sábado, dezembro 31, 2022

LIVROS EM 2022

 


1, A 24 de Fevereiro de 2022 a Rússia invadia a Ucrânia. Não era a primeira vez que a guerra eclodia na Europa depois de 1945, mas desta vez o ocidente (UE, Nato, EUA), não estava disposto a tolerar as ambições lunáticas de Putin. Nem os jornalistas a abdicar do modo monotemático dos telejornais: substituíram a covid pela guerra. O resultado é a divisão do mundo, de novo, em dois blocos, como durante a Guerra Fria. Os Estados Unidos, com Biden, em nada mudaram: são os polícias do mundo, estão a alimentar a guerra através da ajuda militar à Ucrânia de Zelensky. Parece que ninguém quer a paz. E os Ucranianos, incentivados pelo nacionalismo do fantoche Zelensky, são as vítimas disto tudo. Eles e os soldados russos. A Ucrânia é no início deste século o solo onde se joga uma perigosa e barbara partida de xadrez, onde não pode haver xeque-mate. E, em fundo, ecoa a ameaça nuclear. Ora esse facto, deu lugar na actividade editorial, à publicação de uma série de livros relacionados com o tema. Desde histórias da Rússia, biografias de Putin, à publicação de escritores ucranianos. 

2, Byung-Chul Han. Vivemos em certo sentido "tempos sombrios" (H. Arendt), marcados pela emergência climática, pelo avanço da extrema-direita, por um mundo onde a nossa relação com as coisas, os objectos, se torna cada vez mais virtual, e onde essa virtualização corresponde a uma exploração dos nossos dados por mecanismos mais ou menos secretos de Inteligência Artificial (IA), como o tem vindo a denunciar, numa analítica da actualidade, o filósofo germano-sul-coreano Byung-Chul Han. De Han a Relógio d' Água tem vindo a publicar a sua já extensa obra de pequenos livros - cerca de 100 páginas cada um - onde se procede a uma crítica e elucidação do tempo presente. Este ano publicou Não-Coisas e Infocracia. Ora estes livros, levantando o problema da virtualização das coisas, estão também a levantar o problema da virtualização da leitura. No que respeita aos jornais isso é evidente: são os próprios jornais que cada vez mais apostam nas suas edições on-line. Mais: como tinha previsto Mcluhan, estamos a caminho de uma sociedade oral, onde a leitura em silêncio acabará por desaparecer. São disso exemplo, já, a leitura áudio de artigos por máquinas de IA, como faz, por exemplo, a edição on-line do jornal Público. Mas também o word do windows 11 possibilita a leitura áudio de documentos da mesma forma. 

3, Centenários. 2022 foi o ano do centenário de nascimento de dois dos mais importantes escritores portugueses da segunda metade do século XX: José Saramago e Agustina Bessa-Luís. Foram também personalidades politicamente nos extremos. José Saramago, filho de pobres agricultores, tornou-se militante do PCP durante a ditadura do Estado Novo; depois do 25 de Abril, e durante o chamado "verão quente" de 1975, foi director-adjunto do Diário de Notícias, então nacionalizado. Os escritos de Saramago, no Diário de Notícias não constam das suas Folhas Políticas, livro que recolhe textos entre 1976 e 1998. Mas terá sido um período de efervescência em que o escritor José Saramago começou a nascer para a escrita que o viria a consagrar com o Nobel da literatura (é certo que já tinha publicado um romance e 3 livros de poemas). Do outro lado, completamente oposto, temos Agustina Bessa-Luís, filha de uma família burguesa. Incorporou o espírito familiar na defesa de um reaccionarismo  bastante patente na sua vasta obra, estranha e por muitos julgada de quase genial. A origem social foi marcante para a obra destes dois escritores tão antagónicos. Mas no caso de Agustina, a sua defesa de classe torna-se por vezes enervante. A utilização da palinódia, esse dizer e desdizer, fazer e desfazer verbal; o aforismo, em que a escritora de Amarante foi prolifica, serviram sempre uma causa extremamente conservadora, escandalosa por vezes, como a caracterizou Eduardo Prado Coelho em A Noite do Mundo. Recorde-se um episódio sintomático: depois da SPA ter atribuído um prémio literário a Luandino Vieira, a PIDE destruiu a sede da SPA; Óscar Lopes escreveu a Agustina - entre outros escritores - para tomarem uma posição publica, mas a autora de A Sibila declinou qualquer compromisso. Agustina vivia num "mundo fechado" (título do seu primeiro livro) que não reconhecia a existência do outro - nisso, creio, reside o "escândalo" a que aludia EPC. Já o Saramago que terá participado dos saneamentos de trabalhadores do DN, fá-lo no período de uma efervescência revolucionária. 

Mas este ano de 2022 também foi o ano do centenário do nascimento de Pier Paolo Pasolini. Cineasta, dramaturgo, romancista, poeta, ensaísta, Pasolini foi sobretudo alguém polémico no meio intelectual italiano. Polémico porque lúcido, polémico porque pensava por si, fora de qualquer categoria de adestramento ideológico, porque sendo comunista, homossexual e católico era já o bastante para desarrumar as etiquetas que não lhe conseguiam colar. Por isso, também, incómodo. Pasolini é, ao mesmo tempo o realizador do filme Evangelho Segundo S. Mateus e o autor do romance Vida Violenta; o autor do filme Saló ou os 120 Dias de Sodoma onde denúncia o fascismo italiano de Mussolini e o que também existia de fascista, avant la lettre na obra de Sade; é contra o aborto e denuncia o desaparecimento dos pirilampos como signo do capitalismo e das luzes eléctricas que avançam pelo espaço da noite. De Pasolini foi este ano editado pela VS Entrevistas Corsárias - sobre a política e a vida, A Poesia é uma Mercadoria Inconsumível (Sr. teste) e O Odor da Índia (Desassossego) - relato de uma viagem à Índia na companhia de Alberto Moravia e Elsa Morante. João Oliveira Duarte publicou um glossário em forma de ensaio sobre temas pasolinianos: Não Sou da Família - Notas Sobre Pasolini (BCF Editores). Recorde-se que Pasolini seria assassinado a 2 de Novembro de 1975 na praia de Óstia, por um ragazzo di vita. Em homenagem a Pasolini os Coil compuseram esta magnifica canção, precisamente intitulada Ostia.

De Marcel Proust, o autor de um dos grandes romances do século XX, esse imenso Em Busca do Tempo Perdido (a tradução para português europeu é de Pedro Tamen e está publicada na Relógio d' Água), comemoraram-se este ano os 100 anos do falecimento. Por cá em silêncio total. Outro dos mais referenciados como grande romance do século XX, ou de sempre, é Ullises de James Joyce - livro quase intragável que comemorou este ano o centenário da sua primeira edição. A Relógio fez uma edição especial da tradução de Jorge Vaz de Carvalho, enquanto a Livros do Brasil reeditou a tradução de João Palma-Ferreira.

