quarta-feira, abril 05, 2006

Sophia de Mello Breyner Andresen


Pranto pelo dia de hoje

Nunca choraremos bastante quando vemos
O gesto criadorser impedido
Nunca choraremos bastante quando vemos
Que quem ousa lutar é destruído
Por troças por insídias por venenos
E por outras maneiras que sabemos
Tão sábias tão subtis e tão peritas
Que nem podem sequer ser bem descritas

de Livro sexto, 1962

terça-feira, abril 04, 2006

Al Berto


dizem que a paixão o conheceu
mas hoje vive escondido nuns óculos escuros
senta-se no estremecer da noite enumera
o que lhe sobejou do adolescente rosto
turvo pela ligueira náusea da velhice

conhece a solidão de quem permanece acordado
quase sempre estendido ao lado do sono
pressente o suave esvoaçar da idade
ergue-se para o espelho
que lhe devolve um sorrisotamanho do medo

dizem que vive na transparência do sonho
à beira-mar envelheceu vagarosamente
sem que nenhuma ternura nenhuma alegria
nenhum ofício cantante
o tenha convencido a permanecer entre os vivos

(de Uma Existência de Papel, 1985)

sexta-feira, março 24, 2006


Solidão

Cai chuva, chora
chora, chora.
Solidão, solidão!

Já não canta o pássaro.
Calou-se a voz, a alegre, a rara.
A que se ouvia solitária.
Cai chuva.

Não sou freira e estou num convento.
A paz, o silêncio, a chuva, os claustros...
Ser freira!
O sequestro, cantar, rezar.
Cai chuva, rude e sem dor.
Tu não choras.
Sou eu que choro.

Que é do pássaro, como cantava?
Voltou, voltou. Pia!
Bendito pássaro, onde estás?
Acompanha-me, já não chove.
Solidão, melancolia.

Irene Lisboa, Outono Havias de Vir in Obras de Irene Lisboa I, Presença, 1991, org. de Paula Mourão

terça-feira, março 14, 2006


SEM OUTRO INTUITO

Atirávamos pedras
à água para o silêncio vir à tona.
O mundo, que os sentidos tonificam,
surgia-nos então todo enterrado
na nossa própria carne, envolto
por vezes em ferozes transparências
que as pedras acirravam
sem outro intuito além do de extrírem
às águas o silêncio que as unia.

Luís Miguel Nava, in Vulcão

sexta-feira, março 03, 2006


VIOLA CHINESA

Ao longo da viola morosa
Vai adormecendo a perlenda,
Sem que, amadornado, eu atenda
A lengalenga fastidiosa

Sem que o meu coração se prenda
Enquanto, nasal, minuciosa,
Ao longo da viola morosa,
Vai adormecendo a perlenda.

Mas que cicatriz melindrosa
Há nele, que essa viola ofenda
E faz que as asitas distenda
Numa agitação dolorosa?

Ao longo da viola, morosa...

Camilo Pessanha, "Clepsidra"

sexta-feira, fevereiro 24, 2006

AS CRIANCINHAS CRIMINOSAS

Um grupo de 14 adolescentes assassinou de forma barbara um sem abrigo, travesti, prostituto e toxicodependente (é por todos estes qualificativos que esta pessoa de 40 anos tem sido identificada nos meios de comunicação) no Porto. A vitima foi apredejada, esbofeteada, esfaqueada e violada, segundo revela a autópsia ao corpo.
As adoráveis criancinhas que cometeram tal crime foram presentes ao Tribunal de Família de Menores do Porto e a mais velha, de 16 anos, ao TIC. Esta última ficou em prisão preventiva, das outras, maiores de 13 anos, 11 serão internados em instituições a designar pelo Instituto de Reinserção Social de Lisboa, sendo que uma delas ficará em regime fechado e as restantes dez em regime aberto.
A inimputabilidade dos menores de 16 anos permite que façam o que lhes apetecer, sendo assim apetecíveis ao crime organizado. A perversidade deste crime aumenta se tivermos em conta o que relata o Portugal Diário:"Os jovens estiveram durante todo o dia muito descontraidos: juntos na mesma sala, os jovens viram televisão e fizeram alguma brincadeiras entre eles. Segundo informações recolhidas pelo PortugalDiário nas conversas que tinham, não havia menção a [sic] questão que os levava a estarem retidos em tribunal". Ou seja, o perfeito sentimento de frieza e completa impunidade que alguns "técnicos", especialmente pedopsiquiatras, tem ajudado a reforçar. No fundo quer fazer-se crer que são crianças, anjinhos completamente inocentes, vitimas de situações sociais e não carrascos, como no caso presente. Ora estes adolescentes, como muitos outros, são um perigo social - a começar para outros adolescentes (algumas escolas são lugares de extrema violencia). Atacam os mais fracos e os que fogem aos padrãos sociais dominantes, como foi o caso do crime desta semana no Porto (a vitima era sem abrigo, travesti, prostituto e toxicodependente, alguém completamente indefeso perante este bando, que não tão poucos adultos terão aplaudido). Que isto se tenha passado no Porto e os criminosos sejam de uma escola (Oficinas de S. José) pertencente à Igreja não será mero acaso.

