Mostrar mensagens com a etiqueta micro-contos. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta micro-contos. Mostrar todas as mensagens

sexta-feira, janeiro 31, 2025

Rubem Fonseca

 


TELEVISÃO

 

Eu gostava de desenhar. Estava sempre desenhando. Isso antigamente. Agora perdi a vontade de desenhar, ou melhor, não sei o que desenhar. Eu desenho tudo, mulheres nuas, homem morto, flor – flor eu não gostava muito, só do cheiro –, desenhava ruas, letreiros luminosos, pessoas em volta de uma mesa jantando (ou almoçando), dois sujeitos jogando sinuca aleijadinho – aleijadinho eu gostava de desenhar, vários tipos de aleijadinho, sem perna, em cadeira de rodas, sem braço, mas o que eu gostava mesmo era do aleijadinho com duas muletas e sem as duas pernas. Eu desenhava a cara desse aleijadinho como a de um homem feliz, feliz porque podia passear pelas ruas, ainda que fosse de muletas.

Havia uma coisa que eu detestava: desenho abstrato. «Abstração: uma coisa de difícil compreensão, obscura», diz o dicionário. Novamente o dicionário: «Abstrato: que não é claro para o espírito, que é difícil de compreender, de explicar.»

Você desenha uma porcaria que não quer dizer nada e diz «é uma abstração», e os bestalhões dizem «muito interessante». Será que essa gente não sabe que arte tem que ter um significado? Tem que exprimir algo?

Voltando ao meu problema. Eu sento à mesa, o papel e os crayons na frente, e não consigo desenhar. Na verdade, nem sento mais à mesa. Vou direto pra televisão ver uma das porcarias que exibem.

Falta inspiração? Isso parece coisa religiosa e eu sou ateu. Falta motivação? O artista precisa de estar motivado? Isso me parece pueril, uma tolice.

Eu sento à mesa, com o material para desenhar, espero um minuto. Desenhar o quê? Vou para a poltrona e ligo a televisão. Penso, amanhã vou desenhar. Mas volto a ver televisão. Vejo televisão todos os dias. Isso é coisa de débil mental. Mas vejo televisão, e vejo novamente, e novamente, e novamente. Ver televisão deixa o sujeito maluco.

Compro um revólver, vou dar um tiro na cabeça.

Mas em vez de dar um tiro na cabeça atiro na televisão. Vários tiros, destruo aquele monstro.

Não demorou muitos dias para que eu voltasse a desenhar.

Televisão? Nunca mais. Sem televisão eu fiquei bom, deixei de ser neurótico, coisa parecida.

Mas quando passo na vitrine de uma loja e vejo um aparelho de televisão confesso que meu coração bate apressado e minha boca se enche de saliva.

(Rubem Fonseca, Histórias Curtas, Sextante, pp. 67-68)

sábado, agosto 31, 2024

Rui Manuel Amaral

 


Um passarinho malicioso

Lazaros Leumorfis tinha o hábito de segurar a cabeça com as mãos porque acreditava que a qualquer momento esta podia desprender-se do pescoço e cair ao chão. Por isso, nunca se distraia da sua importante tarefa, segurando a cabeça com o maior zelo de que era capaz.

Mas fosse porque algum passarinho malicioso lhe soprava qualquer coisa ao ouvido, fosse por outro motivo que não procurei determinar, o certo é que houve um momento em que Lazaros se distraiu e largou a cabeça. Esta caiu instantaneamente ao chão, saltou duas ou três vezes com a elasticidade de uma bola de borracha, e rolou rua abaixo e em contramão, rumo à Place Dauphine, que brilhava lá ao longe.

Em que estado de espírito se encontrou Lazaros depois deste infeliz acontecimento, é algo que não nos atrevemos a imaginar. Diremos apenas que não se poupou a esforços para recuperar a cabeça, procurando-a por toda a parte, durante dias a fio. E de bom grado teria continuado a procurá-la se entretanto vários assuntos de maior importância o não tivessem chamado a outro lado.

In Doutor Avalanche, Angelus Novus, 2010, pp.  17-18


sexta-feira, junho 30, 2023

FRANZ KAFKA



 REFEEIÇÃO

    Quando eu encontro uma rapariga bonita e lhe rogo: «Tenha a gentileza de me acompanhar» e ela passa por mim sem uma palavra, é isto que ela me quer dizer:
    «Você não é nenhum Duque famoso, nenhum americano com perfil e pose de índio, de olhos fundos e misteriosos e uma pele temperada pelo ar das planícies e dos rios que nelas passam, não chegou aos sete mares nem nunca por eles navegou, onde quer que eles se encontrem, que eu não sei. Diga-me lá então porque é que uma rapariga bonita como eu haveria de ir com o senhor?»
    «Parece esquecer que nenhum automóvel a passeia em grandes voltas pela cidade; não vejo nenhum cavalheiro a rodar à sua volta, comprimindo por detrás a sua saia e murmurando-lhe benções ao ouvido; tem os seios bem seguros no corpete, mas suas coxas e ancas parecem compensar este aperto; tráz um vestido de tafetá, com uma saia plissada, que causou grande furor no Outono passado, e todavia ri-se - de tempos a tempos - atraindo o olhar do mundo.
    «Sim, temos ambos razão, mas para não sermos forçados a reconhecer o facto, não seria melhor seguirmos cada um para sua casa?»

in Contos de Franz Kafka, Cavalo de Ferro / Grande Reportagem, col. Nova Europa, Trad, de Nuno Batalha e Hugo Gomes, Lisboa, 2004, p. 147