4, Pessoa. Fernando Pessoa continua a assombrar a literatura portuguesa e não só. Este ano publicaram-se duas biografias do poeta dos heterónimos: de Richard Zenith, um dos principais estudiosos e editor da obra pessoana, foi traduzida para português a sua monumental biografia de Fernando Pessoa - Pessoa. Uma Biografia (Quetzal) que foi finalista do Prémio Pulitzer. A outra biografia de Pessoa, é da autoria de João Pedro Gorge - O Super-Camões. Biografia de Fernando Pessoa (D. Quixote) - foi menos referenciada. João Pedro George é autor de biografias de Luiz Pacheco, da Marquesa de Paiva ou de Mota Pinto, o presidente do PSD que nos anos 80 formou governo com o PS de Mário Soares. A biografia de João Pedro George é também a segunda feita por um autor português, mais de 70 anos depois de João Gaspar Simões escrever a primeira biografia de Pessoa. Na verdade, descontando uma biografia feita por um brasileiro, há poucos anos, e que os pessoanos rejeitaram como pouco séria, existiam apenas duas biografias sobre Fernando Pessoa: a de Gaspar Simões e a de Robert Bréchon publicada nos anos 1990. 2022 foi o ano em que apareceram mais duas. Pessoa é tido, por uma ideia generalista, como quase não tendo biografia; o que viveu, os seus pensamentos, estão em fragmentos dentro da famosa arca. Em parte isto será verdade: se Wittgenstein poderia referir como o melhor da sua obra tudo o que não escreveu (mas pensou, ou mesmo verbalizou), já Pessoa parece ter apontado quase tudo o que pensou. E nenhuma biografia pode ultrapassar essa grande obra que é o Livro do Desassossego, onde existem resquícios auto-biográficos. Mas a vida de Pessoa vai para além da sua escrita, do seu "texto" que ele deixou para que outros o fixassem. E é nesse labirinto pessoano, quase um palimpsesto, que Pessoa continua vivo, nas múltiplas variantes dos seus textos, a "obra" pessoana é sempre incompleta.    

5. Pessoa, o Prémio. O Prémio Pessoa é atribuído desde 1987 pelo semanário Expresso. Tem galardoado poetas, escritores, cientistas, historiadores, artistas, juristas, arquitectos, etc. A lista já é longa e inicia-se com José Mattoso (em 1987). Como poetas o prémio foi entregue a António Ramos Rosa (1988), Vasco Graça Moura (1995), Manuel Alegre (1998), Mário Cláudio (2004) e - única rejeição - a de Herberto Helder (1994). Agora, em 2022 o júri entendeu voltar a atribuir o prémio a um poeta e escolheu... João Luís Barreto Guimarães. É simplesmente uma escolha que não se percebe - embora o júri, sempre presidido por Francisco Pinto Balsemão, não pareça perceber muito de poesia, tem entre os seus elementos a ex-crítica literária Clara Ferreira Alves. Qualquer que seja a lógica do prémio (galardoar consagrados ou pessoas de quem se espera que "ofereçam obras" á sociedade), o nome de Barreto Guimarães aparece no fim de uma lista onde há muitos outros poetas que mereciam o prémio. E nisso é bom não esquecer poetas como António Franco Alexandre, José Agostinho Baptista, João Miguel Fernandes Jorge, Paulo da Costa Domingos, Fátima Maldonado, Nuno Júdice, entre outros, que iniciaram a publicação da sua obra na década de 70. Mas se o júri queria dar o prémio a alguém que por várias razões o merece, mesmo porque pertencem à geração de Barreto Guimarães, a dos poetas dos anos 80, tinha dois nomes: Adília Lopes ou Carlos Poças Falcão. Adília é já um nome incontornável na poesia portuguesa, precisamente pela sua aparente apoeticidade, por uma poesia da imanência que sobrevaloriza - e bem - a vida à obra. Já Carlos Poças Falcão, poeta também dos anos 80, é um poeta extremamente discreto que só a reunião da sua poesia completa, em 2012, com Arte Nenhuma (republicada com acrescentos em 2020 pela Língua Morta) pôde dar uma visão geral da obra deste poeta que está entre os melhores da poesia portuguesa actual. J. L. Barreto Guimarães é apresentado como poeta tradutor e médico; vive no Porto e há anos que com Jorge de Sousa Braga edita o blogue Poesia Ilimitada.  Aliás Sousa Braga, que também é médico (obstetra) e vive no Porto, seria um nome com mais notabilidade para receber o prémio Pessoa, mas o júri talvez não quisesse entregar o prémio a um poeta que é autor de um livro intitulado De Manhã Vamos Todos Acordar Com Uma Pérola no Cu  (Fenda, 1983). Note-se ainda que, embora sem nenhuma formação académica para o efeito, Barreto Guimarães lecciona no curso de medicina do ICBAS, uma cadeira de poesia. No entanto, a sua poesia, por vezes, adentra-se numa perigosa ironia que uma leitura literal (e onde começa a ironia e acaba a literalidade?) pode chocar com a deontologia da sua profissão.

Enfim, há nos prémios que concernem ao campo literário sempre uma injustiça. Neste caso, do Prémio Pessoa, é de lembrar que Fernando Pessoa quando concorreu com a Mensagem a um prémio de poesia ficou em segundo lugar. Do vencedor ninguém sabe hoje o nome. Um outro prémio literário bastante discutível é o Nobel da literatura, que este ano foi para a francesa Annie Ernaux. Mas o Nobel da literatura tem já as suas regras, que alguns ingénuos teimam em não perceber. Para já, uma regra clara é a equidade de género (ou quotas literárias): um ano um homem, no outro uma mulher.

6, Vejamos agora os livros publicados em 2022, dos quais fiz uma selecção dividida por géneros. No que respeita à poesia, parto de uma citação de António Guerreiro, no suplemento Ípsilon do Público de 23-12-22: "o que a poesia contemporânea tem de mais importante deixou de ser maioritariamente assinado por nomes masculinos" (p.14). De facto, isso é hoje uma evidência, cujo diagnostico é um pouco tardio: a década de 2010 é já marcada pelo aparecimento de algumas poetas e o consolidamento de outras. A par disso dá-se um desvanecimento de uma poesia do quotidiano ou do real (e o gesto radical de Joaquim Manuel Magalhães em Um Toldo Vermelho, também é disso sintomático), que a antologia Poetas Sem Qualidade, organizada por Manuel de Freitas, constituiu um marco. Nomes como Andreia C. Faria, Raquel Nobre Guerra, Margarida Vale de Gato, Cláudia R. Sampaio ou Elisabete Marques (para só nomear autoras que publicaram este ano e constam desta lista), trouxeram uma inflexão á poesia portuguesa, que genericamente parte de um abandono da poesia do real. Nomes como Isabel de Sá (ou Eduarda Chiote), voltaram a publicar depois de anos sem publicar. No caso de Isabel de Sá, publicou a sua poesia reunida (pela segunda vez depois de Repetir o Poema - Quasi, 2005 - e do inédito O Real Arrasa Tudo, em 2019). Trata-se de uma obra das mais singulares da poesia portuguesa, que tem sido esquecida. Desta constelação de mulheres poetas - ou poetisas - assinale-se ainda Adília Lopes, nome cimeiro da poesia actual que este ano publicou o livro Pardais. Um dos poetas mais esquecidos da poesia portuguesa contemporânea é Rui Diniz, que no início da década de 70 publicou Ossuário. Este ano, cerca de 50 anos depois, publicou Ossos de Sépia. Registe-se ainda a reedição da poesia de António Gancho na Assírio & Alvim, editora que apostou para calhamaço do ano na obra completa de Paul Celan, um dos grandes poetas do século XX, cuja poesia é marcada pelo Holocausto.

