domingo, março 31, 2024

Jorge Roque

 


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Anónimo entre tantos, tão diferentes, tão iguais, apareceste, suponho, sem o quereres na película. Rosto jovem, precocemente envelhecido, lábios roxos de sangue sufocado nas artérias, defendias a revolução com o ardor de quem por tão fundo acreditar, mais fundo havia já perdido. Camisa aberta, gestos largos, mãos nervosas sempre a acender outro cigarro, olhar límpido a idear outro futuro, eras a imagem da derrota e não sabias. Todavia, repetias em cada frase da tua retórica revolucionária. Todavia, reafirmavas, contra cada sombra que avançava, o sol que em ti era verdade, a luz que haveria que vencer por mais que a marcha dos homens a esmagasse. Todavia, camarada, que bem podias ser eu a gritar a céus inúteis, tudo estava condenado desde o começo, nem tu nem eu o podíamos evitar. Todavia, camarada, esta a natureza humana que nem deus nem homens podem alterar. Mas não te esqueças, por pouco que durasse tivemos a nossa Torre Bela, erguemo-la com os braços da nossa crença plena, vimo-la ruir sob o peso dos gestos tão humanos. Não me olhes com esse desalento, Torre Bela que foi no pensamento, somente nele poderá sobreviver. Tinha de ruir, põem isso na cabeça, mas foi nosso cada gesto obstinado de a erguer. E nada foi em vão, camarada. Foi precisa a tua força. Foi precisa a força de cada um de nós. Até dos que, como eu, só viriam a vivê-lo uma década mais tarde. Até dos que não nasceram e nessa luta e nessa força se hão-de reconhecer. E mesmo derrocada, a Torre Bela apenas ruiu na circunstância que a sustentava. E das ruínas há-de erguer-se uma vez mais, muitas vezes mais ainda, para outras tantas derrocar indiferente ao nosso empenho. Assim é, camarada, esta a vida e a sua beleza difícil de entender. Não cismes, o que podia ter sido é uma porta fechada, mas o caminho segue para lá dos nossos passos. Aceita-te no rosto de quanto lutaste e falhaste. Aceita que morres e não é o fim. Então sorri a tua vida derrotada e cumprida.

Jorge Roque, “Evocação e epitáfio”, in País Rato, ed. Maldoror, 2023, pp. 34-35