domingo, janeiro 31, 2021

AMEAÇAS À DEMOCRACIA

 


1, No estado em que vivemos, a realização de eleições presidenciais torna-se problemática. O presidente reeleito e a Assembleia da República tiveram muito tempo para legislar sobre o adiantamento de eleições - não o quiseram fazer. O próprio Marcelo manteve um tabu artificial sobre a sua recandidatura. Mas deu-se ao luxo de fazer uma campanha solitária, num estilo de populismo light que cultivou durante todo o mandato. Seria esse populismo, pensava-se, uma forma de travar o populismo de direita de características neofascistas que da França à Alemanha, passando pela vizinha Espanha, grassa pela Europa e pelo mundo. Mas não. Portugal não escapou a esse populismo fascista, por meio de uma figura, que vinda do PSD de Passos Coelho (foi candidato à CM de Loures), com alguma visibilidade mediática por ser comentador de futebol numa estação de televisão, se pôs a destilar ódio contra a etnia cigana, contra os mais frágeis da população portuguesa, que vivem do RSI, a quem chama de subsídio-dependentes. Se nas legislativas de 2019 o partido que fundou conseguiu elegê-lo como deputado à AR, a partir daí o crescimento do seu partido de extrema-direita foi galopante nas sondagens. A confirmação desses números das sondagens, deu-se agora nestas eleições presidenciais, onde o líder da extrema-direita obteve cerca de 12% dos votos, cerca de meio milhão de eleitores. Apenas Ana Gomes, numa candidatura corajosa, conseguiu, eleitoralmente, fazer frente ao candidato da extrema-direita, e ficar em segundo lugar. A questão que se coloca é  como foi possível chegarmos aqui, termos um líder da extrema-direita, apoiado por Marine Le Pen ou Salvini, que conseguiu o terceiro lugar numa eleição presidencial. A resposta parece estar nos média: numa lógica de que "tudo o que é bom aparece, tudo o que aparece é bom", os vários meios de comunicação social, falaram fartamente do líder da extrema-direita portuguesa. Mesmo quando falavam mal dele, falavam, e como deviam saber, mesmo a má publicidade é publicidade, e acaba por gerar simpatias. O velho discurso xenófobo e racista, contra os mais desprotegidos da sociedade, o discurso de que "o que fazia falta era um Salazar", regressou, agora corporizado num partido que ameaça tornar-se na terceira força política portuguesa e reconfigurar a direita, fazendo desaparecer o CDS-PP. Aos média que não querem o crescimento deste tipo de força política cabe pensar como abordá-la, como estancar a sua presença, quase diária, nas notícias, e tomar partido, editorialmente, contra. Aos partidos da direita clássica e também da nova direita liberal (PSD, CDS e IL) cabe criar um cordão sanitário que impeça uma futura aliança de direita onde o partido radical entre. No entanto, a sede pelo poder é grande, o que não augura nada de bom. A extrema-direita tem um tecto sociológico, é isso que impediu que a França se tornasse num país onde o (ou a) presidente da República fosse um(a) Le Pen. Mas no caso português é diferente, como se viu nos Açores, onde se criou uma geringonça à direita com o apoio da extrema-direita. De certa forma, e perante esta situação é a democracia que fica refém de um partido, ainda que minoritário, que fala de uma IV República, de "uma ditadura das pessoas de bem".

2, As ameaças à democracia, podem não passar por partidos, podem simplesmente estar nos nossos bolsos, sob a forma de um smarphone. Ameaças à nossa liberdade e à nossa privacidade, que vincam a razão que Orwell tinha, há mais de 70 anos, ao escrever o romance 1984 (recentemente reeditado em nova tradução pelo poeta José Miguel Silva e com prefácio de Gonçalo M. Tavares, pela Relógio d' Água). Uma notícia do Público -  [

Saber o que ouvimos não chega: o Spotify quer saber como falamos, onde estamos e com quem

A empresa sueca registou a patente de uma tecnologia que permite o acesso e a análise da voz dos utilizadores e do som ambiente que os rodeia. O objectivo, diz, é afinar o mais possível o seu algoritmo de sugestões.] dá conta de que a aplicação músical Spotify se prepara para nos escutar, saber onde e com quem falamos, para, assim, nos dar música mais condizente com os nossos gostos. Confesso que nos últimos meses utilizei esta aplicação para ouvir música e podcast's. Fiz algumas descobertas musicais e de podcasts. Mas a aplicação, para quem não era "premium", ou seja não pagava, tornava-se deliberadamente irritante na sua auto-publicidade. O problema dos algoritmos nas novas tecnologias, que nos escutam, nos "olham", sabem onde estamos, têm acesso a tudo o que temos nos telemóveis, é um problema grave de ameaça à nossa liberdade, logo um problema sobre o qual os Estados devem legislar com urgência. Não se pode permitir que grandes empresas, muitas vezes em regime de monopólio, como acontece com a google, nos estejam a espiar constantemente. Chegamos, tecnologicamente, à sociedade retratada em 1984. Mas ainda não vivemos em ditaduras. Por isso, se os governos nada fazem, é altura dos cidadãos se manifestarem e exigir limites legais ao processamento de informação por parte destas empresas, exigir a nossa privacidade - quer perante o Estado, quer perante empresas privadas - como um valor democrático.