No que respeita à ficção, assinalem-se três autores malditos: Michel Houllebecq, Thomas Bernhard e Jean Genet. Este último, tem andado arredado da edição em Portugal, pelo menos desde que a Hiena o públicou. António Lobo Antunes publicou, aos 80 anos, O Tamanho do Mundo (D. Quixote). De George Orwell foram publicados mais dois romances (Emergir Para Respirar - Relógio d' Água - e História de Um Homem Comum - E-Primatur). Orwell é de facto um autor fundamental para os tempos que atravessamos, e a edição portuguesa tem feito jus a esse facto, editando quase toda a obra do autor de 1984.

Quanto ao ensaio a colheita foi boa e abundante. Destaque-se o primeiro volume dos Ensaios de Montaigne publicado pela E-Primatur e os 48 Ensaios de Virginia Woolf. Para além dos livros de Byung-Chul Han, outros títulos colocam-nos questões. É o caso do título de Angela Davis editado pela Antígona: As Prisões Estão Obsoletas? Mas, também, do Livro do Clima organizado por Greta Thunberg. Noutro registo, Miguel Esteves Cardoso recuperou a sua Escrítica Pop e as crónicas que escreveu no Independente. Livros de Foucault (o seminário sobre essa categoria da psiquiatria e da biopolítica que foram Os Anormais), de Agamben sobre o período da loucura de Holderlin, de Deleuze sobre Proust em ano do seu centenário. Federico Bertolazzi com No Reino da Terrível Pureza (Documenta) interroga a edição da obra de Sophia. Para o autor, Sophia tem estado a ser censurada por uma série de artigos que ela publicou na imprensa não terem sido editados em livro. 

A mancha gráfica de um livro nem sempre é constituída por palavras. Por vezes surgem as imagens, ou quase só imagens. Estão neste caso os livros de Banda Desenhada ou novelas gráficas. Por isso faço referência a 3 livros nesta lista: a Obra Gráfica de Mário Henrique Leiria (que completa a edição das suas obras completas editadas na E-Primatur), a reedição da reportagem gráfica Palestina da autoria de Joe Sacco, e de Reinhard Kleist uma obra gráfica sobre Nick Cave. E, ainda, um livro de fotografia de um dos grandes foto-repórteres portugueses: Alfredo Cunha, publicado na colecção Ph da Imprensa Nacional com textos de António Barreto e David Santos. Esta é uma excelente colecção de fotografia, onde já foram publicados livros de Jorge Molder, Paulo Nozolino ou José M. Rodrigues com textos de José Bragança de Miranda, Rui Nunes ou Maria Filomena Molder.

7, Editoras. Basta olhar para a lista, para encontrar algumas pequenas e médias editoras, fora dos grandes grupos (Porto Editora, Leya), que, penso, melhor têm editado. É o caso da Antígona, Relógio d' Água, Tinta da China, Documenta ou E-Primatur - entre as médias editoras - e da Barco Bêbado, Sr, Teste, Língua Morta, Saguão, Dois Dias ou BCF Editores entre as pequenas editoras. O grupo Almedina, a que pertence a bastante activa Edições 70, tem feito um excelente trabalho editorial que dignifica esta chancela com quase 50 anos de existência.


POESIA

Adília Lopes - Pardais (Assírio & Alvim)
Isabel de Sá - Semente em solo adverso (Officium Lectionis)
Andreia C. Faria - Canina (Tinta da China)
Raquel Nobre Guerra - A divisão da alegria (Tinta da China)
Cláudia R. Sampaio - Uma mulher aparentemente viva (Porto Editora)
Rui Diniz - Ossos de sépia (Língua Morta)
Rui Baião - Motim (Barco Bêbado, c/ posfácio de Rui Nunes)
Paulo da Costa Domingos - Na sombra da quinta vertical (Barco Bêbado)
Paul Celan - Os Poemas (Assírio & Alvim, trad. Mª Teresa Dias Furtado)
J. W. Goethe - Os Poemas (Edições 70)
F. Nietzsche - Poemas (Edições 70)
Horácio - Odes e epodos (Tinta da China)
Robert Walser - Estou só e fora do mundo: 50 poemas (Sr. Teste)
Margarida Vale de Gato (org. e trad,) - O outono de oitocentos (Flop)
Elisabete Marques - Estranhos em casa (Língua Morta)
José Afonso - Obra Poética (Relógio d' Água)
Vítor Silva Tavares - Poemas de amor e ódio (Barco Bêbado)
António Gancho - O ar da manhã (Assírio & Alvim, reed.)
José Carlos Soares - Medição dos Arvoredos (Alambique)

FICÇÃO
Michel Houllebecq - Aniquilação (Alfaguara)
Thomas Bernhard - Geada (Dois Dias Editora)
Jean Genet - Diário do Ladrão (Minotauro)
Geoffrey Chaucer - Contos de Cantuária (E-Primatur, trad. Daniel Jonas)
Thomas Carlyle - Sartor Resartus (Imprensa Nacional)
Henrich von Kleist - Estranha profecia e outros textos (E-Primatur)
Isaac Asimov - Eu, Robô (Relógio d' Água)
Woody Allen - Gravidade zero (Edições 70)
George Orwell - Emergir para respirar (Relógio d' Água)
George Orwell - História de um homem comum (E-Primatur)
Gonçalo M Tavares - O diabo (Bretrand)
António Lobo Antunes - O tamanho do mundo (D. Quixote)
Raquel Gaspar da Silva - A pedra é mais bela que o pássaro (Caixa Alta)
Dulce Garcia - Olho da rua (Companhia das Letras)
João Reis - Cadernos da água (Quetzal)

