sexta-feira, junho 30, 2023

FRANZ KAFKA



 REFEEIÇÃO

    Quando eu encontro uma rapariga bonita e lhe rogo: «Tenha a gentileza de me acompanhar» e ela passa por mim sem uma palavra, é isto que ela me quer dizer:
    «Você não é nenhum Duque famoso, nenhum americano com perfil e pose de índio, de olhos fundos e misteriosos e uma pele temperada pelo ar das planícies e dos rios que nelas passam, não chegou aos sete mares nem nunca por eles navegou, onde quer que eles se encontrem, que eu não sei. Diga-me lá então porque é que uma rapariga bonita como eu haveria de ir com o senhor?»
    «Parece esquecer que nenhum automóvel a passeia em grandes voltas pela cidade; não vejo nenhum cavalheiro a rodar à sua volta, comprimindo por detrás a sua saia e murmurando-lhe benções ao ouvido; tem os seios bem seguros no corpete, mas suas coxas e ancas parecem compensar este aperto; tráz um vestido de tafetá, com uma saia plissada, que causou grande furor no Outono passado, e todavia ri-se - de tempos a tempos - atraindo o olhar do mundo.
    «Sim, temos ambos razão, mas para não sermos forçados a reconhecer o facto, não seria melhor seguirmos cada um para sua casa?»

in Contos de Franz Kafka, Cavalo de Ferro / Grande Reportagem, col. Nova Europa, Trad, de Nuno Batalha e Hugo Gomes, Lisboa, 2004, p. 147