1, José Sócrates foi detido há dez anos,
quando regressava de Paris. Há sua espera, no aeroporto tinha não só a polícia,
mas também uma equipa de televisão para filmar o “acontecimento”. Depois de ser
ouvido pelo super-juiz Carlos Alexandre, por ordem deste ficou meses em prisão
preventiva. Por essa altura Portugal era governado pela coligação PSD/CDS e
pela troika. Passos Coelho, o primeiro-ministro, fazia a apologia do
empobrecimento, do ir além da troika que controlava a política portuguesa, em
troca dos mais de 70 mil milhões de euros que o BCE, FMI e UE nos tinham
emprestado. Nem o Ministério Público, nem o juiz Carlos Alexandre tinham, nessa
altura, provas contra o líder de dois governos do PS, entre 2005 e 2011.
Falava-se na imprensa, nomeadamente no Correio da Manhã, de uma série de casos
que apontavam para que José Sócrates fosse um corrupto. Por outro lado, a
sociedade portuguesa estava dividida em relação à figura de Sócrates: para uns
ele fora o responsável por Portugal ter chegado à quase bancarrota, mas, ao
mesmo tempo, viviam-se tempos de que não havia memória. O desemprego tinha
chegado aos 17, 18%, o governo de Passos e Portas tinha cortado o subsídio de
férias e Natal, os mais jovens emigravam. António Costa, que tinha substituído
o apagado António José Seguro como Secretário-Geral do PS, criou a frase “à
justiça o que é da justiça, à política o que é da política” – foi um mantra que
repetiu durante quase nove anos. Mário Soares, com 90 anos, que só conhecera as
prisões de Salazar, mostrava-se inconformado à porta da prisão de Évora, onde
estava Sócrates.
2, Foi no início dos anos 1990 que pela
primeira vez, desde o PREC, um político, neste caso ex-político, Costa Freire,
foi detido e julgado. O ex-secretário de Estado da Saúde de Leonor Beleza,
apesar de condenado em 1994, conseguiu, de recurso em recurso, que o seu caso
prescrevesse em 2004. Por essa altura Portugal vivia um outro grande processo
judicial-mediático: o caso Casa Pia, instituição onde durante décadas crianças
tinham sido abusadas sexualmente. Entre os acusados do processo Casa Pia estava
o nome mais sonante da televisão portuguesa: Carlos Cruz. Mas as crianças,
ouvidas pela PJ, também apontaram o jovem deputado do PS Paulo Pedroso.
Pedroso, então uma promessa nas hostes socialistas, ficou 4 meses em prisão
preventiva. Foi depois inocentado, e processou o Estado português, ganhando o
processo. Mas a sua carreira política estava liquidada – é hoje professor
universitário e comentador político na RTP. Por essa altura, correram boatos que
implicavam também Ferro Rodrigues, então líder do PS.
3, Durante os primeiros seis anos dos
governos de António Costa não constam grandes problemas com a justiça, para
além de Sócrates. Mas o governo maioritário, obtido pelas eleições de janeiro
de 2022, foi um desastre de “casos & casinhos”, uns que implicavam a
justiça, outros que apenas implicavam a administração de empresas como
aconteceu com a TAP. Costa sobreviveu politicamente até ao ponto de afrontar o
presidente da República, em maio de 2023, ao não aceitar a demissão do ministro
João Galamba, como o PR pretendia. Marcelo, o comentador-mor transformado em
Presidente da República, chegou a demitir ministros em directo. As relações
entre PM e PR azedaram, mas entre maio e novembro, essa manhã de 7 de novembro
de 2023, em que a polícia irrompeu pela residência oficial do
primeiro-ministro, em que Lucília Gago, a Procuradora- Geral da República,
escreveu um parágrafo assassino onde referia que António Costa era suspeito,
tudo esteve calmo. Mas nesse dia, mesmo ainda não sabendo que a polícia
encontrara 75 mil euros em notas no gabinete do seu assessor, António Costa
apresentou, em directo, para as televisões a sua demissão. O país foi apanhado
de surpresa, Marcelo não aceitou um outro primeiro-ministro que o PS indicou e
marcou eleições para 10 de março. Por essa altura, entre outras coisas,
ficou-se a saber que Galamba foi escutado durante 4 anos.
4. Se é certo que o poder gera corrupção, que
os anos de poder do Partido Socialista ajudaram a criar essa corrupção, não é
menos certo que o MP se tornou num actor político todo-poderoso, capaz de
lançar acções que demitem governos (algo que nunca tinha acontecido na
democracia portuguesa). António Costa não repetiu o seu mantra, “à política o
que é da política, à justiça o que é da justiça”. Porque, na realidade, essa
frase não é verdadeira. Existe separação de poderes, ninguém está acima de
ninguém na alegada cegueira da justiça. Mas o código penal, o código civil, o
código do processo penal, toda a legislação sobre a qual o poder judicial
actua, emana do poder político. À justiça apenas cabe a interpretação dessas
leis. Mas também os meios de que as polícias, o MP, os juízes, dispõem, são
dados pelo poder político. E, pela últimas e espectaculares intervenções da
justiça junto de políticos, o Partido Socialista foi generoso para com a
justiça, em particular para com a Polícia Judiciária.
5, Já depois da demissão do governo, num
período que é já de campanha eleitoral, o MP voltou a atacar. Agora, como que
querendo equilibrar a perseguição ao PS,
o MP atacou Luís Montenegro, o actual líder do PSD. Em causa algo que já
era sabido: a casa que este construiu em Espinho. Esquecido esse assunto, a
semana passada foi a vez de atacar em grande na Madeira. Um avião da Força
Aérea levou140 operacionais da PJ para o Funchal onde fizeram buscas na Câmara
Municipal do Funchal e na residência do presidente do governo regional da
Madeira. Tão espetacular operação, resultou na detenção do presidente da Câmara
do Funchal, Pedro Calado, e na constituição de Miguel Albuquerque como arguido.
Daqui resulta uma incerteza quanto ao futuro político da Madeira: ou a
continuação deste governo com o apoio do PAN, ou a marcação de novas eleições.
6, Em 2017 o juiz Sérgio Moro condenou “Lula”
da Silva a mais de nove anos de prisão, impedindo-o assim de concorrer às
eleições presidenciais que foram ganhas pelo candidato da extra-direita Jair
Bolsonaro. Sérgio Moro viria a fazer parte do governo de Bolsonaro. A justiça,
no Brasil, serviu uma muito má causa política. Em Portugal, a frenética
actividade do Ministério Público parece querer corroer a democracia. Tal como
no Brasil, o partido que parece sair mais beneficiado da suspeita que recaiu
sobre António Costa, é de extrema-direita. Mas, sobretudo, e embora com o
desgaste do PS de António Costa, temos um MP que se arvora no poder de lançar
uma suspeita (apenas isso, nem sequer o constitui arguido) sobre um
primeiro-ministro enfraquecido, sabendo que isso vai despoletar eleições
legislativas. O mesmo é verdadeiro para o caso recente da Madeira. O grande
beneficiário de tudo isto, no fundo da ideia populista de que os políticos são
todos corruptos, é o partido de extrama-direita, manifestando-se contra o
sistema (político), contra a III República saída do 25 de Abril, ganhando
votos, porque, na realidade, como disse Freud, a tarefa de governar é uma das
tarefas impossíveis. Ora, quando essa tarefa exige os melhores de uma sociedade,
a suspeita a priori de que todo o político, qualquer pessoa que exerça um cargo
público é um corrupto, é o código postal para a derrocada de uma difícil
democracia.