ENSAIO
Virginia Woolf - 48 Ensaios (Relógio d' Água)
Michel de Montaigne - Ensaios (E-Primatur)
Byung-Chul Han - Infocracia (Relógio d' Água)
Byung-Chul Han - Não-Coisas (Relógio d' Água)
Greta Thunberg (org.)- O Livro do Clima (Objectiva)
Critical Arte Ensemble - Desobediência civil electrónica e outras ideias impopulares (Barco Bêbado)
Angela Davis - As prisões estão obsoletas? (Antígona)
Michel Foucault - Os anormais (Edições 70)
Giorgio Agamben - A loucura de Holderlin (Edições 70)
Gilles Deleuze - Proust e os signos (Barco Bêbado)
J. W. Goethe - A metamorfose das plantas (Saguão, trad. Maria Filomena Molder)
Miguel Esteves Cardoso - Escritica pop (Bertrand)
Miguel Esteves Cardoso - Independente demente (Bertrand)
André Barata - Para viver em qualquer mundo (Documenta)
Fernando Rosas (coord.) - Revolução Portuguesa 1974-75 (Tinta da China)
António Araújo - O mais sacana possível - a revista Almanaque (Tinta da China)
Rosa Maria Martelo - Devagar, a poesia (Documenta)
Frederico Pedreira - Um virar de costas sedutor (Relógio d' Água)
AA VV - Sobre Sophia: novas leituras (Assírio & Alvim)
Federico Bertolazzi - No reino da terrível pureza (Documenta)
João Oliveira Duarte - Não sou da família. Notas sobre Pasolini (BCF)
Luís Varela Aldemira - Arte e psicanálise (Taiga)
S. Kierkegaard - Diário de um sedutor (Sr. Teste)
David Graeber e David Wengrow - O príncipio de tudo - uma nova história da humanidade (Bretrand)
Carlo Rovelli - O Abismo vertiginoso (Objectiva)
Susan Sontag - Contra a interpretação (Quetzal)
Elena Ferrante - As margens e a escrita (Relógio d' Água)
Carlos Taibo - Ibéria esvaziada (Livraria Letra Livre)
Luís Mateus - O campeonato do mundo (Kathartika)

OUTROS. BIOGRAFIA, DIÁRIO, VIAGENS, NOVELA GRÁFICA
Richard Zenith - Pessoa. Uma biografia (Quetzal)
João Pedro George - O Super-Camões, biografia de Fernando Pessoa (D. Quixote)
Benjamin Moser - Sontag: vida e obra (Objectiva)
Witold Gombrowicz - Diário II (1959-1969) (Antígona)
Fernando Pessoa - Diário e escritos autobiográficos (Assírio & Alvim)
Pier Paolo Pasolini - O odor da Índia (Desassossego)
Alberto Moravia - Cartas do Sahara (Tinta da China)
Walter Benjamin - Diários de Viagens (Assírio & Alvim)
Mário-Henrique Leiria - Obra gráfica (E-Primatur)
Joe Sacco - Palestina (Tigre de Papel)
Reinhard Kleist - Nick Cave: Mercy on Me (Minotauro)





quarta-feira, novembro 30, 2022

ISABEL DE SÁ

 


    O abismo iluminado voltou, era cerca de meio-dia. Ia-me tragando por completo, avançando-me no rosto, nas olheiras, no plano altamente claro da fronte, no tempo.
    E então vê-se que somos uma parte de nos não revelada.
    O que existe ali
    não é uma espécie de expressão, é a expressão. Única. Gelada.

(de Esquizo Frenia, 1979)

O braço dela descansou no meu tronco enquanto o rosto dormia na minha virilha. Luz pesada fazia de lençol para abrigo de corpos exaustos. As palavras. As palavras corriam pelas pernas, pelo dorso até à nuca. Eram palavras brancas desenhadas a pincel escorrendo tinta. Ainda.

(de O Festim das Serpentes Novas, RP p. 51)


[...]

    Podemos pensar no escritor que nunca escreveu um livro, aprender com a obscuridade exemplar da sua vida. A recusa a escrever livros, fazendo convergir toda a energia na procura da unidade absoluta, fez dele um ser excepcional. 
(de Escrevo Para Desistir, 1986, RP p. 203)

    Eu ela e a escrita existimos desde o princípio. A escrita forma-se em mim, passa por ela e volta à minha pele num jogo sensual e íntimo. É um ser maleável aos gestos que executamos, vive e morre com os nossos impulsos. Quando se ausenta deixa sinais. Faz-nos confidências da sua vida errante, elabora sentimentos que não esperávamos que tivesse quando junta ao nosso, o seu instinto criativo. Assim, utilizo agora palavras que nunca pensei vir a escrever. Aceito-as porque as sei da espécie de personagem que habita connosco, conivente com os erros que cometemos.
    Quando adolescente, passava o tempo a ler o dicionário, apercebendo-me da corrosão de algumas palavras, do seu poder destrutivo. Noutras havia sombra e um peso monstruoso. E as que ao tempo foram luminosas, irradiavam um brilho que se colou aos meus dedos. Eu gastava os dias a limpar-me dessa luz até não haver em mim resíduos de leitura. Descobria o esquecimento, onde o poema veio a ser abismo, outra vida onde o sorriso da morte teve muita importância. Amei a imperfeição do ser humano. Revisitei a infância e aquilo que em nós é real. Não soube prescindir da beleza.

(de Escrevo Para Desistir, 1986, RP p. 206)  



Isabel de Sá nasceu em Esmoriz (1951). Cursou Belas-Artes na FBAUP, sendo professora do ensino secundário e pintora (actividade que não pode ser desligada da sua poesia). Como poeta publica em 1979 o livro Esquizo Frenia (& etc) a que se seguem até 1999 mais onze livros. Em 2005 publica a sua obra completa até então sob o título Repetir o Poema (Edições Quasi). Em 2019 volta a publicar um livro de inéditos: O Real Arrasa Tudo (Porto Editora); em 2021 é publicada uma antologia da poesia da autora com selecção e organização de Graça Martins: A Alegria da Dúvida (Exclamação); em 2022 publica Semente em Solo Adverso (Officium Lectionis).
No centro da poesia de Isabel de Sá está uma reflexão sobre o poema, as palavras e o amor-erotismo - vejam-se a este respeito os livros Em Nome do Corpo (1986), Escrevo para Desistir (1988), O Avesso do Rosto (1991) ou O Duplo Dividido (1993). Para além desta reflexão, em poemas em prosa, Isabel de Sá começou por explorar a temática da loucura (com a qual dialoga com a obra de um dos fundadores da antipsiquiatria, Ronald Laing) e da infância. É da perturbação como sabotagem de uma ideia de infância - a actual ou a do tempo da autora - que se alimentam muitos dos poemas dos primeiros livros: Esquizo Frenia (1979), Bonecas Trapos Suspensos (1983), Autismo (1984) ou Restos de Infantas (1984).
Por razões obscuras, a poesia de Isabel de Sá, não teve nem tem tido a devida atenção por parte da crítica. Espera-se que os livros publicados nestes três anos, resgatem a autora de um esquecimento a que não é estranho os 20 anos que Isabel de Sá esteve sem publicar. 


segunda-feira, outubro 31, 2022

ARTUR ROCKZANE

 








NO AMOR E NA MORTE
- PARA ANDREAS BAADER - 

Já ninguém tem revelações a fazer;
a noite é a véspera da noite.
A Alemanha fria e ressentida
a pesar-me sob os tennis-shoes.
Uma guerra que nunca acabou;
pode ser que essas crianças 
os filhos desgrenhados e perdidos 
duma geração desencantada,
pode ser... apenas isso.