segunda-feira, fevereiro 20, 2006

para lá da cortina além da porta errada
silêncioso e só está sentado
e lê num livro
a sua própria história

Manuel de Castro, in Edoi Lelia Doura - Antologia das Vozes Comunicantes da Poesia Moderna Portuguesa de Herberto Helder.

segunda-feira, fevereiro 13, 2006

ÁLVARO LAPA (1939-2006)



O pintor e escritor Álvaro Lapa morreu no passado Sábado, 11 de Fevereiro, no Porto. Nascido a 31 de Julho de 1939 em Évora era professor de Estética na Faculdade de Belas Artes do Porto. Neste momento está patente uma exposição sua na Galeria Fernando Santos do Porto, à Rua Miguel Bombarda.
Álvaro Lapa iniciou o seu percurso como pintor com uma exposição individual em 1964 na Galeria 111. Em 1994 apresenta retrospectivas na Fundação de Serralves e no Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian e em 2004 vence o Prémio EDP.
A escrita, o outro lado da criação de Álvaro Lapa foi, de certo modo, obscurecida pela pintura. Publicou cinco livros: Raso como o Chão (Estampa, 1977), Porque Morreu Eanes (Estampa, 1978), Barulheira (& etc, 1982), Balança (Frenesi, 1985) e Sequências Narrativas Completas (Assírio & Alvim, 1994). Influenciado por autores da tradição surrealiata e de vanguarda como Kafka, Burroughs, Joyce, Beckett, Artaud ou António Maria Lisboa afirmou ao DN, em 1993, que "só se cria aquilo que se é". Amigo do poeta António Gancho, falecido no mês passado no Telhal, cuja obra ajudou a publicar, Álvaro Lapa terá contornado a loucura pela via da criação.

O DIAGNÓSTICO

Um jovem tinha um cérebro artificial chamado diagnóstico. Um dia fez-lhe três perguntas e o cérebro não respondeu. Como era jovem teve medo e logo a seguir fez-lhe mais duas perguntas. O cérebro respondeu mas estava errado.

Álvaro Lapa, in Sião, org. de Al Berto, Paulo da Costa Domingos e Rui Baião, Frenesi, 1987

sexta-feira, fevereiro 10, 2006

Lar doce lar


Minha pátria é minha infância:
por isso vivo no exilio

Cacaso (poeta e letrista brasileiro, 1944-1987)

sexta-feira, fevereiro 03, 2006

MOVIMENTO DE FUGA


A loucura é um movimento de fuga. Uma das imagens mais usadas para representar a loucura é O grito de Eduard Munch. É um ícone da loucura. Em Esplendor na Relva (1961)de Elia Kazan há uma cena em que o quadro de Munch é citado. É quando Natalie Wood, numa aula de Inglês é chamada a comentar os versos de Wordsworth: "E agora, apesar de perdido o esplendor na relva e o tempo de glória da flor, em vez de chorarmos buscaremos força no que para trás deixamos". É depois de comentar estes versos que Deenie Loomis/Natalie Wood pede para sair da aula num enquadramento em que o rosto de Natalie Wood se aproxima, cita, a imagem de Munch (uma das mãos da actriz junto ao rosto). E, em seguida, no movimento de fuga, em sentido inverso ao do quadro de Munch, vemos Natalie Wood de costas, fugir pelo corredor em direcção à loucura. O grito, vocalizado ou calado, expresso num esgar que suporta a angústia do mundo, a angústia de ser/estar no mundo, é uma suprema aesthesis carregada de pathos. Assim são os estados de perturbação, fora do normal, fora da normalidade estatística que rege a vidinha e os lepidópteros. A estética (aesthesis) é um movimento de fuga a essa normalidade castradora das sensações. Daí, o grito. Grito que é pavor e espanto de ser no mundo, mas também grito de angústia pela consciência do peso de um mundo onde vigora uma insustentável leveza.
Mas se O grito de Munch nos deixa perante a angústia, o silêncio, a perplexidade, um espaço de unidade ontologicamente parmenidiana perdido, Esplendor na Relva aceita a perda do "tempo da glória da flor", um trabalho de luto, de luta. Porque Esplendor na Relva não exige a imutabilidade do ser na chaga do tempo ou o impedimento (social) da unidade dos corpos. Embora sejam esses os factores que levam Natalie Wood à loucura, o filme tem o happy end de uma psicoterapia bem sucedida: nas cenas finais do filme Natalie Wood aceita a renuncia de que falam os versos de Wordsworth - e que antes lhe tinham despoletado a loucura. Ou seja, aceita/faz o trabalho de luto a partir das memórias do passado (no caso a relação amorosa com Warren Bety): "em vez de chorarmos buscaremos força no que deixamos para trás". Esta formulação de Wordsworth contém um devir impelido pela enxurrada da memória. É um movimento de fuga inverso da loucura: sem angústia, apaziguado num eu-pele poroso, fronteira entre o interior e a realidade externa, superficie. Superficialidade dos dias sem História que a narrativa já não contempla.