quinta-feira, abril 03, 2008

Ana Paula Inácio


Este poema tem como hipotexto
o Florbela Espanca espanca de Adília Lopes
e o Livro de Mágoas da Florbela
não me interessa quanto valem
na cotação da bolsa literária -
ainda não gozei nenhuma e
bolsa que me interesse
só mesmo a do canguru
mas tu não és minha mãe
nem meu pai, ou tia, ou
irmão, pseudo-Electra -
nem do seu mainstream.
Este poema é dedicado
à minha amiga Mónica
que faz ioga aos sábados de manhã,
cabeleireiro e depilação 2 vezes por mês
(cf. poema anterior)
luta contra uma auto-estima precária
mas sabe o que quer
quando lourifica o cabelo
como 43, 33 % das mulheres
com idade > 40 anos,
licenciadas,
em Portugal,
no ano de 2004:

«falar, falar, falar
a este àquele
a toda a gente
e não falar a ninguém»

«Bom dia, meu amor» ou
«Bonjour, tristesse»
como dizia Françoise Sagan
ao seu amante
trocado
por falsos versos.


Ana Paula Inácio nasceu no Porto em 1966. Publicou dois livros de poesia, As Vinhas do Meu Pai (Quasi, 2000) e Vago Pressentimento Azul por Cima (Ilhas, 2000), e um de contos, Os Invisíveis (Quasi, 2002). O poema aqui publicado faz parte do número 9 da revista Telhados de Vidro (Novembro de 2007).

terça-feira, abril 01, 2008

A MÁ EDUCAÇÃO (TECNOLÓGICA)


O episódio do telemóvel na Escola Carolina Michaelis demonstra que para que algo exista, tenha relevância mediática, são necessárias imagens. As palavras, a palavra que acompanhava a honra de um homem (ou mulher), a palavra como narrativa, perdeu todo o seu valor. Se aquela disputa por um telemóvel ente professora e aluna não fosse filmada por outro telemóvel e depois colocada no you tube, este acto de violência seria um dos muitos calados nas escolas portuguesas. Desta situação, com a sua consequente cobertura mediática, podemos tirar uma lição sobre a importância que as novas tecnologias desempenham na sociedade actual, uma sociedade em permanente conexão, onde os meios tecnológicos acabam por ser extensões do corpo dos indivíduos. Nesse sentido, este caso parece ser um case study não tanto sobre a violência escolar mas sobre a forma como funcionam hoje os média e a sua relação com a sociedade.
Quanto à situação em si, a “agressão” da aluna à professora, ela demonstra, para além da inversão de papéis, num local extremamente violento como uma escola, uma total incapacidade por parte da docente de lidar com a situação. A aluna devia ter sido expulsa da aula.

domingo, março 30, 2008

JORGE LUIS BORGES


Os Borges

Nada ou bem pouco sei dos meus maiores
Portugueses, os borges: vaga gente
Cumprindo em minha carne, obscuramente,
Seus hábitos, rigores e temores.
Ténues como se não tivessem sido
E alheios aos trâmites da arte,
Indecifravelmente fazem parte
Do tempo e da terra e do olvido.
Melhor assim. Cumprida a sua ideia,
São Portugal, são a famosa gente
Que forçou as muralhas do Oriente
E ao mar se deu e ao outro mar de areia.
São o rei que no místico deserto
Se perdeu e o que jura estar desperto.

in O Fazedor, Obras Completas II, ed. Teorema, 1998, Trad. Fernando Pinto do Amaral, p. 206

terça-feira, março 18, 2008

DIOGO PIRES AURÉLIO


RELER DURREL




sugiro o verão para as grandes metáforas do saber
as intermináveis certezas de um só dia apavoradas
p'lo cair da tarde em meio do labirinto
à hora em que desperta o minotauro e o cio enreda
cada frase em mil projectos de minúcia

á beira ti o verso é mais precário e o tempo
das falésias se desprende em símbolos antiquíssimos
desfaz a teia de penélopes traindo enquanto esperam
outros rumos nos incautos remos do dizer

e se eu disser que os peixes se dissolvem
no azul inclino a fala para outras
mais subtis razões que o vinho ou a quimera esquecem
no bater de cada sílaba e no susto que a percorre

in A Herança de Holderlin, Assírio & Alvim, 1978, pp. 15-16


Diogo Pires Aurélio nasceu em 1946. É professor universitário de filosofia e ensaista. A Herança de Holderlin é o seu único livro de poesia. Em 1984 publicou um livro de crítica literária, O Próprio Dizer (IN-CM, col. Plural).

segunda-feira, março 03, 2008

MARIA GABRIELA LLANSOL (1931-2008)


Maria Gabriela Llansol era não só uma escritora hermetica, mas de difícil classificação. Digamos que estava nas margens da literatura, não porque tivesse uma qualquer atitude marginal (como Luiz Pacheco), mas porque o seu texto, de difícil classificação entre o romance, o ensaio, a poesia e o diário, a colocava num lugar estranho na literatura portuguesa contemporânea (apesar de ter recebido por duas vezes o prémio de romance e novela da APE). O texto llansoliano alimentava-se de figuras históricas de vário tempo e lugar como Bach, Pessoa, Eckart ou Espinosa. "A rapariga que temia a impostura da língua", na expressão de Eduardo Prado Coelho, iniciou a sua actividade literária em 1962 com a obra Os Pregos na Erva a que se seguiram cerca de três dezenas de títulos, o último dos quais Os Cantores da Leitura foi publicado no ano passado. Mais sobre Maria Gabriela Llansol no blogue Espaço Llansol

sexta-feira, fevereiro 15, 2008

terça-feira, fevereiro 12, 2008

Bénédicte Houart


engoli uma gaivota anteontem
tinha um travo a mar muito suportado essa gaivota que
já lá vai
despenhando-se garganta abaixo
um acidente tão desejado
num pequeno corpo tão desastrado
embora por vezes uma gaivota desatine
ou quase
a alegria do afogado quando regressa à tona de água

Bénédicte Houart, Reconhecimento, Angelus Novus e Cotovia, col. Inimigo Rumor, 2005, p. 13.

Bénédicte Houart nasce na Bélgica em 1968. Foi docente de Estética na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Reconhecimento é o seu primeiro, e até agora único, livro de poesia.

segunda-feira, fevereiro 04, 2008

PHILIP LARKIN


JANELAS ALTAS

Quando vejo um casal de miúdos
E percebo que ele a anda a foder e ela
Usa um diafragma ou toma a pílula
Sei que isto é o paraíso

Com que os velhos sonharam toda a vida -
Compromissos e gestos postos de lado
Que nem debulhadora fora de moda,
E toda a gente nova a descer pelo escorrega,

Interminavelmente, para a felicidade. Será
Que alguém olhou para mim, há quarenta anos,
E pensou: Isto é que vai ser boa vida;
Nada de Deus, ou de suores nocturnos,

Ou medo do inferno, ou ter de esconder
do padre aquilo em que se pensa. Ele
E a malta dele, c'um raio, hão-de ir todos pelo escorrega
Abaixo, livres que nem pássaros?
E de imediato,

Em vez de palavras, vêm-me à ideia janelas altas:
O vidro que acolhe o sol, e mais além
O ar azul e profundo, que não revela
Nada e está em lado nenhum e não tem fim.

Philip Larkin, Janelas Altas, Trad. de Rui Carvalho Homem, Cotovia, 2004, p.45