Berlim é para sonhar
Frankfurt para morrer,
e há que vingar um milhão de poetas
de dedos decepados!
(com uma certa elegância mística...)
ONDAS DE RAIVA NIILISTA
arrasam a Europa!
e sacodem o pó das virilhas metálicas
sem o fascínio dos miúdos pálidos,
europeus.

Há que cravar punhais
na face outonal e seca dos cidadãos!
Atirar aranhas enormes, venenosas
contra o tédio!
Siegfried arrasta as asas...
flores mortas para Siegfred
(escrever a madrugada)
pobre pagador de Karma...

E depois,
há um certo prazer
(falo com Meinuch, guerrilheira de veludo)
em ficar debaixo da chuva,
clandestinos -
- nada para perder, nada para ganhar!
Ah! Este tédio das ruas
banhadas em suor cinzento
E eu desde a nossa tribuna
erigida no silêncio flutuante
por anjos sujos.
Berro!
Grito!
Declaro o brilho das minhas botas...

E depois, através do meu corpo disperso
percebe-se a luz 
(os anjos cravaram nele os seus punhais).
  
Artur Rockzane nasceu em 1953. Poeta nómada e punk, publicou Cavalos, Heróis e Lunáticos (Fenda, 1983), a que pertence este poema dedicado a Andreas Baader, do grupo "terrorista" Baader-Meinhof. No início deste século publicou nas edições Quasi os livros Hortênsio Miraflor - suicídio e obra e Soror Messalina: Datura Ferox. Recentemente a livraria Poetria publicou de Artur Rockzane a antologia Beat, já esgotada.

 


sexta-feira, setembro 30, 2022

ANDA UM ESPECTRO PELA EUROPA

 


1, Se era com esta frase, "Anda um espectro pela Europa" com que se iniciava o Manifesto do Partido Comunista, publicado em 1848, e escrito por Marx e Engels, cerca de 170 anos depois podemos dizer que anda um espectro pela Europa, mas não é em nada o do comunismo. Esse espectro, que não é novo, é o do fascismo, ou pelo menos de partidos de extrema-direita que começam a tomar o poder em vários países europeus. Giorgia Meloni, e o seu partido Irmãos de Itália (FdI) venceram, no passado Domingo, 25, as eleições legislativas, com cerca de 26 por cento da votação, o que lhes permite liderar um governo em coligação com a Força Itália de Berlusconi, e a Liga de Salvini. A direita e a extrema-direita juntam-se para governar. Em Itália, onde o fascismo nasceu, por Mussolini - e se enterrou com ele - algo dele ressurge, na figura carismática de Giorgia Meloni. Mas como podemos averiguar o quanto Meloni é fascista? Ela que já elogiou Mussolini e já o repudiou, que pretende, ou pelo menos pretendia, fazer uma revisão da Constituição, mas não a poderá fazer porque a direita não tem maioria de dois terços; ela que defende os valores que Salazar defendia: Deus, pátria e família, mas é uma mulher e já foi deputada e ministra num governo de Berlusconi - algo impensável para os tempos do velho fascismo. 

2, No caso específico de Itália, temos que nos lembrar que durante anos, ao contrário da generalidade das democracias, governadas ao centro, a Itália teve como principais partidos dois extremos; a democracia cristã e o partido comunista. O facto de em Itália ficar o Vaticano, a sede da Igreja católica, não será alheio a este quadro partidário. Mas depois, com a queda do comunismo a leste, entrou em cena o populismo de Berlusconi, antes que a adjectivação de populista tivesse entrado no vocabulário político-jornalístico. Eram os anos 90, a máfia continuava a ser uma tradição que mancha a sangue esse belo país, e a corrupção entre política e negócios ia para além da cosa nostra. Berlusconi está há 28 anos na política, muitos dos quais como primeiro-ministro; Meloni foi sua ministra. Mas nada disto - uma contextualização histórica - explica que esse novo espectro da extrema-direita tenha caído sobre a Itália. No El País alguém lembrava que a Itália tem uma esquerda fraca - é uma tentativa de explicação. A verdade é que este não é um fenómeno italiano. Para já inclui a Hungria, a Polónia, e recentemente a Suécia, mas já o vimos no poder nos Estados Unidos, e ainda mora no Brasil, de onde deverá ser despejado em breve e onde fez mais estragos. E esquecia-me das Filipinas, e talvez de outros países que interessam pouco aos média ocidentais. 

3, Pier Paolo Pasolini de quem se cumpre este ano o centenário do nascimento, tem um famoso texto onde fala do desaparecimento dos pirilampos causado pela luz artificial que invade o tempo nocturno. Mas também pelo avanço do capitalismo, nomeadamente nos pesticidas que invadiram os terrenos rurais. Pasolini, comunista, cristão e homossexual, assassinado por um ragazo di vita na praia de Ostia, era o mais lucido e polémico intelectual italiano. Ele, há cerca de 50 anos já tinha visto o fascismo, que talvez nunca tenha desaparecido completamente da sociedade italiana, assim como o nazismo não desapareceu completamente da Alemanha ou da Áustria (veja-se a denuncia feita pelo escritor Thomas Bernhard), nem o salazarismo de Portugal. Ele talvez tivesse uma explicação bastante lúcida para o fenómeno Meloni e outros. Ou talvez nos seus textos e entrevistas encontremos essa explicação.

4, Penso que a ascensão da extrema-direita, um pouco por toda a Europa, tem que ser vista como um fenómeno em toda a sua extensão. O espectro do "fascismo" (permita-se as aspas para designar algo que não pode ser situado nos velhos fascismos de Mussolini, Franco ou Salazar) pode ser visto a partir de um enfraquecimento do centro político, ou seja, da social-democracia, entendida aqui também como socialismo democrático. Isso é visível no caso francês com o desaparecimento do Partido Socialista. Mas em França, Macron conseguiu preencher esse centro, evitando que Le Pen chegasse a presidente da República. O facto de França ser um regime presidencial, onde o governo é nomeado pelo presidente, também tem ajudado a que a família Le Pen, de evidente extrema-direita, não tenha tomado o poder. Mas se isso ainda não aconteceu, poderá vir a acontecer. De facto, o espectro paira sobre quase toda a Europa. 

