas há uma forte promessa.
Ontem Alexis Tsipras tomou posse como primeiro-ministro grego e a primeira coisa que fez foi uma homenagem a 200 membros da resistência grega fuzilados por nazis na II Guerra Mundial. O primeiro acto ou medida de um primeiro-ministro é sempre simbólico e sintomático e Alexis Tsipras ao homenagear aqueles que foram fuzilados pelos nazis alemães estava também a homenagear aqueles que foram vítimas da austeridade – pessoas que não foram fuziladas mas morreram por falta de assistência médica ou suicídio. De Auschwitz, 1945, a Atenas, 2015, vai uma longa distância temporal, mas também pequenas coincidências.