segunda-feira, julho 31, 2023

ESTUPIDEZ NATURAL

 


1, Em fevereiro de 2020 a peste sob a forma de um vírus a que chamaram covid, aparece na Europa; em fevereiro de 2022 a Rússia invade a Ucrânia, é o início de uma guerra que na realidade opõe o ocidente à Rússia, mas de certa forma, também à China, numa nova ordem mundial cuja natureza última estamos longe de vislumbrar; em fevereiro deste ano os meios de comunicação social começam a falar de uma nova forma de inteligência artificial (IA), criada pela empresa Openai, que interage com qualquer utilizador que aceda a este serviço que numa primeira fase foi gratuito. É o famoso Chat GPT (na versão 3.5 de acesso livre, a versão 4 tem que ser paga). O mundo já muitas vezes passou por pestes seguidas de guerras e vice-versa, mas nunca por uma máquina que simule (?) a inteligência, a fala humana. A IA, para uns um perigo para a humanidade, para outros uma oportunidade na resolução de problemas que afectam os humanos, desde a solução para algumas doenças até problemas como as alterações climáticas, era como um gato escondido com o rabo de fora. Na realidade pouco ou quase nada se falava dela, mas dos algoritmos existentes nos smartphones, que partem do princípio de que se  a pessoa A gosta da música X também vai gostar de Z e W (este princípio usado pelo Spotify ou YouTube é também válido para muitas outras aplicações). 

2, O mundo de cada humano passou para um pequeno smartphone (literalmente telefone inteligente) que nos acompanha para todo o lado e onde temos todos os nossos contactos, cada vez mais virtuais, bem como fotografias e outros documentos. E estamos presos e enredados nesse micro-computador de bolso sem o qual a vida hoje é difícil de ser vivida. É uma vida cada vez mais virtual, mas também é a forma como, cada vez mais interagimos com o outro, com a possibilidade de uma alteridade. Torna-se assim num paradoxo: agimos com mais pessoas e de forma mais fácil, mas essa acção já não é uma presença, é mediada por uma tecnologia que nos representa. A internet transformou-se de uma utopia comunicacional em algo que deu um enorme poder a quatro ou cinco empresas que podem ameaçar a nossa liberdade. A inteligência artificial é um dos mecanismos que mal-usados nos pode tornar escravos numa distopia.

3, Se durante quase duas décadas o Google foi o principal motor de busca de conteúdos na internet, com o Chat GPT isso pareceu alterar-se (a propósito recomendo o Duck Duck Go ao google). Já não se tratava de apresentar sites (a maioria pagos) mas de fazer uma pergunta a um sistema de IA. Ora, na versão 3.5, o chat GPT revelou-se pouco fidedigno. Quanto não tinha uma resposta inventava, o que os especialistas em IA chamaram, muito humanamente "alucinar". Isso quer dizer que, pelo menos na versão 3.5, o chat GPT mostrou-se menos fiável do que a Wikipédia, cujos artigos estão cheios de erros - humanos. E, de facto, a internet é uma rede cheia de informações falsas, duvidosas, inexactas, que as redes sociais expuseram ao limite. Ora, o chat GPT pretende ter toda a informação que circula online (além de uma montanha de livros que "leu"), o que equivale a ter bastante informação falsa. Então como vamos confiar na informação que nos é "dada" por uma inteligência artificial?

4, Outro problema que o aparecimento destes sistemas de IA coloca, é a criação artística. Para já a actual IA parece estar na sua infância, mas isso não impede alguma criatividade, precisamente uma criatividade ao nível infantil. O Chat GPT é bom a criar histórias para crianças, porque razão uma editora de livros infantis não poderá substituir os seus escritores de livros infantis pela inteligência artificial? E quando o a IA for capaz de escrever romances? Será que um dia um programa de IA irá escrever algo superior à capacidade criativa de um Joyce, um Proust, um Kafka, um Pessoa? E na pintura, na música, no cinema, na fotografia. Para já há experiências de jornais feitos por IA. A Inteligência artificial não é só uma ameaça a tarefas rotineiras, é uma ameaça também à Arte, aos artistas, e portanto aos humanos.

5, Numa carta aberta subscrita entre outros pelo criador da Openai e do Chat GPT, Sam Altman, e por um engenheiro da Google, percursor dos sistemas de IA apelava-se para uma regulamentação a nível governamental da IA. Caso isso não fosse feito poderíamos estar perante algo, tão catastrófico como a extinção da humanidade. A carta não foi tomada em conta pelos governos, e note-se que foi escrita e subscrita pelos criadores da IA. Antes, governos como o português, no âmbito do que chama "transição digital", já anunciou que as chamadas para o 112, a partir de 2025, serão atendidas por um sistema de IA.

6, Vivemos um tempo de ameaças e de aceleração técnica como nunca antes a humanidade tinha vivido. A IA é mais uma dessas ameaças, mas também nos pode ajudar a resolver vários problemas. Em rigor, não se sabe até que ponto a IA está desenvolvida, mas não é difícil imaginar até onde ela se pode desenvolver: até governar ou escravizar os humanos. Ou então, até uma fusão com os humanos (transhumanismo, cyborgs). Por isso é necessário tornar esta uma questão política premente. Mas os partidos políticos, os governos, a UE, parecem quererem ignorar o que se passa. A ameaça – mas também as suas possibilidades – ficam a pairar perante uma classe política e uma humanidade estúpida.