5, O centro político não tem dado respostas aos problemas das pessoas, antes tem-se comportado, por vezes, como uma forma de governar contra as pessoas. Caso paradigmático disso foi o governo PSD/ CDS liderado por Passos Coelho, que à boleia da crise financeira iniciada em 2008, estabeleceu uma política, em conjunto com a troika, que retirou direitos sociais há muito adquiridos pelos portugueses. Por outro lado, a esquerda, com a excepção do PCP que tem perdido terreno pela sua posição em relação à guerra na Ucrânia, tem enveredado por causas fracturantes como os direitos LGBT +, a eutanásia, ou mesmo os direitos dos animais. Ou seja, em Portugal, como em Espanha e noutros países, a esquerda é cada vez mais uma esquerda caviar, preocupada com os direitos e causas dos seus membros e ignorando os direitos daqueles que têm vidas precárias: os assalariados com o salário mínimo, os beneficiários do parco RSI e aqueles que nada recebem, vivendo da ajuda da família ou mesmo sendo atirados para a rua em condições de sem-abrigo. Estas pessoas, principalmente os desempregados de longa duração, não interessam em nada a esquerda - muito menos à direita. São como se não fossem sujeitos políticos, ou nem sequer sujeitos tout cour.

6, O cenário que se esboça é o de um alargamento deste espectro da extrema-direita, em coligações com partidos da direita moderada. Espanha terá eleições legislativas no próximo ano. O PP, partido tradicional da direita tem vindo a ganhar um espaço que perdeu, mas isso talvez não seja suficiente para governar com maioria absoluta. Por isso equaciona-se uma aliança eleitoral que inclua o Vox, o partido de extrema-direita. O mesmo acontece em Portugal se pensarmos no que podem ser as eleições legislativas de 2026. O PS apresenta já um significativo desgaste, apesar de governar sozinho com maioria absoluta. Ora, é de conjecturar que daqui a 4 anos esse desgaste será ainda maior, e a direita terá maioria absoluta, na qual se incluiria o Chega que é já o terceiro maior partido português (uma sondagem SIC/Expresso, revelada hoje, dá 11 por cento ao Chega).

7, É necessário sublinhar que o partido de extrema-direita portuguesa é um dos mais radicais da Europa, defendendo a castração química, a prisão perpétua, o fim de apoios sociais, a perseguição dos ciganos e outras minorias étnicas. Ou seja, o Chega defende medidas mais gravosas das que foram executadas no Estado Novo por Salazar e Caetano. A seu lado tem um partido ultra-liberal, a Iniciativa Liberal, que basicamente defende o fim do Estado social. Juntando a isto um PSD como o de Passos Coelho, baseado nas doutrinas económicas de Milton Friedman, teríamos o pior e mais extremista governo, um cocktail da mais reaccionária  extrema-direita. Apesar de em Portugal serem necessários 2/3 para mudar a Constituição - e as medidas defendidas pelo Chega são completamente anticonstitucionais - este cenário deve ser pensado séria e antecipadamente, para que não venha a ocorrer. 

8, As democracias europeias liberais começam a estar em risco com este espectro da extrema-direita que percorre a Europa; a União Europeia também (embora seja um projecto demasiado tecnocrático). Numa Europa onde já não se fazem golpes de Estado (embora tudo seja possível), o objectivo último desta extrema-direita não é só chegar a liderar governos, mas obter uma maioria que lhe permita fazer revisões constitucionais que iriam alterar o Estado de direito em que vive a generalidade dos países europeus. A direita italiana não conseguiu isso. Mas o líder da extrema-direita portuguesa tem sido claro quanto a esse objectivo. São as democracias que estão em perigo, como no caso do Brasil, onde a possível derrota de Bolsonaro, pode degenerar na tentativa de um golpe de Estado, como aconteceu, de certa forma nos Estados Unidos, aquando da derrota de Trump. 

9, O século XXI começa a ser um século ameaçador, perigoso - um pouco como o século XX há cem anos. Mas esse perigo não reside apenas numa reemergência dos fascismos. A par da extrema-direita, temos como ameaças as alterações climáticas e o mundo digital dominado por um conjunto de muito grandes empresas, sedentas dos nossos dados que também colocam a nossa liberdade e privacidade em perigo. Nada disto está separado, pelo contrário, anda tudo ligado.

quarta-feira, agosto 31, 2022

Raquel Nobre Guerra

 


HAPPY HOUR

Sustenho os primeiros minutos violáceos da aurora 
como se o mundo fosse meu de minha autoria 
seus êxtases que incham purpurinas minhas veias 
para nenhum truque de alfaiate esconder 

trago nos lábios uma brincadeira como quem 
abre de sopro nossos peitos a nu 

somos belos 
       como a manteiga e o leite podem ser 

corto para a divisão da alegria para os pássaros 
acordados para o gasto fresco da fruta 

saúdo a multidão em falta / sigo com solução o dia 

abrevio, 
algures o mundo moderno espera por mim 

saio com a minha boca a minha pele-vermelha 
as minhas botas temperadas de furor heróico 
chuto a minha saliva para o sangue dos deuses.

In Divisão da Alegria, Tinta da China, Lisboa, 2022, p. 13

Raquel Nobre Guerra nasceu em 1979. Estudou filosofia (licenciatura e mestrado) e o fragmento na obra de Fernando Pessoa (doutoramento). Publicou Groto Sato (Mariposa Azual, 2012, Prémio primeira obra do PEN Club Português em 2013), Saudação a Álvaro de Campos (2013), Quarto 28: SMS de amor e ódio (Residências no Largo, 2013), Senhor Roubado (Douda Correria, 2016) e Divisão da Alegria (Tinta da China, 2022, "obra escrita ao abrigo de uma bolsa de criação literária do Ministério da Cultura/DGLAB". A sua obra está publicada no Brasil, Alemanha e Colômbia.

domingo, julho 31, 2022

DA ARTE BANCÁRIA DE BEM FURTAR



Há oito anos o grande império financeiro português, liderado por Ricardo Salgado - o dono disto tudo falia. Na altura, governo de traição nacional de Passos Coelho encontrou como solução partir o banco em dois. Os "activos tóxicos" ficaram com o BES, o banco mau; e os activos bons ficaram num novo banco, que na falta de outro nome se ficou a chamar mesmo assim, Novo Banco. O Novo Banco era o banco bom, como numa história infantil que o governo de então tentava impingir aos portugueses, crianças grandes passeando no verão com calções infantis, acreditando nas histórias da carochinha contadas pela televisão depois de mais um dia de trabalho na espera pelo fim de semana. Afinal é isto o mundo ocidental das democracias representativas capitalistas, de um capitalismo cada vez mais feroz e incorpóreo, onde quem realmente manda são as grandes empresas. E os bancos.

Os bancos são organizações criminosas beatificadas pela lei da república ( ou da monarquia constitucional nos estados monárquicos, como Espanha ou Inglaterra). O seu desplante ultrapassa tudo: comissões bancárias, domiciliação de ordenados, concessão de crédito que torna as pessoas escravas do banco durante 30 ou 40 anos, metade da vida. E se os pagamentos dos juros usurários falha, o banco fica com o imóvel e manda os seus escravos para a rua fazer companhia aos sem-abrigo. Desta ignomínia o Estado não quer saber, apenas preocupa o ministro das Finanças o risco sistémico. E seja o governo de centro esquerda ou centro direita ou mesmo de direita, o que interessa são os bons resultados dos bancos, o crescimento da economia que está a provocar a destruição do planeta. Afinal políticos, empresários e bancários têm ar condicionado, e água Evian para lavar as trombas e dinheiro sujo na máquina de lavar mágica de qualquer ilha Caimão. O povo adoça-se com aumentos da reforma ou do pobre salário mínimo nas vésperas das eleições.


Os últimos governos de Portugal (PSD/CDS de Passos Coelho e PS com o apoio da geringonça de esquerda - BE e PCP) deram mais de 20 mil milhões de Euros ao sistema bancário. Foi dinheiro literalmente roubado aos contribuintes. Desses 20 biliões, pelo menos 5 foram para o Novo Banco, o tal banco bom santificado pelo Estado. É certo que o Ministério público vem perseguindo alguns bancários, o que resultou no suicídio de um numa prisão sul africana. Mas Ricardo Salgado, convenientemente já tem Alzheimer. Mas António Ramalho, CEO do NB desde 2016, e portanto o português que mais e melhor furtou o Estado português, enfim um Ronaldo do roubo do colarinho imaculadamente branco (à atenção do Guiness book, não só o CR7 bate recordes em Portugal), vai abandonar o Novo Banco e estudar para terras suíças como ser presidente não executivo, ou seja, presumo, como não fazer nada. Genial Ramalho, que escapa pelos pingos da chuva a um estabelecimento prisional.

segunda-feira, maio 30, 2022

Adolfo Casais Monteiro

 A PALAVRA IMPOSSÍVEL

Deram-me silêncio para eu guardar dentro de mim
A vida que não se troca por palavras.
Deram-mo para eu guardar dentro de mim
As vozes que só em mim são verdadeiras.
Deram-mo para eu guardar dentro de mim
A impossível palavra da verdade.

Deram-mo o silêncio como uma palavra impossível,
Nua e clara como o fulgor duma lâmina invencível,
Para eu guardar dentro de mim,
Para eu ignorar dentro de mim
A única palavra sem disfarce  -
A palavra que nunca se profere.

Em A Rosa do Mundo, Ed. Assírio e Alvim,2001, p. 1489

sábado, abril 30, 2022

Dionísio, o sofista (Antologia Palatina)

 A Rapariga das Rosas

Tu, que trazes as rosas, é rosas o encanto que trazes.
O que é que vendes? a ti? às rosas, ou às rosas e a ti.

( Tradução de Fernando Pessoa, em A Rosa do Mundo, Assírio e Alvim, 2001, p. 449.)

quinta-feira, março 31, 2022

A GUERRA É A GUERRA

 



1. A guerra é estúpida. Os governantes, eleitos pelo povo ou não, que ordenam as guerras são estúpidos, os generais são estúpidos, os mancebos que fazem a guerra, que dão a vida por uma ideia de nação ou pátria, são estúpidos - e não heróis como muitas vezes são proclamados - na sua obediência cega aos ditadores e generais. Tudo isto parece bastante ingénuo, mas creio que é uma verdade simples. É também uma perspectiva anarquista e antimilitarista. Não há uma evolução na humanidade: a obediência aos que ordenam a guerra, o sadismo da destruição do outro, é algo que permanece ou se intensifica há séculos, há milénios, sempre repetido. Parte da História faz-se de guerras, de mesquinhos sentimentos nacionalistas, ainda hoje alimentados entre os povos como há séculos. Não há lição que os povos tenham aprendido para terminarem com a guerra. É certo que depois do uso de armas nucleares na II Guerra Mundial, depois da guerra fria, parecia que não podíamos ter de novo guerras. Mas enquanto durou a guerra fria, EUA e URSS promoveram a guerra em muitos países ...

2. A Rússia invadiu a Ucrânia a 24 de fevereiro passado. A Rússia já tinha invadido a Crimeia, há uns anos, sem grande alarido. A Ucrânia é, como se sabe, uma ex-república da União Soviética - antes estivera sob o domínio da Rússia dos Czares. A partir do início da década de 1990, com o fim do comunismo e da URSS, a Ucrânia tornou-se um estado independente. Era o tempo em que foi declarado "o fim da História", porque o capitalismo ocidental perdia o seu antagonista nas ditaduras comunistas da Europa de Leste. Se não era o fim da História - e evidentemente que não foi - era pelo menos o fim da guerra fria, o fim da cortina de ferro, o fim do muro de Berlim - e também o fim do império soviético, que se desmembrava. A Europa mudou, o mundo mudou, nessa década finissecular. A União Europeia foi-se expandindo para leste, e já um pouco secretamente, a NATO também. No fim do milénio,  um alcoolizado Boris Iéltsin dá lugar a um ex-espião do KGB como timoneiro desse ainda imenso país que é a Rússia. Vladimir Vladimirovich Putin é, em 1999, eleito presidente da Rússia. Não largará mais o poder, entre o cargo de presidente e de primeiro-ministro, é ele que manda nesse imenso país de escravos. Ele é o ditador que a novilíngua chama, agora, de autocrata. Tem um tique perverso e sofisticado para eliminar os seus adversários: o uso de venenos radioactivos e químicos. Certo é que, do outro lado, a NATO se foi aproximando do urso gigante, não ligando, assobiando para o lado, ou fazendo-se esquecida de quem tinha pela frente. Putin, que tem seis mil ogivas nucleares, quer deixar a sua marca na História. Para isso volta-se para o expansionismo: pretende voltar a fazer da Rússia o que ela foi no tempo da "sua" União Soviética.

3. Na manhã de 24 de fevereiro o mundo, que é o mundo dos ecrãs (smartphones, televisões, computadores), acordou histérico. A Rússia tinha invadido a Ucrânia, algo que já se esperava depois de Putin ter anexado as duas Repúblicas separatistas russas que lutavam pela independência dentro da Ucrânia. A Ucrânia não era um país simples nem pacifico - na sua história, na sua composição onde cerca de um terço da população é de origem russa. É também um país que tem tido como presidentes alguns fantoches de Putin. Mas Vladimir Vladimirovich não optou, agora, por essa solução. Por isso, as cidades Ucranianas são agora campos de devastação, a Europa enfrenta a maior crise de refugiados desde a II Guerra Mundial. O actual presidente da Ucrânia, Zelensky, era um actor de comédia que fez um programa de tv onde interpretava a figura de um presidente da Ucrânia; o sucesso do programa levou Volodymir Zelensky a passar o que era do domínio da ficção para a realidade e a candidatar-se às eleições presidenciais ucranianas. Onde já se viu isto? O sucesso mediático transposto para o sucesso político (veja-se o movimento 5 Estrelas na Itália, o palhaço Trump nos EUA, ou mesmo Marcelo Rebelo de Sousa que teve mais de 10 anos de presença televisiva como comentador-mor para se tornar em presidente da República). Um sintoma da política actual: faz-se através da tv e das redes sociais.

4. A partir de 24 de fevereiro, e quase até agora, os canais televisivos de informação voltaram ao modo monotemático como tinham feito no início da pandemia, há 2 anos. A guerra na Europa. Rapidamente todo o Ocidente tomou o partido da Ucrânia contra o agressor Putin e a Rússia. Canais de televisão russos, como a RT e agências noticiosas russas foram censuradas pelo ocidente. Putin, entretanto, fez aprovar um decreto onde proibia a utilização da palavra "guerra". A invasão da Rússia à Ucrânia era uma "operação militar especial". Os correspondentes de órgãos de comunicação social em Moscovo, na generalidade, abandonaram a Rússia. Ficaram só as imagens de refugiados, de abrigos, de repórteres medrosos, da devastação da guerra esventrando edifícios. Os refugiados que por esta altura são cerca de 4 milhões, mulheres e crianças, porque o presidente Zelensky proibiu os homens entre os 20 e 60 anos de deixarem a Ucrânia, para combater pela pátria, espalham-se pela Europa. E, principalmente, as sanções económicas decretadas pelo ocidente à Rússia e aos oligarcas russos, a Putin e aos membros do seu governo. As sanções e a guerra que fazem ricochete nas economias ocidentais: a inflação sobe para níveis de há 20 ou 40 anos (o caso da Alemanha, enquanto em Espanha se atingiu 10 por cento de inflação). A gasolina sobe, sobe, ás vezes desce, e volta a subir ao compasso do petróleo ou da pura especulação.  

5. A guerra, esta guerra que não é nossa, mas que os governos ocidentais, a NATO e principalmente os mass-media, tornaram nossa, tem um forte aliado: o medo. O medo, aqui no extremo ocidental da Europa, a 4000 km de Kiev, ainda funciona. É uma simples expressão: III Guerra Mundial. É claro que é assustadora, porque uma III Guerra Mundial não pode existir; se se utilizar armas nucleares, como dizia alguém, nem é bom pensar. Por isso a NATO nunca deveria ter-se aproximado da Rússia (aliás, a NATO já não deveria existir, como não existe o Pacto de Varsóvia). O medo instala-se melhor na poltrona quando se fala de armas nucleares, quando Joe Biden espicaça o urso Putin. Como escreveu o poeta Alexandre O' Neill, "o medo vai ter tudo". E, nunca como nestes tempos, pelo menos desde o fim da II Guerra Mundial, o medo esteve tão bem instalado, ouvindo as trombetas mediáticas que faz tocar.    



segunda-feira, janeiro 31, 2022

LEGISLATIVAS 2022: DA MAIORIA ABSOLUTA AOS NOVOS FASCISTAS

 


1, O Partido Socialista venceu, ontem, inesperadamente, por maioria absoluta as eleições legislativas. Inesperadamente porque as sondagens, que se perfilam como uma verdade absoluta, quase se substituindo às eleições, davam um "empate técnico" entre PS e PSD. A maioria absoluta do PS não é nada de bom, a não ser para o PS e para António Costa. Uma maioria absoluta significa que o próximo governo PS poderá governar sem dialogar com outras forças políticas. Mas quem criou as condições para esta maioria absoluta do PS foram dois partidos responsáveis por estas eleições ao chumbar o OE para 2022: o Bloco de Esquerda e o PCP  - e por essa atitude irresponsável foram fortemente penalizados. É algo que não é novo, já em 2011, a chamada esquerda radical, abriu as portas a Passos Coelho e à troika ao chumbar o PEC 4. Portanto, o mau resultado do BE e PCP deve ser visto como uma penalização do eleitorado por criarem eleições antecipadas e porem fim à geringonça (é certo que Marcelo também teve culpa em marcar estas eleições). Com isto ganhou o PS, que terá ainda ido buscar votos ao centro direita, onde um Rui Rio andou errante.

2, A entrada do partido de extrema-direita, com um grupo parlamentar de 12 deputados, tornando-se a terceira força política no parlamento, não é uma surpresa. Foi algo muitas vezes anunciado pelo seu líder, pelas sondagens e pelo resultado que o seu líder populista obteve nas eleições presidenciais do ano passado. Como foi possível isto - um partido populista de tendência fascista tornar-se no terceiro partido português? Como é possível que um partido que defende a prisão perpétua, a castração química para os pedófilos, o fim do Estado providência, do RSI, que tem uma matriz racista e xenófoba tenha agora 12 deputados na Assembleia da República? Creio que a culpa é dos média que criaram o fenómeno A. V. Não existia uma inevitabilidade em Portugal ter um partido "populista" como a Espanha tem o Vox ou a França tem a FN da família Le Pen. É certo que o discurso populista, apelando ao fantasma de Salazar, já há muito que era ouvido em certas camadas da população, e a relação com o fantasma de Salazar e do Estado Novo nunca foi resolvida.

3, Mas houve outras novidades nestas eleições. O desaparecimento do CDS, partido chamado de fundador da democracia portuguesa, que apesar de uma boa campanha de Francisco Rodrigues dos Santos, não conseguiu eleger nenhum deputado. O partido perdeu excelentes deputados, como o PCP que perdeu João Oliveira e António Filipe. A Iniciativa Liberal foi outro partido que tendo apenas um deputado surge agora com um grupo de oito. É um partido que perfilha algumas causas da esquerda, na matéria de valores, mas que está bastante à direita, naturalmente pelo fim do Estado providência. O PAN, que queria ser um parceiro de um governo de esquerda ou direita apenas conseguiu eleger a sua líder, Inês Sousa Real. Já no Livre o historiador Rui Tavares conseguiu, finalmente, eleger-se, depois de na anterior legislatura se ver forçado a abdicar de Joacine Katar Moreira.

4, Todos estes resultados apontam para uma certa decepção. Há falta de partidos interessantes. Por exemplo não existe um verdadeiro partido verde em Portugal (o PEV que estava coligado com o PCP, embora fosse pouco verde, também desaparece da AR) que coloque como tarefa primeira o combate às alterações climáticas. Os partidos de esquerda - e também de direita - esquecem aqueles que por várias razões não trabalham, como se essas pessoas acossadas por um desemprego crónico que as atira muitas vezes para a miséria fossem lixo social - e na verdade assim são tratadas. António Costa pode prosseguir, agora, uma agenda que não existe. O primeiro-ministro está mais interessado no poder pelo poder do que em solucionar de forma eficaz os problemas dos portugueses. Por isso, continuará, certamente, a obedecer aos ditames de Bruxelas, ás exigências da Banca (repare-se que enquanto a comunicação social se interessa por um banqueiro já condenado e na prisão, um outro, António Ramalho do Novo Banco, assalta despudoradamente os cofres do Estado), a uma burocracia tecnológica que se pode aproximar de cenários orwellianos. É esta a democracia que temos, se por democracia entendermos apenas a sua representação institucional, em que ao votar, mal informados, os portugueses passam um cheque em branco aos seus alegados representantes. Mas, para além de uma necessária mudança na lei eleitoral, que a torne mais representativa, a democracia vive-se no dia-a-dia